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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

O Tiepolo e a Ajuda

 

 

No mesmo dia 12 em que foi a ministra Isabel Pires de Lima foi à Gala Exclusiva do Millenium-BCP no São Carlos atribuír a comenda do Mérito Cultural à instituição, ficou também finalmente classificada a “Deposição de Cristo no Túmulo” de Tiepolo.
 
O desfecho do processo não pode fazer esquecer quanto ele foi atabalhoado. Não fosse o impacto público da questão e teria com toda a probabilidade sido outra a conclusão,  tal o somatório de contradições do ministério da Ajuda. Depois de, numa primeira fase, as declarações terem sido de lamento, mas de indisponibilidade de verbas, a total impreparação confirmou-se de seguida numa extravagante troca de esclarecimentos com a leiloeira, sobre a possibilidade de estrangeiros poderem ou não licitar um quadro, e sobre o impedimento daquele, enquanto bem arrolado, saír do país.
 
E quanto ao próprio desfecho, também não se pode dizer que ele tenha sido propriamente surpreendente: talvez a ministra, ela e os seus assessores, nem se tivessem lembrado, a julgar pelo comportamento errático que tiveram, mas era sabido que existia um fundo possível, o da indemnização de 6.2 milhões de euros pelo roubo das Jóias da Coroa numa exposição em Haia. De resto, até dois dias antes do leilão um leitor , Álvaro de Sousa, de Valongo, lembrava isso mesmo nas cartas ao director do “Público”. E foi o recurso a essa verba, como se sabe, que permitiu a compra pelo Estado.
Noutro plano, não é menos sintomático que esteja já no esquecimento generalizado que as ditas Jóias da Coroa saídas da Ajuda - e que, por terem sido furtadas, acabaram por ser indirectamente a ajuda à compra do quadro de Tiepolo - ,  foram cedidas num quadro de todo desproporcionado para uma exposição de fins didácticos num museu menor. Talvez se lembrem alguns do manifesto enfado com que à época Isabel Silveira Godinho, conservadora do Palácio, respondeu às questões da imprensa, como se ela tivesse alguma coisa a ver com isso. Mas a governação era do PSD e Isabel Silveira Godinho, como é público, é amiga muito próxima de Aníbal e Maria Cavaco Silva, pelo que a sua (ir)responsabilidade ficou indemne.
 
É de episódios como este, sem quaisquer consequências no que concerne ao exercício real de responsabilidades, que também se faz a gestão cultural do ministério, Mas talvez haja igualmente razões mais práticas: o Palácio da Ajuda, além de ser sede do ministério da Cultura, é cenário de tantas cerimónias oficiais que, com Jóias da Coroa ou sem elas, Isabel Silveira Godinho pode continuar a exercer primorosamente as suas funções de governanta dedicada. E, afinal, estando lá há mais de vinte anos, é já parte da mobília. Mas porquê pedir responsabilidades?

Andreas Staier, o pianoforte e o Clementi abandonado de Queluz

Andreas Staier


Ainda no ciclo barroco da Casa da Música tive ocasião de ouvir Fabio Biondi com a Europa Galante dar a conhecer-nos extractos de uma pouco interessante ópera de Domenico Scarlatti, Narcissus, mas infelizmente não pude assistir – e tinha o maior interesse – uma semana depois a um outro concerto, fruto do trabalho que entretanto Biondi fizera com a própria Orquestra Barroca da Casa da Música.

Ouvi sim o recital de Andreas Staier em pianoforte, a 18 de Novembro, tocando nomeadamente obras de Domenico Scarlatti (estas sim, as importantes, algumas sonatas) e Mozart, não só pelo prazer de ouvir esse espantoso músico como também pela curiosidade em saber como soaria o instrumento na Sala Suggia, o grande auditório da Casa da Música.

Essa estreia foi eloquente, pelas incríveis cores e variedades de planos obtidas por Staier, um verdadeiro alquimista das teclas. Ocorreu-me de súbito a memória antiga da estreia de Gustav Leonhardt em Portugal: o único cravo de modelo de época existia no Porto, propriedade de Maria Lurdes Santos (também este pianoforte ora usado é particular, propriedade de Helena Marinho), e foi aí, no Ateneu Comercial, que Leonhardt se apresentou a 4 de Maio de 1979, a que se seguiu, um dia depois, um recital de orgão na Sé de Lisboa.

