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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Dias de Música

 

 

É importante assinalar que se avizinham dias de música excepcionais – e não, não me refiro aos Dias da Música no CCB, em relação aos quais, além de o programa não me suscitar particularmente, permanece a minha reserva ética de princípio sobre uma iniciativa que, por vontade majestática de António Mega Ferreira, veio substituir a Festa da Música, a extensão em Lisboa da “Folle Journée” de Nantes, dela retirando todavia o figurino da sucessão de concertos de 45 minutos. Refiro-me sim a eventos da temporada da Gulbenkian, concretamente do ciclo Grandes Orquestras, e do programa “Música e Revolução” da Casa da Música.
 
Excepcional é a possibilidade de ouvir, no Coliseu dos Recreios, apenas com três dias de intervalo, as duas mais reputadas orquestras juvenis, mas atenção, juvenis e contudo de grande nível, a Orquestra Juvenil Gustav Mahler, que foi o modelo, e, pela primeira vez em Portugal, àquela outra que foi formada tendo a Mahler como modelo, a venezuelana Orquestra Juvenil Simón Bolívar, com o seu electrizante director, Gustavo Dudamel.
 
Para mais, hoje, terça-feira, às 21h, os Mahler tocam Mahler, a Sinfonia nº3, o que é caso simbólico, sob a direcção de Ingo Metzmacher, enquanto no sábado, 25 de Abril, à mesma hora, os Bolívar interpretam nem mais nem menos que a obra entre todas “revolucionária”, A Sagração da Primavera de Stravinsky, esse “sacre” latino-americano que é Sensemayá de Silvestre Revueltas, e fieis às suas origens, mas pode-se que também mais de cor local “folclórica”, Santa Cruz de Pacairigua de Evencio Castellano.
 
A Casa da Música vem organizando à volta do 25 de Abril, o ciclo de “Música e Revolução”, o seu único exemplo de programação verdadeiramente transversal. Este ano, o terceiro do ciclo, e se bem que o acontecimento de maior importância vá ser, a 2 de Maio, uma obra que surge lateralmente à temática, Gruppen (enfim!) de Karlheinz Stockhausen, de 1956/57, o leitmotiv é o Maio de 68. Ora, facto também ele absolutamente de excepção, as duas grandes obras do ano de 1968, e de algum modo sintomáticas dessa conjuntura cultural, Sinfonia de Luciano Berio (que, de resto, entre muitas outras citações, do Maio parisiense ou de O Cru e o Cozido de Lévi-Strauss, é um testemunho da reapreciação de Mahler, e uma homenagem, com a longa citação do Scherzo da Sinfonia nº2) e Stimmung de Stockhausen, serão ouvidas em dias sucessivos, respectivamente sexta às 21h e sábado às 18h.
 
Merece ainda referência, de tal modo é intrigante e original, o projecto musical e poético Caldo Dísio/ Desejo Ardente, proposta do violetista Christophe Desjardins e do filólogo Frederico Sanguinetti, na Culturgest, sexta e sábado 21h30. Conhecemos Desjardins como um grande intérprete de música contemporânea (tem um maravilhoso dedicado a obras de Berio e Feldman). Neste caso a sua viola dialogará com poemas medievais e renascentistas, de Dante, Boccaccio e outros, recitados por Sanguinetti.

Anunciam-se dias de excepção, efectivamente.

 

As oratórias não-biblícas

 

 

 

 

 

 

Haendel
Theodora
Dawn Upshaw, David Daniels, Richard Croft, Lorraine Hunt, Frode Olsen
Orchestra of the Age of Enlightment
Cenografia de George Tsypin
Encenação e realização de Peter Sellars
Orchestra of the Age of Enlightment
Direcção de William Christie
Produção do Festival de Glyndebourne
Dvd Warner/NVC 
 
Hercules
William Shimell, Joyce DiDonato, Toby Spence, Ingela Bohlin, Malena Ernman
Encenação de Luc Bondy
Les Arts Florissants
Direcção de William Christie
Produção do Festival de Aix-en-Provence
Realização de Vincent Battaillon
2 DVD Bel Air , dist. Harmonia Mundi
 
Pois que falei, a propósito da Semele, da importância de ter em dvd acesso a realizações cénicas de todas as três oratórias não-biblícas de Haendel, cabe recordar as outras duas.
 
Entre as encenações de ópera que contribuíram para a nomeada de Sellars houve um Giulio Cesare de Haendel absolutamente derisório - à época, que foi a da primeira Guerra do Golfo, era impossível não ver nesse César revisto pela CNN uma paródia de Bush pai, o que, longe de ser uma entorse à obra, era uma peculiar leitura de um carácter paródico que ela já tem.
 
A encenação de Theodora procede daí: também Valens, o pró-consul romano, começa por fazer uma conferência de imprensa. Mas o quadro é bem mais dramático, com os romanos apresentados como força de ocupação e os cristãos como resistentes. O que podia ser mais outro estapafúrdio exercício “neoconceptual” ou "desconstrutivista" torna-se, no entanto, pungente pela inteligência de encenador e intérpretes na construção das personagens de Theodora (Upshaw), Dydimus (Daniels) e sobretudo a malograda Hunt (Irene), que, depois da sua memorável Medée de Charpentier, mostrava de novo a intérprete trágica de excepção que era.
 
