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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Magnífico Holliger

Heinz Holliger

 

 

Quarteto Diotima

Obras de Berg, Nunes e Schubert

Gulbenkian, 16 de Março

Quarteto Zehetmair

Obras de Bruckner, Holliger e Beethoven

Gulbenkian, 22 de Março

 

 

Com um intervalo de menos de uma semana apresentaram-se na Gulbenkian dois excelentes quartetos de cordas, com programas estruturalmente análogos: uma obra nova, e em 1ª audição em Portugal, estreada por cada um desses quartetos e até ao momento só do reportório deles, Improvisation IV – “L’électricité de la pensée humaine” de Emmanuel Nunes pelos Diotima, o Quarteto nº 2 de Heinz Holliger pelos Zethemair, precedida por uma obra menos usual, respectivamente os Quartetos de Berg e Bruckner, e seguidas de obras das mais consagradas e admiráveis, o Quarteto nº14, “A Donzela e a Morte” de Schubert e o Quarteto op. 135 de Beethoven.

 

Acresce ainda que tanto um como outro quarteto seguem práticas pouco ou nada habituais: nos Diotima há a registar a alternância de 1º e 2º violinos; os Zethemair, que em anterior passagem pela Gulbenkian tocaram de pé, estiveram desta feita sentados, mas tocando as obras sem partitura (o que é um tour de force numa formação que tanto exige da coordenação exacta como o é o quarteto de cordas), excepto na obra de Holliger, interpretada com partitura mas colocada nas estantes em sequência, evitando qualquer desfasamento no voltar de páginas. E pode ainda acrescentar-se a coincidência do nome de um quarteto, “Diotima”, ser colhido em Hölderlin, referência fundamental de Heinz Holliger inclusive neste Quarteto nº2.

 

No Quarteto op. 3 de Alban Berg os Diotima optaram por uma interpretação de grande concentração, áspera e resolutamente modernista, sem o lado mais lírico e de reminiscências tardo-românticas que também existem na obra. Do mesmo modo na “Donzela e a Morte”, a sua leitura foi vibrante e de grande dramatismo, eventualmente à falta também de alguma expansividade lírica.

 

O pensamento musical de Emmanuel Nunes é eminentemente orquestral ou de formação de câmara alargada. Não é a Improvisation IV que desmente essa constatação. Mas a obra tem, em relação a outras do autor, uma qualidade a anotar, a concisão – de facto demora muito menos que os cerca de 25 min. indicados no programa. É aliás um interessante ciclo de variações, que todavia repete de modo algo enfadonho algumas características da escrita de Nunes tornadas verdadeiros “tiques”, como as frases ziguezagueantes e os tremolos.

 

No concerto dos Zethemair, a raridade do Quarteto em dó menor de Bruckner, obra menor, de aprendizagem, e aliás só identificada em 1950 (portanto mais de 50 anos após a morte do autor), pouco mais foi que uma introdução, ainda assim tendo sido interessante que os intérpretes sublinhassem a sua filiação em Mendelssohn, quando Bruckner, pelas suas grandes Sinfonias, está associado ao campo oposto, wagneriano. Depois veio o momento inolvidável e transcendente, a obra de Holliger.

 

Recordo que o músico suíço é um proeminente oboeísta e maestro também – dele a Gulbenkian já apresentou o maravilhoso Scardanelli Zyklus (Scardanelli sendo um nome adoptado por Hölderlin), seguramente uma das obras mais extraordinárias das últimas décadas, e já lhe dedicou um ciclo, em que além da apresentação de obras suas, Holliger foi também instrumentista e maestro.

 

Estreado em 2008, o Quarteto nº 2 revela o conhecimento íntimo da escrita instrumental, com uma variedade assombrosa de recursos, glissandi, pizzicatti, col legno, etc. Hölderlin e Celan são referências numa obra que contudo é prodigiosa antes do mais pelo conhecimento das possibilidades do quarteto de cordas, tão importante na História da música europeia (e essa noção da historicidade é da maior importância na obra), o único “género” praticado ininterruptamente desde o classicismo vienense.

 

O Quarteto é num único andamento, mas com seis partes, e faltam as palavras para falar da última daquelas, absolutamente assombrosa, qual “música das esferas” no seu jogo dos harmónicos – é uma obra magnífica, absolutamente magnífica, cujos ecos perduram ainda.

 

O choque foi de tal modo que na 2ª parte do programa o derradeiro Quarteto de Beethoven (embora não o mais extraordinário no portentoso conjunto dos últimos Quartetos) quase soou como um anti-climax – era a música de Holliger que perdurava.

 

A 1ª audição em Portugal deste Quarteto nº 2 de Heinz Holliger foi um acontecimento como raros.