Mas recordei-me também ter sido o mesmo Andreas Staier, a 14 de Setembro de 2002, em Queluz, nos Concertos PT/ Em Órbita, que fez o primeiro recital com o pianoforte Clementi restaurado por Joop Klinkhamer, com os fundos obtidos pelo Em Órbita com receitas de bilheteira dos concertos, por contributo privado pois.

É mais que inépcia, é gravoso desleixo dos responsáveis por Queluz e da sua tutela, que com o fim daqueles Concertos o instrumento tenha ficado sem utilização, o que é o mesmo que ao abandono, já que a sua conservação em bom estado depende de uso. É assim que a gestão dos orgãos e entidades do ministério da Cultura vela pelo património, e pelo património que foi possível restaurar por contributo generoso de privados! “Conservadores”, dizem eles? Burocratas negligentes, isso sim!

 

As Vésperas do nosso deslumbramento

 

 

Monteverdi
Vespro della Beata Vergine
La Petite Bande, Sigiswald Kuijken
Casa da Música, 8 de Novembro
 
 
Se há obra que, creio bem (e tenho-o praticado), justifica a ideia de peregrinação, essa é as Vespro della Beata Vergine de Monteverdi. Só que neste enunciado há também uma questão: ao certo que “obra” são as Vespro?
 
A famosa colectânea de 1610 é isso mesmo, uma “colectânea” de música sacra, mesmo uma “enciclopédia”, na definição de Philippe Beaussant: “Todas as formas, maneiras e estilos aí se cruzam e até se misturam. Vastos salmos a seis, sete, oito, ou mesmo dez vozes em dois coros; antífonas para uma só voz, ou para dois tenores, ou para três vozes masculinas; páginas virtuosas e meditações sobre frases de cantochão, monodias recitativas, dignas do lamento de Orfeu nas campanhas da Trácia, e sonatas para oito intrumentos sobre um Sancta Maria, ora pro nobis indefinidamente repetido; sumptuoso aparelho instrumental ou baixo contínuo sozinho...”.
 
Que Claudio Monteverdi aspirava a uma dedicatória papal, sabe-se. Que por certo grande parte dos trechos, senão todos, tinham sido originalmente destinado à Capela Ducal de Santa Bárbara em Mântua, é dedução lógica. E, como se sabe, em vez do ambicionado caminho de Roma, Monteverdi viria sim a rumar a Veneza, três anos depois.
 
Esta contextualização é importante porque de um modo ou outro tem influenciado diferentes interpretações e realizações da colectânea: já houve quem postulasse que seriam originalmente uma “Vésperas de Santa Bárbara” (hipótese do musicológo Graham Dixon, com conretização na gravação de Harry Christophers), quem a explorasse no sentido da policoralidade veneziana (Gardiner), ou até quem insista, em nítido contrassenso, que elas são em si mesmo um ofício, e proceda a uma reconstituição litúrgica (McCreesh).
 
Já ouvi Vésperas das mais grandiosas e, diría pelos efectivos, “de câmara”, e até tive ocasião de ouvir uma e outra concepções em intervalo de poucos dias, entre Salzburgo e Innsbruck, quando dos 450 anos da morte de Monteverdi, em 1993. Mas, como todos os que tiveram a ocasião de assistir a essa realização prodigiosa, recordo sobretudo, e ainda recordo emocionadamente quase 20 anos passados, aquela que foi dirigida por Jordi Savall nos Jerónimos a 26 de Outubro de 1988, imediatamente antes da gravação (um registo extraordinário, que ele acaba de reeditar, remasterizado, na sua editora AlliaVox). Longe das frequentes facilidades e jogadas de marketing que agora lhe são usuais, era um Savall em apoteose, e que também ele perspectivava as Vésperas no horizonte veneziano, dirigindo uma equipa como não mais se reuniu: Montserrat Figueras, Maria Cristina Kiehr, Guy de Mey, Gian Paolo Fagotto, Bruce Dickey, Pedro Memelsdorf, Stephen Stubbs, Rolf Lislevand, Andrew Lawrence-King, Rinaldo Alessandrini ou Marco Mencobini!
Sigiswald Kuijken
 