Este dvd não é apenas o registo de uma produção excepcional - é também a peça capital da discografia de uma das mais extraordinárias obras de Haendel.
 
Oito anos depois Christie dirigia de novo cenicamente outra oratória não-biblíca, o Hercules, este mesmo designado “a musical drama”., inspirado em Sófocles. Quanta tinta fez correr esta produção do Festival de Aix-en-Provence de 2004, quanta indignação da nova ortodoxia, do novo "reaccionarismo barroco", que "exige" que as obras sejam apresentadas e encenadas estritamente segundo os códigos "da época"!
 
Luc Bondy não seria o encenador que mais ocorreria para uma proposta deste tipo, quanto se poderia pensar por exemplo num Peter Stein (e vendo-se o registo do espectáculo, torna-se patente que Bondy, que sucedeu a Stein como director da Schaubühne, guardou a memória de espectáculos daquele, como de Klaus-Michael Grüber). O próprio fartou-se aliás de explicar como a princípio a proposta lhe pareceu excêntrica aos seus interesses, acabando por se deixar convencer, fruto de persuasão também do conhecido dramaturgo britânico Martin Crimp. De facto, Bondy viria a fazer um díptico: este Hercules e Cruel and Tender, peça do próprio Crimp, reescrevendo a tragédia de Sófocles.
 
A obra chama-se Hercules, mas a formidável personagem principal, uma das mais desmesuradas de Haendel, é a sua esposa, Dejanira, aquela que aguarda o herói e que depois, quando o vê regressar com a bela princesa cativa Iole, é desvairadamente devorada pelo ciúme. O imenso potencial dramático da obra não obsta a que existam questões de género e de estilo consubstanciais à matéria musical, como a repetição da capo ou o papel do coro, que constituem, e que certamente constituíram, importantes problemas cénicos.
 
O que pode desconcertar numa recepção atenta deste duplo DVD é a verificação que as direcções cénica e musical de Bondy e Christie respectivamente seguem em separado. Mas o trabalho aproximado da câmara cria uma relação de todo diferente de uma perspectiva na plateia, e neste caso particularmente esclarecedor, porque se diria interna ao bunker da cenografia de Richard Peduzzi. Deste modo é possível seguir atentamente o drama de Dejanira (formidável Joyce DiDonato), como também o de Iole, e o coro ganhar pela montagem um outro sentido dramático (por exemplo, a entrada em Jealousy! Infernal pest).
 
O concreto objecto, o DVD, é assim suficientemente interessante, e mesmo que não se afigure uma referência, como a Theodora por Sellars e o mesmo Christie, revela uma perspectiva menos patente de Haendel, e do modo como nele se cruzaram a tradição inglesa, que consolidou, com a reminiscência operática e italiana – perspectiva, a das oratórias não-bíblicas, agora completada com a Semele.

 

A jóia de Semele

 

Haendel
Semele
Com Cecilia Bartoli
Encenação de Robert Carsen
Direcção de William Christie
Produção da Ópera de Zurique
Realização de Feliz Breisach
2 dvds Decca, dist Universal
 
 
Semele é uma das mais insólitas – talvez a mais insólita mesmo – obra de Haendel e uma das suas jóias maiores. Como venho referindo, três das oratórias, Semele. Theodora e Hercules não são bíblicas (e só a segunda é de tema cristão), podendo-se considerar autênticos dramme per mùsica, embora em princípio – Haendel já tinha abandonado os palcos cénicos – não destinadas a representação, o que todavia tem vindo a acontecer, com plena justificação, nos últimos anos.
 
Das três, Semele é cronologicamente a primeira – 1744 Como também já referi, o compositor já se dedicava de modo consistente à oratória desde Saul, em 1739. Não sabemos exactamente se ele terá tido consciência logo depois que Deidamia, de 1741, era a sua última ópera, mas o triunfo de O Messias, no ano seguinte, fê-lo dedicar-se ainda mais à oratória. Certo é que as rivalidades operáticas não o largaram: depois de ainda outra oratória, Sansão, de 1743, e de várias peripécias, incluindo problemas de saúde e financeiros do compositor, ele fez face aos imbróglios com uma obra “in the manner of an  oratório” “in the manner”, note-se bem, destinado ao concerto, mas não exactamente uma oratória, e com as bem patentes marcas de um consumado autor de óperas (é de lamentar que um livrete deste dvd inclua apenas um texto do encenador sem quaisquer notas sobre tão peculiar obra).
 
A sua escolha foi das mais singulares: uma peça do dramaturgo da Restauração William Congreve, uma comedy of manners, uma comédia sexual, e de que maneira! Em toda a obra de Haendel Semele rivaliza apenas com Agrippina e Giulio Cesare na sensualidade e carácter lúbrico – e é aparentemente uma oratória! Semele é um dos grandes papéis haendelianos, e há também o de Juno, nomeadamente com a famosa ária Hence, Íris, hence away!.
 