Obras-primas do século XX

David Afkham

 

 

 

Richard Strauss

Capriccio – Prelúdio

Metamorfoses*

Janácek

Mládi

Stravinky

Octeto

Membros da Orquestra Juvenil Gustav Mahler, David Afkham*

Gulbenkian, 8 de Abril

 

 

Na presente temporada do Serviço de Música da Gulbenkian desapareceu um ciclo que era sempre dos mais atractivos, o das Grandes Orquestras, que por norma se apresentavam no Coliseu – circunstância a que não devem ser alheios constrangimentos financeiros. Entretanto, há um outro ciclo, de Orquestras Convidadas e em Residência.

 

Em Fevereiro houve a residência da Orquestra de Câmara da Europa, em que lamentavelmente apenas pude ouvir o último concerto, com uma desastrada interpretação da Missa Solene de Beethoven dirigida por John Nelson, excelente maestro para o primeiro romantismo, Berlioz, Schumann ou Mendelsssohn, mas neste caso de concepção de todo deslocada. E está agora a decorrer a residência da outra orquestra pan-europeia, a Orquestra Juvenil Gustav Mahler, que Claudio Abbado fundou em 1986, e que foi a primeira a abrir-se a instrumentistas da ex-Europa de leste – e acrescento que uma das maiores emoções da minha vida de melómano, que não é propriamente parca, ocorreu no Festival de Edimburgo em 2002, com Abbado a dirigir esta Orquestra, e sendo solista Martha Argerich, no Concerto em Sol de Ravel.

 

Se bem que o facto tenha já sucedido também com a Orquestra de Câmara Europeia, não deixa de ser raro que a residência de uma formação sinfónica se inicie com um concerto de câmara, como sucedeu no passado dia 8, com um programa que incluía quatro obras-primas da música do século XX – raro e, no caso, altamente sintomático.

 

Eram duas as obras para sopros, o sexteto Mládi/Juventude de Janácek e o Octeto de Stravinsky, e obras modernistas, e duas para cordas e crepusculares, o Prelúdio para sexteto da derradeira ópera de Strauss, Capriccio, e do mesmo autor Metamorfoses para 23 instrumentos de cordas, esta dirigida por David Afkham, actual maestro assistente da orquestra.

 

Com formação sempre variada para cada digressão, a qualidade desta orquestra “transitória” radica-se na excelência dos maestros que a dirigem, Claudio Abbado, Bernard Haitink, Pierre Boulez Colin Davis, Mariss Jansons, Seiji Osawa, António Pappano, etc., mas também no apoio daqueles que o programa da Gulbenkian designa de modo expedito como “músicos ensaiadores”, e que são sim os tutores dos diferentes naipes, músicos solistas de algumas das mais reputadas orquestras europeias.

 

As qualidades sonoras, o sentido do fraseado e a noção do carácter de cada peça foram admiráveis e nas Metamorfoses impôs-se a qualidade da direcção de Afkham, um dos mais proeminentes jovens maestros alemães (provavelmente de ascendência iraniana ou paquistanesa), de gestualidade sóbria e precisa e que imprimiu à interpretação o pathos que a obra requer.

 

Pela raridade do programa, com quatro obras-primas da música do século XX, friso de novo, e pela excelência das interpretações, este foi verdadeiramente um concerto memorável.

Werner Schroeter (1945-2010)

 

 

Werner Schroeter era um dos meus cineastas preferidos, exuberante, arrebatado pela paixão da ópera (chegou aliás a encenar, nomeadamente uma Tosca na Ópera de Paris), inconfundível.

 

A propósito dele podíamos perguntar: se Deus morreu, onde estão os objectos de culto? Naqueles que transcendem a transitoriedade, como as divas da ópera, deixando o rasto imperecível de corpos celestes, aqueles que sempre desejaremos e nos remetem para os princípios da existência.

 

Traduzidos numa mitologia profana, os objectos de culto são deuses e deusas que trazem a promessa dos corpos celestes, satélites levitando em torno de um núcleo originário, objectos de devoção mas também de uma pulsão erótica, signo da humana existência, que supõe entre um e outro o desejo. Objectos ritualizados nas cerimónias de uma sociedade laica, por exemplo na ópera e no cinema.

 

No princípio, e no princípio do cinema de Werner Schroeter, era a Voz. Estanho enunciado quando se fala de um cineasta. Não é o cinema fonte de tantas iconologias contemporâneas? Não tem como princípio a imagem, fundamento das aparições e adorações?

 

A unicidade do dogma tinha caducado nas sociedades europeias quanto nelas se reinventaram os fundamentos mitológicos, o canto de Orfeu antes do mais, e se formulou a ópera. As mesmas sociedades tinham sido laicizadas quando a imagem passou a ser passível de reprodução mecânica e depois o cinema surgiu. Qualquer compêndio nos dirá que as imagens vieram primeiro as vozes, os talkies depois, por acrescento, mais próximo de um reconhecimento de um real.

 

É privilégio dos grandes cineastas que a sua obra apareça como uma daquelas que tudo reinventaram, por sua livre escolha designando a genealogia que preferem. Werner Schoreter era um desses. O seu cinema retomava os cerimoniais e os princípios da representação do que ele escolheu como origem: a ópera. O mundo, o mundo desejado da arte, fez-se então porque o objecto do desejo era uma voz, e Maria Callas era o seu nome.