 
E, agora, houve estas espantosas Vésperas de Kuijken na Casa da Música. Opções reduzidas, apenas com dez vozes reais (pormenor importante : quase todas idiomáticas e com cores latinas, e foi com as duas que o não eram, as sopranos, que houve o único ligeiro desasjustamento, no "Pulchra es" ), cada uma delas com papel específico, realização instrumental entre a severidade sempre presente do baixo e a exuberância magnificente dos cornetos, “instrumentarium” incluíndo violinos e violas especialmente reconstituídos de acordo com iconografia da época (Caravaggio, nomeadamente), em posição mais baixa que o habitual, não tanto “da brazzo”, mas “da spalla”, escrupulosa observação  das indicações instrumentais da partitura e restrição dos efectivos a essas indicações - assim, por exemplo, as flautas transversas foram usadas apenas no "Ave Maria Stella" e "Magnificat" finais.
 
Podia-se temer esta obra no específico espaço da Casa da Música? Magistral lição de engenho e simplicidade a de Kuijken: com pequenos movimentos, por exemplo voltando os cantores de costas para o público, ou orientando os cornetos em direcções opostas, realizavam-se os efeitos da espacialidade.
 
Com Sigiswald Kuijken e La Petite Bande já tinha eu tido a oportunidade de ouvir uma intensa interpretação de uma grande obra sacra: a Paixão Segundo São João de Bach, na própria sexta-feira de paixão, em 1993, em Antuérpia, com o Evangelista de Christoph Prégardien. Foi prodigiosa e comovente a beleza agora destas Vespro della Beata Vergine na Casa da Música, um dos concertos mais memoráveis dos últimos anos.
 

À volta do barroco

Tendo vindo, nalguns textos sobre discos abaixo publicados, a andar à volta do barroco, é imperioso falar também da situação concreta em termos de concertos e de outras manifestações.
 
Pese ainda uma não desmentida “vaga”, forçoso é concluír que a situação geral em Portugal é de um estranho e inusitado refluxo. O vazio deixado pelo já referido fim dos Concertos Portugal Telecom/ Em Órbita,  um exemplo pela negativa das vicissitudes do mecenato, não foi preenchido.
 
Não menos deve ser devidamente notado que, no respeitante às alterações introduzidas no modelo de programação da Gulbenkian, com o fim dos Encontros de Música Contemporânea e das Jornadas de Música Antiga, efectivado a partir da temporada 2002/03, foram afinal os ciclos substitutos das segundas que se têm vindo a revelar menos aventurosos face às práticas anteriores: algumas importantes cabeças de cartaz, como Cecilia Bartoli, Andreas Scholl ou, ano sim, ano não, o inevitável Jordi Savall, por vezes William Christie e Le Jardin des Voix, não desmentem a falta de rasgo da programação, antes pelo contrário.
 
Entretanto terminaram os Cursos da Casa de Mateus, que tinham um protocolo específico e, enquanto tal, excepcional face às regras gerais de apoio às estruturas artísticas – perda que em todo o caso não deixa de ser mais outro buraco negro. E para mais este ano nem sequer houve o Festival de Mafra, que desde a saída de Miguel Lobo Antunes, quando assumiu funções na Culturgest, vinha tendo direcção da equipa do Em Órbita, isto é Jorge e João Miguel Gil – e não se efectivou pela razão burocrática da transferência do Palácio de Mafra da tutela do Instituto do Património para o dos Museus, bem como, pasme-se, porque apenas se poderia ter realizado num único fim de semana, dado o agendamento para aí da cimeira Sócrates-Putin de má memória.
 
Claro que há sempre concertos interessantes integrados no Festival de Póvoa, eventualmente noutros também, como Espinho. Um grupo como o Divino Sospiro tem tido um trabalho regular no CCB, mas também se podem elencar outras iniciativas e propostas de potencialidades que não têm condições asseguradas.
 