 
A certa altura da sua carreira, a Bartoli fez saber do seu interesse em gravar um recital dedicado a Haendel. Quando por circunstâncias inesperadas ela cantou na Òpera de Zurique a oratória romana La ressurezione dirigida por Marc Minkowski, pensou-se (escrevi-o a altura) que esse recital se aproximava. Afinal fizéramos em conjunto um mais original trabalho, dedicado apenas ao período romano do compositor, e também dos seus coevos Alessandro Scarlatti e Caldara, o magistral Opera Proibita, “ópera disfarçada” (porque interdita nos Estados Papais) em oratórias e cantatas.
 
O intendente Alexander Pereira tornou a Ópera de Zurique numa das mais reputadas da Europa. É lá, e apenas lá, que Cecilia Bartoli canta regularmente em cena. Em rigor, esta Semele não é uma “produção” daquele teatro. A encenação de Robert Carsen data de 1996, e foi originalmente concebida para o Festival de Aix-en-Provence (foi Minkowski que então dirigiu), na mesma altura, se bem me lembro, que Peter Sellars e Wiliam Christie faziam em Glyndebourne a sua extraordinária realização de Theodora. O toque e os tiques de Carsen estão bem patentes: as cadeiras semi-voltadas de costas para o público, como na Tosca apresentada no ano passado no São Carlos que foi um dos seus primeiros trabalhos, os tapetes vindos directamente da sua anterior encenação em Aix, essa admirável, do Sonho de uma Noite de Verão de Britten (existe em dvd, captado no Liceo de Barcelona), mas a realização nem por isso deixa de ter o seu charme.
 
É pela Bartoli que nos precipitamos para este dvd, e ela é magnificente, strepitosa. Ei-la de novo com “ópera disfarçada”, mas desta vez aliando o esplendor vocal à inteligência dramática e cénica, tão magistral na deslumbrante agilidade como na arte do abandono em Endless pleasure, Oh Sleep (divino pianíssimo!) ou With Fond Desiring.
 
Não é surpresa que os parceiros sejam poucos mais que comparsas. Anton Scharinger (Cadmus) e Birgit Remmert (Juno) são erros de casting, quando ambos já deram provas suficientes noutros repertórios, havendo a agravante da segunda não ter meios para cantar Hence, Íris, hence away, Isabel Rey (Íris) é frágil embora cenicamente versátil, Liliana Nikiteanu (Ino) está mesmo desfasada. Quanto a Charles Workman (Júpiter), tão notável intérprete de tragédies lyriques, de Rameau ou Gluck, tem uma bela linha de canto mas escasseia-lhe a autoridade e a virtuosidade do papel.
 
A Wiliam Christie já se lhe ouviram em Haendel direcções mais vigorosas (é mesmo um especialista), o que é tanto mais estranho, quanto La Scintilla, o agrupamento barroco da Òpera de Zurique, tem melhores capacidades do que aqui deixa ouvir de modo um pouco aquém da beleza plástica da obra, como é estranho que, sendo Christie um consumado director de vozes, se mostre ainda assim incapaz de moldar a vocalidade de vários (quase todos) os solistas. É a presença em cena da Semele da Bartoli que tudo transfigura.
 
A Semele conta com um dos registos mais “anómalos” da discografia haendeliana, com Kathleen Battle (sim, essa, imagine-se!), Marilyn Horne e Samuel Ramey, com uma orquestra “moderna”, a English Chamber Orchestra, e direcção de John Nelson (DG). Em termos musicais globais é essa a gravação a reter. Mas, e apesar de todas as reservas, esta memorável interpretação da Bartoli, a possibilidade de dispor de uma realização cénica de tão insólita obra e, ainda, o facto de com esta ficarem disponíveis em dvd produções teatrais de todas as três oratórias não-biblícas de Haendel, faz com que não se possa deixar de considerar este registo – e de, com prudência ainda, o recomendar.
 
Mortal amada e amante de Júpiter, Semele perde-se pela ambição desmedida de alcançar a divina imortalidade. Quanto à Semele da Bartoli, essa é mesmo divinal.

 

Haendel esquartejado

 

 
Foto de Alfredo Rocha
 
 
 
 
 
Handel
Agrippina
Nuno Côrte-Real
O Velório de Cláudio
Encenação de Michael Hampe
Direcção de Nicholas Kok
São Carlos, 17 de Abril
 
 
 
 
BASTA! Basta de disparates e assassinatos no São Carlos, como agora com a Agrippina de Haendel!
 
Escolheu o teatro comemorar os 250 anos da morte do compositor assinalando também o tricentenário da estreia do seu grande sucesso público italiano, ocorrida no mais prestigiado teatro de Veneza, o S. Giovanni Crisostomo.
 