 

“Werner Schroeter foi durante mais de dez anos – muito tempo pois, demasiado tempo – o realizador mais importante, mais apaixonante e o mais decisivo de um cinema alternativo, de um cinema, que, em geral, se designa por underground, o que o reduz, o minimiza e acaba por abafá-lo. (…) De facto não há senão filmes num conjunto cinzento. E há também os que fazem filmes. E, se os homens e os seus filmes são diferentes uns dos outros, a necessidade sentida de fazer filmes varia também naturalmente. (…) Werner Schroeter, que um dia terá o seu lugar na história do cinema (em literatura, eu considerá-lo-ia entre Novalis, Lautréamont e Louis-Ferdinand Céline) foi pois um cineasta underground durante dez anos e não se quis possibilitar-lhe escapar a esse papel. (…) atitude tão fácil quanto estúpida, porque os filmes de Schroeter estão próximos de nós; é verdade que são belos, mas não exóticos, pelo contrário”. Era o ano de 1979 e nestes termos se referia a Schroeter o seu colega Rainer Werner Fassbinder.

 

Em meados dos anos 80, quando despontava o jovem cinema alemão, Werner Schroeter começava a fazer filmes em 8 mm. Objecto constante: Maria Callas (muitos anos depois, em 1996, o admirável Abfallprodukte der Liebe/Poussières d’amour, haveria de ser feito com as divas retiradas Martha Mödl, Anita Cerquetti e Rita Gorr).

 

"A Morte de Maria Malibran"

 

 

Em breve, numa díspare panóplia, outras referências se acrescentavam, por exemplo a cançonetista Catarina Valente, ou o arquétipo histórico das divas de ópera, Maria Malibran – A Morte de Maria Malibran de 1972, superlativa obra-prima. As vozes pré-existiam para elas se encontrando as imagens. Questão de juntar duas bandas, de som e de imagem, sem que entre elas se supusesse a identificação. O método era de montagem, de collage, e daí haveria de resultar, em 1969, e concluído no formato de 16 mm, um anúncio genial, Eika Katappa.

 

Da disparidade dos materiais, da dessincronização das bandas, extraía Schroeter um postulado: as imagens são o cerimonial de resposta ao chamamento da Voz. Questão também de origem, portanto. Questão de inevitável distância entre dois objectos, o que chama e o que responde, quais dois seres que impossivelmente se tentam realizar num único.

 

Impossível considerar o cinema de Schroeter sem esse apelo primordial, esse Urruf, que é simultaneamente o do útero materno (voltar ao corpo originário), da mitoligização do ser feminino (a Mulher é a “Diva”, a Callas antes do mais), do desejo da fusão, dessa androgenia que transcende as diferenças dos géneros sexuais e da qual se manifestam os sinais do desejo pelo “travestimento” dos semblantes e dos corpos – na paixão é-se um que quer ser outro. Assim foi o cinema de Werner Schroeter.

 

Em Portugal, com o produtor Paulo Branco, Schroeter rodou dois filmes, O Rei das Rosas e o derradeiro Nuit de chien. Eika Katappa, A Morte de Maria Malibran, Willow Springs (1973), O Reino de Nápoles (1978), Palermo oder Wolfsburg (1980), Ensaio Geral (1980 também, exuberante documentário sobre o Festival de Teatro de Nancy) e Poussières d’amour são indiscutíveis obras-primas.

 

Foi uma das maiores personalidades do cinema contemporâneo que morreu.

Museus públicos, domínio privado?

 

Os museus são por definição e História instituições de interesse público, abertos à comunidade, aos visitantes. Esse é desde logo o princípio dos museus de domínio público, no sentido de estarem na dependência do Estado central ou da administração local ou regional, como em certos países, por exemplo em Espanha, o florescimento de museus de arte contemporânea em grande se devendo às instituições autonómicas, regionais.

 

Há museus privados. E há os museus de parceria pública-privada.

 

Existe em Portugal a Fundação e o Museu de Serralves, sempre apontado, e justamente, como caso de excelência dessa parceria.

 

E existem outros dois casos, bem mais controversos, O Museu Berardo e agora a Casa das Histórias Paula Rego.

 

 

 

Extractos da nova coluna O Estado da Arte em www.artecapital.net

Textos e imagens

Como tinha deixado escrito quando do recomeço desta página, a publicação de novos textos estava também dependente da conclusão de outros compromissos urgentes, tarefa a que tenho tido que me votar nos últimos dias. Estão assim nomeadamente atrasadas diversas críticas de música e de discos, mas não só.

 

Sucede ainda que há um outro problema de ordem técnica: encontro-me impedido de colocar imagens e hiperligações. Espero que a resolução seja o mais rápida possível para repor a escrita em dia

 

Até já.

 

Adenda - 06-04

 

A questão das imagens está entretanto resolvida como se pode verificar nos três textos abaixos, pelo que retomarei a escrita logo que possível, com a maior brevidade.