Não menos é de notar que enquanto hoje é de rigor os teatros de ópera programarem devidamente o riquíssimo repertório da ópera barroca, no São Carlos, depois da ousadia (uma das muitas) de João de Freitas Branco ao apresentar L’Incoronazione di Poppea de Monteverdi em 1974, passaram-se mais de 30 anos antes de, com Paolo Pinamonti, haver de novo duas produções em temporadas sucessivas, o suposto Dionisio Re di Portogallo de Haendel e o Motezuma de Vivaldo, ambas com Alan Curtis – é certo que nem uma nem outra foram muito felizes, mas ainda assim preencheram uma lacuna das mais notórias. Como em tantas outras coisas respeitantes ao São Carlos, a continuidade foi para já quebrada, com a fatídica OPART do secretário de Estado Vieira de Carvalho.
 
Tanto mais são assim de seguir as actividades da Casa da Música, estrutura de parceria pública-privada é certo, mas sem que isso invalide ser uma peça fundamental das políticas públicas de música.
 
Se desde os tempos ainda do Porto-2001 a aposta fundamental foi a criação e consolidação de um excelente grupo de música contemporânea, o Remix, a CdM não poderia também deixar de vir a ter um agrupamento barroco. A estrutura foi-se constituíndo de forma muito híbrida e mesmo equívoca, diria até que com alguns infelizes percalços de percurso (nomeadamente na preparação e montagem da ópera Joas de Benedetto Marcello em 2002/03), passando pela gestão de recursos que levou a que a formação fosse estranhamente feita a partir do Remix, com a chamada Remix Orquestra, até que passo a passo se avançou para a Orquestra Barroca da Casa da Música, ainda em fase de tirocínio dos seus elementos.
 
Mas, para além desses dados estruturais, a CdM organiza aquele que afinal é agora – triste situação, olhado o conjunto – o único pólo de programação regular, o ciclo À Volta do Barroco, que na presente temporada ocorreu nos dois fins de semana entre 8 e 18 de Novembro. É pois tempo para rememorar o que sucedeu, aliás com razões amplamente justificadas.

Ofícios de Vésperas - I

 

 

 

 

Alessandro Scarlatti

Magnificat, Dixit Dominus, Madrigais
Concerto Italiano, Rinaldo Alessandrini
Naïve, dist. Andante
 
De todas as figuras maiores do barroco italiano, Scarlatti pai é aquela de quem dispomos de um menor conhecimento concreto por realizações discográficas, sendo certo que foi das mais influentes e prolíferas. Se entre as suas mais célebras óperas, La Griselda existe disponível, nomeadamente numa interessante realização dirigida por René Jacobs (Harmonia Mundi), faltam-nos nomeadamente Il trionfo dell’Onore e sobretudo aquela que, depois do insucesso inicial em Veneza, se tornaria contudo a mais celebrada de todas, Mitridate Eupatore.
 
Há todavia um manifesto reducionismo na estrita associação de Alessandro Scarlatti (1660-1725) à posição de “mestre” da ascendente “escola napolitana". De resto, se é excepcional o número de óperas que compõs, 114 (!) das quais sobrevivem 40, as suas 700 cantatas (!!) ou uma vasta produção religiosa, em que figuram nomeadamente, além de um conhecido Stabat Mater, 35 oratórios ou 70 motetos, são suficientes indicadores de um autor mais multifacetado.
 
Mas sobretudo, Alessandro Scarlatti não foi um compositor estritamente “napolitano”, já que não menos foi uma figura de revelo da “escola romana”. Formou-se aliás na cidade papal, tendo sido inclusive maestro di cappela da Rainha Cristina da Suécia e a Roma retornou mais tarde, ao círculo dos Cardeais Ottoboni e Pamphili, bem como à célebre Accademia dell’Arcadia, em que foi admitido em 1706, tal como Corelli.
 
Este admirável disco do Concerto Italiano reúne duas composições para trechos do Ofício de Vésperas, um Magnificat dos dois que compõs e o Dixit Dominus, e cinco dos seus mais raros madrigais. O que surpreende, em primeiro lugar, e nomeadamente face à relação consagrada com a “escola napolitana”, é o estilo conservador, para não dizer mesmo “arcaízante” ou anacrónico, com o stile osservato e uma densa textura polifónica, ao estilo da prima pratica de finais do Renascimento – stilo antico, pois.
 