Logo os disparates começaram com a encomenda a Nuno Côrte-Real de um intermezzo à maneira da opera buffa que se intercalava na opera seria, Acontece que tal prática se constituiu sim com a sucessiva ópera napolitana, e que Agrippina pertence ainda esteticamente ao mundo da seiscentista ópera veneziana, tal como se encontrava já exemplarmente definido na L’incoronazione di Poppea de Monteverdi (de que Agrippina é em termos de referentes históricos uma espécie de préquela), misturando situações sérias e cómicas – Haendel guardará a memória disso ainda em obras muito mais tardias como o Giulio Cesare e o Serse. Quem não sabe isso, ou seja, que não há qualquer lugar a um intermezzo na Agrippina, isto é, o senhor Christoph Dammann – essa “brilhante” personalidade desencantada pelo ex-secretário de Estado e intendente-geral dos teatros, Mário Vieira de Carvalho, responsável primeiro pela actual situação – é um ignorante de história de ópera e, como tal, não tem qualificações para ser director de teatro.
 
Acontece que o libretista escolhido por Côrte-Real, José Luís Peixoto, em nada fiel ao espírito da encomenda, escreveu de facto uma préquela à ópera de Haendel, O Velório de Cláudio ou representação bufa de personagens históricas, texto indigente (escapa-me a piada de no velório de um suposto morto haver uma batalha de pastéis de bacalhau!) que em nada faz jus à sua reputação, e que dada a natureza do texto o encenador Michael Hampe decidiu, com acerto, colocá-lo antes como prelúdio.
 
Considero e estimo Côrte-Real como um dos mais talentosos jovens compositores portugueses, mas depois de A Montanha há dois anos na Gulbenkian, no Fórum “O Estado do Mundo”, este é outro desastre, uma música sem personalidade, que de novo parece uma má filtragem, com alguns “pós” modernos, de certos compositores “nacionais” da Europa Central da primeira metade do século (Janácek ou Kodaly).
 
Mas o pior vem depois: em vez de celebrado Haendel é, ó socorro, esquartejado: das mais de 3h30 de música da Agrippina restam 2h25! Corta aqui e ali, corta a secção b e o da capo (e portanto a arte da variação ornamental), corta mesmo no final a personagem de Juno. Isto faz-se?! É isto a responsabilidade de um Teatro Nacional?
 
No elenco apenas três cantores, Alexandra Coku (Agrippina), Musa Nkuna (Nerone) e Andrew Wattts (Ottone) revelaram algumas noções do canto haendeliano, mas com tantos limites ou falhanços pelo meio! Coku mostrou alguma autoridade, embora também opacidade nos agudos em Pensieri, para logo depois falhar o Ogni vento que conclui o Acto II e terminar a ópera esgotada. Ao contratenor Watts fugiu-lhe sistematicamente a voz de cabeça para voz de peito, e o maravilhoso lamento de Ottone esteve longe de ser pungente como requerido. A Nkuma faltou-lhe plasticidade de voz.
 
Os outros foram um horror, quase todos. Reinhard Dorn (Claudio), que numa troca de papéis se imaginou a cantar, mal, o Don Bartolo do Barbeiro de Sevilha, Manuel Brás da Costa (Narciso) e Chelsey Schill (Poppea) fizeram entre eles um festival de desafinação, para sofrimentos dos nossos ouvidos e melomania handeliana. Schill, a tal que é de facto a única cantora-residente no São Carlos cantando em (quase) todas as óperas (onde estão as prometidas audições de cantores portugueses?) merece uma referência especial, de tão estúpida de superficialidade (sim, escrevi estúpida, no tocante à negação da inteligência musical) se mostra a sua concepção de boneca mecânica a precisar de urgente reparação. Quanto a Luís Rodrigues (Palante), pode ser um dos melhores cantores portugueses, é-o de facto, mas o barroco e o canto fiorito em geral não se lhe adequam.
 
Ao longo de muitos anos escrevi vezes sem conta que Michael Hampe era “o mais chato encenador do mundo” para agora me dizer. A ancenação é chata e rotineira, sem uma ideia, a não ser um beijo incestuoso de mão e filho, Agrippina e Nerone, que nem aquece nem arrefece, é apenas inconsequente.
 
Mas o pior, o pior mesmo (com Chelsey Schill) é a direcção quadrada de Nicholas Kok, a braços, é certo, com a difícil tarefa de pôr membros da Sinfónica Portuguesa a tocar Haendel. Nada há de gradações dinâmicas e de sentido do fraseado, de propulsão rítmica, e os oboés mostram mesmo sérias dificuldades. E de nada vale ter um contínuo “barroco” quando é tão pobre (como é que um músico como o cravista Marcos Magalhães se fica pelo nível zero?!), desagradável mesmo (Kenneth Frazer no violoncelo barroco).
 
Não muito depois de tomar posse, o ministro José António Pinto Ribeiro, tinha dito da sua discordância da Op.Art, esse organismo aberrante que reúne o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado – valendo-lhe aliás logo resposta de Vieira de Carvalho. Como se tornou no ministro inexistente deixou as coisas continuaram. Assim, mais que co-responsável, é ele altamente responsável pela permanência do incompetente senhor Dammann, e portanto pela falta de respeito pelos níveis de “qualidade artística” legalmente fixados.
 