Talvez ainda mais surpreendente são os madrigais, tão cultivados durante o maneirismo e o barroco inicial, mas inusitados em inícios do século XVIII. Não são contudo caso único, nem porventura o mais notável, apesar de um dos cinco aqui incluídos, O Morte, ser admirável: mais surpreendentes são ainda os de Antonio Lotti (1667-1740), havendo desses uma notável gravação dirigida por Alan Curtis (Virgin), sendo de referir, a propósito, que há também um outro disco de Madrigais de Scarlatti e de Lotti, dirigido por Anthony Rooley (Oiseau-Lyre). No caso é sobretudo do Maneirismo que estas composições de Scarlatti se aproximam: organização de sonoridades e dissonâncias mais do que observação da inteligibilidade do texto.
 
Com apenas um cantor por parte, e um contínuo tão estrito quanto notável (“chitarrone” e orgão nas obras sacras, cravo nos Madrigais), Alessandrini assina uma realização densa e com uma admirável clareza da estrutura polifónica e das figuras ritmícas, com o único senão das vozes femininas se revelarem inferiores nas passagens solistas. Em particular notáveis são o citado madrigal O Morte e no Magnificat o“Esurientes implevit bonis”, versículo de resto já de si singular, pois que não é hábito figurar nesse canto de lauda.
 
Apesar da reserva manifestada em relação às vozes femininas, este é um disco notável, absolutamente a reter.
 

Ofícios de Vésperas - II

 

 

 

Haendel
Dixit Dominus
Natalie Dessay, Karine Deshayes, Philippe Jaroussky, Toby Spence, Laurent Naouri
Le Concert d’Astrée, Emmanuelle Haïm
Virgin/EMI
 
Coisa de todo diversa do anterior é este disco. Eis outro caso de marketing discográfico, puro caso de marketing discográfico mesmo. Bach+Haendel, duas célebres composições, o Magnificat e o Dixit Dominus, o agrupamento barroco de serviço na Virgin e outro (quase) “all- stars cast” que também vai sendo recorrente na editora.
 
E para quê? Realizações pesadas e empasteladas, de sofrível articulação e coro, de uma mediocridade geral em que se salvam o virtuosismo de Jaroussky e, com alguma surpresa diga-se, mas pela notável versatilidade e agilidade, a Dessay, em que se dois cantores de reconhecidas qualidades, Spence e Naouri (este uma vez mais vindo parar a um disco com a esposa Dessay), se integram problematicamente, e em que quanto à única solista sem renome, Deshayes, melhor seria terem-nos poupado.
 
Note-se que o Dixit Dominus é uma obra do período romano de Haendel, em que conheceu e assimilou as obras de Corelli e Alessandro Scarlatti – Andrew Parrott propôs mesmo umas hipotéticas Vésperas Carmelitanas (Virgin) só com obras de Haendel, incluíndo como é óbvio o Dixit Dominus. Mas dessa concreta obra nunca é possível esquecer a extraordinária gravação de Gardiner com o Monteverdi Choir em 1977, gravação ainda com os intrumentos tradicionais da então designada Monteverdi Orchestra, antes da formação dos English Baroque Soloists com instrumentos de época, realização de um virtuosismo e esplendor vocais incomparáveis (inclusive o “remake” do próprio Gardiner não atinge tais níveis), disco Erato que ainda se encontra a preço económico – e um dos grandes registos haendelianos e, a meu ver, uma das extraordinárias gravações de uma obra coral.
 
 
 
E quanto ao Magnificat, há dois grandes paradigmas interpretativos, em tudo contrastantes: a exuberância festiva quase teatral de Gardiner, com a Cantata BWV 51 “Jauchzet Gott in allens Landen”,e o fervor filo-pietista de Herreweghe, numa coplagem em especial coerente com a Cantata BWV 80 “Ein fest Burg ist unser Gott”.

Takeshi Kitano - I

 

 

 

Polícia Violento (1989)

Sonatina (1993)
Dvds Prisvideo
 
 
 
 
Bem-Vindo, Kitano-San!
 
 
Takeshi Kitano é um dos mais importantes autores recentes japoneses, totalmente  desconhecido em Portugal, a não ser pela sua participação, no papel do Sargento Hara, em Furyo  de Nagisa Oshima, cujo título internacional era uma frase por ele pronunciada: Merry Christmas Mr. Lawrence.
 
Actor e"entertainer" televisivo, Kitano atingiu a celebridade nos anos 70, como parte de um duo, os “Beats” -  “Beat” Takeshi é o nome pelo qual continua a ser reconhecido pelo público japonês. Mas em 1989 Kitano haveria de surpreender tudo e todos com The Violent Cop, filme  por ele protagonizado e dirigido, espécie de Dirty Harry/ Clint Eastwood japonês, obra de uma surpreendente mestria, em que o género de filmes de gangsters, dos yakusa japoneses, era o veículo para um relato de auto-destruição.
 
Se Kitano, ainda que operando dentro de uma tradição japonesa, tinha como parentes cinematográficos não só Eastwood como Jean-Pierre Melville (será um acaso que o mais importante título do realizador francês, Le Samourai, tivesse uma referência japonesa?), os sucessivos filmes mostrariam uma cada vez maior auto-destruição da sua "persona", como em Boiling Point, abstendo-se mesmo de aparecer em A Scene at the Sea, filme praticamente sem palavras, tendo como personagens principais dois adolescentes surdos-mudos.
 
Mas a reapropriação/descontrução mais admirável dos códigos dos filmes de yakusa ocorreria com Sonatina, em que a personagem de Kitano é conduzida ao suicídio. Como Eastwood, Kitano é um grande actor/autor que, trabalhando dentro das regras da indústria, soube afirmar uma personalidade fortíssima. Laborando dentro dos códigos de géneros específicos faz implodi-los. Talvez por isso Quentin Tarantino considere que ele e Kitano têm uma comum aproximação ao cinema.
 
 
Publicado no Catálogo do Festival Monumental-95
 
 
 
Takeshi Kitano foi um dos autores que tive a oportunidade de introduzir em Portugal, sempre no pressuposto de que a actividade crítica pode prosseguir na programação, que ao crítico cabe também “descobrir” e, tanto quanto possível, tentar apresentar concretamente em público as suas escolhas, ser “le passeur”, como dizia Serge Daney.
 
Se Kitano se veio depois a tornar-se mesmo num “autor de culto”, esses dois filmes nunca vieram, no entanto, a ser estreados comercialmente. Passados 12 anos, eis que são enfim editados em dvd pela Prisvideo, aliás pouco tempo depois de uma outra edição, da Midas, com A Scene at the Sea/ Um Lugar à Beira-Mar e Getting Any/ Estás-te a Safar?, este já desse mesmo ano de 1995.
 
Com o posterior e fabuloso Hana-Bi, permanecem ainda estes primeiros filmes como os seus melhores – e são também uma declaração ética.
 
À falta da visão em sala, que é o espaço constituinte do cinema, possibilitam todavia os dvds a revisão, quando não às vezes mesmo a descoberta. E se Takeshi Kitano tem recentemente podido aparecer cada vez mais como um autor “cansado”, num exercício constante da auto-derisão que já se confunde com a mera paródia de si próprio, estes primeiros filmes eram já a declaração de uma estética de “haiku” cinematográfico, entre o confronto violento e do silêncio.

Apoteose para P. T. Anderson

“There Will Be Blood”
 
 
A estreia hoje nos Estados Unidos de There Will Be Blood de Paul Thomas Anderson, numa “limited release” só em Los Angeles e Nova Iorque para o filme ser qualificável para os óscares, suscitou um delírio crítico como há muito não ocorria.
 
Inspirado em Oil de Upton Sinclair (e só o facto de alguém se lembrar de Upton Sinclair nos dias que correm já é surpreendente), de facto só na sua primeira parte, ou três capítulos iniciais, o filme relata a saga de um “capitalista da fronteira” (Daniel Day Lewis), prospector de ouro, cuja sorte muda quando do “boom” do petróleo no Sul da Califórnia na última década do século XIX.
 