Ò socorro, ó da guarda – Haendel está a ser esquartejado no São Carlos! Basta e BASTA!
 
 

A síndrome dos Coches

 

Quem tutela a “cultura” afinal?
 
 
 
 
O ministério da Cultura está paralisado, e depois de uma Isabel Pires de Lima que acumulou disparates e prepotências, o actual titular, José António Pinto Ribeiro, é o ministro inexistente. Quanto ao primeiro-ministro, o seu desinteresse pela Cultura apenas foi quebrado por uma intervenção que, de tão demagógica, tem de ficar registada – a sua participação, a 9 de Janeiro passado, no anúncio do lançamento do programa INOV-ART proclamando que “É isso que estamos aqui a fazer: dar mais oportunidades aos jovens no domínio da cultura e para que afirmem internacionalmente o nome de Portugal”, ditame que é no mínimo causador de estupefacção.
 
A verdadeira oposição, ou o sujeito de um discurso de tal modo consistentemente crítico que não pode deixar de ser considerado de oposição, estava afinal na bancada da maioria, e até era dela vice-presidente, mas silencioso: o ex-ministro Manuel Maria Carrilho produziu um documento que é um diagnóstico arrasador.
 
“Uma legislatura perdida?” pergunta-se mesmo ele, constatando o malogro (total) do Compromisso para a Cultura do programa do governo socialista
 
Acontece, todavia, que há no governo quem, não sendo tutela, se interesse por matérias culturas ou certas matérias culturais.
 
Tomemos o caso tão polémico e extravagante do novo Museu dos Coches. Quem [o] quis afinal?
 
A resposta está na evidência dos factos: a responsabilidade incube à Sociedade Frente Tejo, da esfera do ministério da Economia. Enquanto Pinto Ribeiro é inexistente, Manuel Pinho gosta de dar nas vistas e de iniciativas vistosas.
 
Embora presumivelmente a maioria parlamentar chumbasse a iniciativa, propor em plenário a chamada à comissão de Cultura de ambos os ministros para esclarecer quem de facto tutela o quê, eis o que era mais que justificado pelos factos desta “legislatura perdida”, como este extravagante projecto de novo Museu dos Coches surgido na esfera do Ministério da Economia e Inovação – desta balofa “inovação” que é a síndrome que agora atingiu os centenários coches.
 
 
 
Extractos da coluna O Estado da Arte em linha na ArteCapital.

 

 

 

 

"Furore" e furor

 

 

 

 

Haendel
Furore
Árias de “Serse”, “Teseo”, “Giulio Cesare”, “Admeto”, “Hercules”, “Semele”, “Imeneo”, “Ariodante” e “Amadigi”
Joyce diDonato
Les Talens Lyriques, Christophe Rousset
Virgin
 
 
A meio-soprano norte-americano Joyce DiDonato começou por se notabilizar em papéis rossinianos, no Barbeiro de Sevilha e na Cenerentola. De Rossini a Haendel foi um passo, o que se compreende, porque dadas ainda notórias diferenças, como os affetti da estética barroca próprios às óperas do caro sassone, ambos são os grandes mestres (eles sim, se bem que possamos acrescentar Vivaldi) do que é efectivamente o bel canto, o canto ornamentado – e não, como erroneamente (não me canso de o repetir) se repete, os compositores do primeiro romantismo, Bellini e Donizetti, já de canto spianato (de linha aplanada), embora ainda com alguns resquícios “belcantistas”.
 
Em 2004, DiDonato estreava-se em Haendel num delicioso disco de duetos operáticos com Patrizia Ciofi, “Amor e gelosia” (Virgin), imaginativamente organizado e dirigido, surpresa, por Alan Curtis – ele que por hábito tão académico é. Entretanto cantou em cena esse grande “papel” que é a Dejanira do Hercules, uma das tais oratórias não-biblícas de Haendel, verdadeiros dramme per mùsica, que têm vindo a ser representadas com alguma regularidade. A sua voz também tem vindo a evoluir, mais aguda, entre o mezzo e o soprano, e de facto até gravou mesmo uma parte de soprano, outro papel handeliano, o de Alcina na ópera homónima, gravação que aliás acaba de ser lançada – a extensão e facilidade da sua voz são aliás bem patentes neste disco.
 
Falei dos affetti barrocos. DiDonato não só escolheu Haendel para o seu primeiro recital, como um tipo de árias particular, de um affetto específico, o furore, mostrando os seus formidáveis meios. Todavia é preciso fazer algumas precisões: escolheu a cantora aproximar-se de uma maior caracterização de duas personagens, a Medea de Teseo (tenha ela oportunidade e que espantosa maga deve ser) e a Dejanira de Hercules, com várias árias de uma e outra, sendo que Dolce riposo da primeira e Then I am lost… da segunda não são árias de furore. Por outro lado, e apesar da secção central, é duvidoso que o famoso Scherza infida de Ariodante caiba no objectivo programático – é mais um lamento. Ora, contradição, a interpretação dessa ária, superlativamente admirável, é o pináculo do recital, enquanto no papel que mais se esperaria de DiDonato, o Where shall I fly? de Dejanira (e que por alguma razão encerra o programa), porventura por marcas da experiência cénica, é de um exagero de efeitos de todo despropositado.
 
A escolha do programa é interessantíssima, mesclando trechos de obras mais conhecidas com outras que o são muito menos. A robustez da voz e a facilidade da emissão impressionam, mas ainda mais a inteligência do rubato e do fraseado, sobretudo da conclusão das frases, e da coluratura (embora com alguns gorgejos dispensáveis), a eloquência (Hence, Iris hence away da Semele, mesmo que não faça esquecer a histórica interpretação de Marilyn Horne), a formidável autoridade (Orride larve…/Chiudetevi miei lumi do Admeto), tudo isso tornam marcante esta estreia em recital de Joyce DiDonato, confirmando-a sem margem para dúvidas como uma intérprete haendeliana a considerar. Infelizmente, e não é pequeno pormenor, o acompanhamento de Les Talens Lyriques e Christophe Rousset é só isso, “acompanhamento” sem chama dramática.
 
 Pelas objecções apontadas também me deixa algo reservado o imenso furor em torno deste recital, que de qualquer modo, é óbvio, não pode deixar de ser um disco recomendado.

 

Uma decepção italiana

 

 

Haendel
12 Concerti Grossi op.6
Il Giardino Armonico, Giovanni Antonini
3 cds Decca L’Oiseau-Lyre, dist. Universal
 
 
 
Um dos acontecimentos mais relevantes no domínio interpretativo da música barroca nos últimos 15 anos foi a chegada tardia – muito posterior aos austríacos, ingleses e flamengos – mas clamorosa dos agrupamentos italianos, renovando profundamente o nosso entendimento da época musical que se estendeu de Monteverdi a Vivaldi. Eis que se diria que, pronto, nestes 250 anos da morte do compositor é chegado a sua altura de partirem “ao assalto” do “Haendel italiano” e “italianizante”. Mas calma…
 
No dia 11 de Janeiro passado ocorreu em Lisboa um dilema handeliano: sendo escassos os concertos comemorativos anunciados pelas instituições musicais portuguesas, logo dois calhavam no mesmo dia e chegavam a sobrepor-se: uma das melhores intérpretes actuais de Haendel, a contralto Marijana Mijanovic, apresentou-se na Gulbenkian; estava esse concerto a terminar e já começava no CCB o de Il Giardino Armonico, com alguns dos Concertos Grossi op.6. Infelizmente o recital de Mijanovic foi um desastre, por a cantora estar em más condições vocais, cortando inclusive uma ária do programa – mais valia ter cancelado o concerto. Entretanto, no que me toca perdi o outro evento, de que me chegaram relatos entusiásticos, deixando-me pesaroso por não ter assistido. Afinal…
 
 
Conta-se que na estadia romana de Haendel, quando da sua primeira oratória, Il trionfo del tempo e del disingano, Corelli, concertino, se terá voltado para o autor e dito a propósito da abertura: “Meu caro saxão esta música é no estilo francês [as aberturas de Haendel são sempre em estilo francês] que não entendo”. E logo o caro sassone escreveu em seu lugar uma sonata em estilo corelliano.
 
Haendel chegou a Inglaterra como compositor de óperas “italiano”, e “italianas” foram também outras obras que aí escreveu. É óbvio que os Concerti Grossi op 3 e op. 6 seguem o modelo de Corelli. É assim lógico que agrupamentos especializados no barroco italiano os abordem – mas atenção, o Haendel propriamente da estadia em Itália já tem sido abordado por intérpretes transalpinos: Alessandrini gravou, e admiravelmente, o tal Il trionfo del tempo e del disingano, Fabio Bonizzoni e La Risonanza estão a fazer na Glossa, como já foi dito, uma notável série das cantatas italianas.
 
Importam estas precisões tais as pretensões que Giovanni Antonini afirma no livrete, não se coabindo mesmo de criticar o “estilo seco de certos agrupamentos, e nomeadamente algumas falanges inglesas e holandesas”. Bem, é caso para dizer que depois de ouvir Il Giardino Armonico o desejo é o de voltar a escutar o brilhantismo e fluidez da Academy of Ancient Music dirigida por Andrew Manze (Harmonia Mundi).
 
E, no entanto, o triplo disco até abre de modo prometedor com um majestoso Concerto nº 1. Mas rapidamente vem ao de cima o gosto forte dos contrastes – o exagero mesmo –, da acentuação dos primeiros tempos e dos golpes das arcadas dos milaneses, desfigurando as frases. Se o ripieno é sólido, o concertino é terrivelmente desconexo.
 
Já o Largo do Concerto nº 2 deixa antever essa desconexão. A partir daí não pára. A Polonaise do Concerto nº3 é transformada numa espécie de “Alla Rustica” de teatralidade sem nexo, o Larghetto e staccato inicial do Concerto nº 5 é a viva demonstração da incompreensão do estilo haendeliano, etc. Surpreendentemente o grupo italiano só dá mesmo um ar da sua graça no menos italiano dos movimentos, a Hornpipe do Concerto nº 7. Sobretudo, tudo ou quase é interpretado da mesma maneira, terrivelmente monótono.
 