Se apesar das diferenças de época não seria difícil advinhar paralelismos com O Gigante de Georges Stevens, tendo de resto grande parte da rodagem ocorrido na mesma zona de Marfa, no Texas, a lista de referências colhida nas críticas do “New York Times”, do “Los Angeles Times”, da “Slate” e do “Village Voice” é exponencial: Greed de Stroheim, Citizen Kane de Welles, O Tesouro da Sierra Madre de Huston, Chinatown de Polanski e até a abertura de 2001 de Kubrick!
 
Mesmo com delírios, de qualquer modo sinais das fortes paixões que o filme suscita, o que importa ressaltar é, além da ansiedade acrescida pelo filme, a autêntica consagração do autor de Magnólia, esse que é o mais singular dos actuais “wonderboys” do cinema americano (Quentin Tarantino, David Fincher, Gus von Sant ou Todd Haynes).
 
“California Burning” é o sugestivo título da crítica de Jim Hoberman no “Village Voice” (sim, depois de Magnólia, há novamente uma catástrofe de ecos bíblicos). E falando ainda do acolhimento crítico, os californianos foram os mais sensíveis, em concreto os críticos de Los Angeles que o votaram “melhor filme do ano”.
 
Houve mesmo uma espécie de divisória “West Coast”/”East Coast”, já que os críticos de Nova Iorque, Washington e Boston optaram por No Country For Old Men dos Coen, adaptado de Cormac McCarthy, os de Nova Iorque tendo ainda assim dividido láureas entre dois: melhor filme, realização, argumento e actor secundário (Javier Bardem) para No Country, melhor actor (Daniel Day Lewis) e fotografia (Robert Elswit) para Blood.
 
 
 
 
“No Country For Old Men”
 
 
A notar, pese ainda a divisão de favores críticos entre uma costa e outra, é a coincidência dos dois filmes terem contudo sido rodados na mesma zona do Texas (e a mansão usada para os interiores de There Will Be Blood já tinho sido cenário dos Coen em The Big Lebowski!), o que é importante enquanto indicador de um dado fundamental: um e outro retomam o grande espaço e a mitologia americana.
 
Era tempo de haver algo assim (de se criarem expectativas para algo assim), quando o grande imaginário americano parecia confinado ao mais solitário dos solitários, Terence Mallick (também esse citado a propósito de There Will Be Blood), e quando a indústria cinematográfica está dependente das pipocas, ou das “franchisings”, com os  nº3 ao cubo, O Homem Aranha 3, Shrek the Third e Os Piratas das Caraíbas 3 que, juntamente com Transformers, foram os raros “blockbusters” do ano.
 
Entretanto, e falando em acolhimento críticos, houve de algum modo um eixo Los Angeles-Nova Iorque para Juventude Em Marcha de Pedro Costa, exibido no circuito paralelo. Depois dos críticos de L.A. o terem votado “melhor filme independente/experimental”, nos “ten bests” dos críticos do “New York Times” (em que há a prática bem mais límpida e salutar de cada um indicar as suas escolhas, em vez de uma votação corporativa), Manohla Darlis, depois de indicar There Will Be Blood e Zodiac “ex-equo” como os seus favoritos, continua a bater-se pelo filme de Costa, o único não-estreado comercialmente que fez questão de reter na lista: “This movie has not been picked up by an American distributor, making it hard for even intrepid filmgoers to see. If it makes it to DVD, I promise to let you know” – se alguém estiver interessado em tomar nota…
 
Só para não haver confusões a propósito destas várias “escolhas críticas”, recorde-se que Cartas de Iwo Jima de Clint Eastwood é um filme de 2006.

Bach - II

 

 

 

 Bach
“Tombeau de Sa Majesté la Reine de Pologne” [“Tauerode –‘Lass, Fürstin’”]
Prelúdio e Guga BWV 544, Missa BWV 234
Katharine Fuge, Carlos Mena, Jan Kobow, Stephan MacLeod
Francis Jacob
Ricercar Consort, Philippe Pierlot
Mirare, dist. Harmonia Mundi
 
 
Pesem ainda algumas qualidades, e mesmo o interesse musicológico da proposta, todavia concretizada de modo incipiente, este disco não deixa também de merecer uma particular chamada de atenção por motivos que vão sendo “representativos” mas não dos mais lisongeiros.
 