Já alguém sugeriu que, por certo involuntariamente, a aliás mirabolante imagem de capa deste álbum, com o grupo fora de um autocarro que parece ter problemas técnicos, é uma inesperada metáfora da “avaria” que o próprio disco é no percurso de Il Giardino Armonico, uma tremenda decepção.
 
 
 
Nota – Dada a inflação de lançamentos e eventos handelianos, também muito haendeliana andará esta página. Apesar de chegarem novos lançamentos quase todas as semanas, tentarei contudo variar da circunstância comemorativa.

 

Haendel, glória e reapreciação - III

 

 

Há por vezes uma perniciosa tendência para estabelecer associações e/ou oposições, como Haydn/Mozart, Verdi/Wagner, Bruckner/Mahler ou Schoenberg/Stravinsky. Assim sucede também com Bach/Haendel.
 
Nascidos no mesmo ano de 1785 são efectivamente esses dois (mas poder-se-ia acrescentar Vivaldi, porque não?), os grandes mestres finais do barroco. Mas a grandeza de Bach é ímpar e dispensa comparações.
 
Homem do mundo, cosmopolita, Haendel pode ser observado noutra perspectiva, inclusivamente não apenas de música mas de história de arte. As suas seis “óperas mágicas”, Rinaldo, Amadigi, Teseo, Orlando, Ariodante e Alcina (as três últimas baseadas no Orlando Furioso de Ariosto), com as suas maquinarias, são a apoteose do barroco, do seu teatro dos prodígios e da estética do maravilhoso
 
Esse é o núcleo axial, embora haja também outras óperas admiráveis, da conhecida e superlativa Rodelinda à quase desconhecida Partenope passando pelo Giulio Cesare, Tamerlano, Agrippina ou Serse. E, é óbvio, há as oratórias, mas não apenas O Messias, Saul, Salomon ou Israel no Egipto – há a praticamente derradeira e em especial comovente Jephta como há as oratórias do período romano, Il Trionfo del tempo e del disingano e La Resurrezione, como há ainda o caso à parte das três oratórias não-biblícas, Theodora, Semele e Hercules, autênticos dramme per musica à sua maneira (e que, de facto, têm sido encenadas – com o lançamento agora da Semele com Cecilia Bartoli, há mesmo dvds de todas as três), ou essa obra extraordinária Ode Pastoral e meditação que é L’Allegro, Il Penseroso ed Il Moderato, baseado em Milton. Como há os Concerti Grossi ou as Cantatas do período romano, algumas delas seguramente obras-primas, como La Lucrezia (uma notável série dedicada a essas cantatas italianas, dirigida por Fabio Bonizzoni, está a ser editada pela Glossa).
 
Glória a Haendel, Aleluia.

 

Haendel, glória e reapreciação - II

 

 

 

Em Junho de 1920, o Prof. Oskar Hagen dava início em Göttingen a um festival Händel (que ainda existe), apresentando Rodelinda, ópera que não subia à cena desde…1736 – e de facto nenhuma ópera de Haendel era representada desde 1754, ou seja, o “Haendel operático” já estava esquecido ainda em vida do autor. Era a estupefacção: Haendel “também” tinha composto óperas? Mas em 1922, o mesmo Hagen publicava uma edição de Giulio Cesare, com diversas transposições para vozes graves – até aos 50 e mesmo 60, barítonos como Walter Berry e Dietrich Fischer-Dieskau cantaram o papel titular tornando o Cesare na única ópera do autor vagamente conhecida, de resto de Haendel se retendo apenas O Messias, a Música Aquática e os Royal Fireworks e um espúrio “Largo”, que de facto é um larghetto, Ombra mai fu, o canto elegíaco a um plátano de Serse na ópera homónima.
 
Mas entretanto também ocorriam os primórdios da chamada “música antiga”. Com Alfred Deller ressurgiam os falsetistas ou contra-tenores. Em 1954, Deller gravou uma integral de uma ópera, Sosarme, para concluir que tanto como a sua voz se adequava a Purcell era desajustada para Haendel. Já do lado de lá do Atlântico o outro contra-tenor, Russel Oberlin, gravava um marcante recital no bicentenário da morte – recital que, atenção, acaba por ser reeditado pela Decca. E havia as cantoras, algumas.
 
Nesse mesmo de 1959, a estação de rádio de Colónia, a WDR, organizava uma versão de concerto da Alcina, com Joan Sutherland (e, em papel transposto, Fritz Wunderlich, o luxo), com um dos primeiros agrupamentos de instrumentos de época, a Capella Coloniensis – e, facto pouco conhecido, seria por representações da Alcina que a Sutherland ganharia o cognome de “La Stupenda”.
 
E Teresa Stich-Randall dava voz a Rodelinda e surgiam as incomparáveis meio-sopranos Marilyn Horne, Maureen Forrester, Teresa Berganza e Janet Baker.
 