As práticas musicológicamente fundamentadas da “nova música antiga e barroca” têm também conduzido ao uso e abuso das operações de “reconstituição”, nomeadamente em disco. E assim sucede por vezes assistirmos mesmo a cenas caricatas de distribuidores e vendedores a clamar “premième mundial!, première mundial!”, quando não se trata de mais que outra designação, outra embalagem, ou quanto muito outra hipótese, para obras bem conhecidas.
 
Olhando para a capa deste disco, o seu modo de apelo público, alguém pode perguntar: “Tombeau de Sa Majesté la Reine de Pologne”?! Um inédito de Bach, pelo menos um inédito discográfico?!
 
Pensando um momento, para quem minimamente conheça, não será difícil contudo identificar a obra, a célebre Ode Fúnebre, “Lass, Fürstin”. Christiane Eberhardine de Branderburg-Bayreuth permaneceu fiel à Igreja Reformada e retirou-se quando o marido, o Eleitor Frederico Augusto I da Saxónia, se converteu ao catolicismo, condição “sine qua non” para ser proclamado Rei da Polónia – e circunstância na origem de Bach ter escrito para a côrte de Dresden a sua grande obra de rito latino, a Missa em si menor.
 
Quando a princesa morreu, um serviço fúnebre em sua homenagem realizou-se na Igreja de São Paulo da Universidade de Leipzig. Se é certo que “Tombeau de Sa Majesté la Reine de Pologne” é a indicação constante no manuscrito de Bach, pois que o francês era a língua culta, não menos se deve considerar elementar que uma obra seja identificada nos termos em que é devidamente conhecida.
 
De resto, o interesse da proposta está propriamente na hipótese de reconstituição. Um dos grandes estudiosos de Bach, Gilles Cantagrel, que também assina as notas do livrete, tinha colocado a possibilidade de um nexo entre o Prelúdio e Fuga BWV 544 e a Ode, de resto ambas na tonalidade de si menor. Os testemunhos referindo que uma peça de orgão foi tocado no início do ofício e outro no fim, a hipótese estabelecida neste disco é que foram os referidos Prelúdio e Fuga, sendo ainda interpolada outra peça de orgão entre a primeira e a segunda partes da Ode, correspondente ao momento em que na cerimónia terá ocorrido propriamente a oração fúnebre. A anteceder figura uma das quatro breve Missas, apenas com “Kyrie” e “Gloria”, de acordo com uma prática conservada na liturgia reformada.
 
“Hèlas, hèlas, hèlas!”. O debate sobre “o coro de Bach”, depois das teses minimalistas de Joshua Rifkin, tem agitado as hostes musicológicas como nenhum outro – ou antes, só como as polémicas em torno de Chostakovich, subsequentes ao discutível Testemunho publicado por Solomon Volkov. Mas nem vale a pena citar os argumentos em confronto perante a manifesta evidência de que este coro de quatro solistas se abeira da indigência, e que o mesmo cabe dizer das intervenções individuais, excepto um momento de Graça particularmente dolorosa: a ária de contralto com violas “Wie starb die Heldin” por Carlos Mena – e o contratenor revelou-se, recorde-se, quando da primeira Festa da Música em Lisboa, em 2000, cantando Bach com este mesmo Ricercar Consort, e recorde-se também que a Mirare é a editora entretanto criada por René Martin, director artístico do evento entretanto “expulso” do CCB.
 
A qualidade da realização instrumental, do orgão solo de Francis Jacob e das flautas de Marc Hantaï e Georghes Barthel em particular, é inegável, mas insuficiente perante a manifesta inépcia da concepção e escolhas vocais.
 
E, para além disso, é incómodo verificar uma vez mais que são pequenas editoras independentes, e sobretudo votadas ao barroco e à música antiga, que optam por estratégias de marketing discográfico alardeando uma novidade que quanto muito é relativa, e em todo o caso sem a probidade suficiente nos seus modos de apresentação pública.
 
Quanto à Tauerode -‘Lass, Fürstin’, por mim continuo fidelíssimo a uma interpretação que se me afigura uma das escolhas mais salientes na discografia de Bach, a de Philippe Herreweghe, na Harmonia Mundi.
 
 

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