Mas ainda em 1959, no tocante à musicologia, Edwar Dent publica Handel’s Dramatick Oratórios and Masques e abre caminho a outra revelação: há mais, muito mais, e do mesmo nível, que O Messias e Israel no Egipto. No ano seguinte foi a vez de Rudolf Ewerhart dar a conhecer o “fundo Santini” conservado na Biblioteca de Münster, dando início à revelação do período romano de Haendel.
 
 
O conhecimento musicológico foi aos poucos criando as premissas de uma reapreciação. Em 1985, o ano do tricentenário do nascimento, Christopher Hogwood, intérprete e estudioso (Handel – Thames and Hudson, 1988), proclamava que o músico “era por vocação um homem de teatro”. Nesse mesmo ano tal vocação dramática era corrobada por uma gravação maravilhosa da Alcina, com Arleen Auger (ah, que memórias dela nesse papel!) dirigida pelo recentemente falecido Richard Hickox. Mas já em 1976, John Eliot Gardiner com o seu maravilhoso Monteverdi Choir e uma então designada Monteverd Orchesta (com instrumentos clássicos, antes da formação dos English Baroque Soloists) registara prodigiosamente uma obra do período romano, o Dixit Dominus; nem ele próprio, em posterior nova gravação, repetirá tal prodígio. A reapreciação e redescoberta de Haendel começavam efectivamente.
 
Há 15 anos atrás constava eu de que das 40 óperas de Haendel, 23 estavam editadas em cd. Hoje todas as óperas estão gravadas (se bem que algumas entretanto indisponíveis), bem como aliás as oratórias.

 

Haendel, glória e reapreciação - I

 

 

No dia dos 250 anos da morte do compositor

 

 

 

 
Morreu célebre George Frederic Haendel (1685-1759). A sua vida tinha sido de contrastes: sucessos e contrariedades, revezes e falências mesmo no seu género de eleição, a ópera, criação pelo fruto das circunstâncias e mesmo quase por acaso de um género nacional, a oratória inglesa, por este compositor alemão, imbuída de influência italiana, sensível à francesa e que se tinha adaptado também à tradição inglesa remontando a Purcell.
 
Se foi celebrado em vida, tanto que lhe foi erigida uma estátua nos Vauxhall Gardens, Haendel foi o primeiro compositor da história da música europeia de quem as obras nunca deixaram de ser executadas. Mozart fez arranjos de O Messias e Acis e Galateia, foi sob a influência das suas oratórias que Haydn compôs A Criação e As Estações, Beethoven reverenciava-o e se a geração romântica, toda votada ao culto do “redescoberto” Bach o ignorou, o jovem Brahms compôs as Variações e Fuga sobre um Tema de Haendel.
 
O alemão que na sua estadia italiana de 1706-10 absorvera em Roma com prodigiosa rapidez e invenção as influências de Corelli e Alessandro Scarlatti, e que triunfara ainda com duas óperas, Rodrigo em Florença e Agrippina em Veneza, chegara a Londres em 1711 exactamente para fazer triunfar a ópera italiana com Rinaldo. 30 anos depois Deidamia foi a última das 40 óperas que escreveu – 40, note-se bem!
 
Embora não sendo em rigor caso único (Vivaldi também foi várias vezes compositor e empresário), Haendel inseriu-se como sujeito autónomo na sociedade mercantil – e, assim, por protectores importantes que também tivesse tido, foi ele de facto o primeiro compositor emancipado, antes de Mozart se libertar do arcebispo Coloredo e de Beethoven se constituir como paradigma, como o quis a persistente tradição humanista, de resto retomada pela narrativa adorniana do modernismo (Adorno, de resto, era anti-haendeliano).
 
Mas ser empresário supôs investimentos, estar dependente de sucessos e insucessos (e com o correr do tempo cada vez mais de insucessos) e mesmo rivalidades ferozes, enquanto se ia constatando a resistência dos ingleses à ópera italiana, parodiada na Beggar’s Opera de Gay e Pepusch.
 
Tinha ele absorvido também como se disse a tradição inglesa remontando a Purcell, odes, anthems e masques. Foi como uma semi-teatral masque, uma representação religiosa de um drama bíblico de texto inspirado em Racine, que Esther foi apresentado em 1732, em Cannons, a propriedade de um dos protectores de Haendel, o Duque de Chandos. Algum tempo depois, e à revelia do compositor, a obra foi apresentada em Londres, com sucesso. Enfim, o próprio Haendel decidiu ser ele a organizar uma apresentação em concerto.
 
Tinham-se sucedido Deborah e Athalia, mas era ainda a ópera que ocupava Haendel. Enfim em 1739, com Saul, iniciou uma actividade consequente de autor de oratórias. De 1741, como já se disse, data a última ópera, Deidamia; no ano seguinte foi o triunfo em Dublin de O Messias.
 
É “esse” Haendel, o de O Messias, de Joshua, de Judas Maccabeus, de Israel no Egipto, que será massivamente celebrado, por vezes com coros de centenas de elementos, na imediata posterioridade e ao longo do século XIX.
 
Até que…