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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Nico - Philippe Garrel

Nico e Philippe Garrel em La Cicatrice intèrieure:
“Where are you taking me?”
 
 
 
 
“Be your part/ Play your part/ Contain a steady beat/ In the heat/ Ghostlights prevails/ Flood ligh refuses”
 
                           Nico Floodlight (última página do seu diário)
 
 
“La fidelité est une activité charnière de mon cinéma”
 
                                                                      Philippe Garrel
 
 
 
 
 
Um rosto, o de Johana Ter Steege, um nome, Marianne. É essa a derradeira incarnação de Nico no cinema de Garrel, aquela que mais facilmente recordaremos, até porque o filme, J’ Entends plus la guitarre, foi o que teve maior difusão e o único do autor a ser estreado comercialmente em Portugal [à data, 1995]. Feito já depois da morte de Nico, esse é um filme de luto, “Nico pour mémoire", derradeira (?) epifania de uma presença que foi central ao cinema de Philippe Garrel e que nele permaneceu como um fantasma depois da separação dos dois.
 
Em Les Ministères de l’Art, dedicado à memória de Jean Eustache (que ele tinha sido um dos primeiros a descobrir, por ocasião de Le Père Nöel a les yeux bleus, e que tinha entrevistado em 16 Millions de jeunes), Garrel fala com diversos outros realizadores sobre a singularidade do cinema de cada um, isto é, o modo como nele se imprimem os sentimentos, as emoções, a biografia. Autobiográfico, o cinema de Garrel é-o tão fortemente que um crítico, Jean Douchet, dirá mesmo que é "autofágico". A relação "forte, mas perigosa" com Nico é sintomática do potencial autofágico.
 
Christa Päffgen, nascida em 1943, abordou os meios do cinema relativamente cedo, qual ninfa de uma “Dolce Vita" - e é efectivamente no filme de Fellini que primeiro a podemos ver. Uma criança nasce, Ari, que a mãe persistirá em apelidar de Delon, embora Alain se obstine na recusa da paternidade (Ari surgirá ao lado da mãe na primeira bobine de Chelsea Girls de Warhol).
 
Em 1964, com o então seu companheiro, Nico Papatakis, vai a Nova Iorque - é a ocasião célebre em que Papatakis, o produtor de Un Chant d’amour de Genet, leva uma cópia do filme para ser exibida na Filmmakers' Cooperative, levando à prisão do organizador do evento, Jonas Mekas. Um nome estava tomado, o de Nico, e uma relação estabelecida, com os meios "underground" de Nova lorque. A associação com Andy Warhol e os Velvet Underground não só lhe dará maior visibilidade cinematográfica (dentro dos limites da peculiar difusão dos filmes de Warhol), mas fez com que entrasse também na cena musical. Entretanto ...
 
Entretanto, em França, Philippe Garrel rodava, rodava. Nenhum outro cineasta (senão o Godard de La Chinoise e Week-End) captou como ele os sinais do tempo, que Garrel filmava já na primeira pessoa, registo de uma sensibilidade geracional que fará de Marie pour mémoire (sobretudo visto retrospectivamente) um dos anúncios de Maio de 68. E então ...
 
O encontro de Nico e Garrel ocorre em Roma, em 1969. Da parte de Christa haverá um outro desvio, desta vez não de nome, mas de uma dádiva. “The Falconer I wrote for Andy, and John Cale wrote such a unique piano solo for that song. One year later I did a terrible thing. I gave that song to Garrel's film Le Lit de la vierge." Entrando na vida de Garrel, Nico entrou no seu cinema. "Where are you taking me?" pergunta ela no início de La Cicatrice intérieure, o primeiro filme de ambos (para o qual Nico compôs as músicas reunidas em Desert Shore). O filme "é uma obra prima total" segundo Henri Langlois, "Atenção, poesia!" exclama Jean-Louis Bory: "E se La Cicatrice intérieure fosse Une Saison en enfer do nosso tempo?".
 
Garrel mesmo dirá do periodo do seu cinema que então se iniciava que existia "sob o signo da preocupação da rima, da versificação". Até Le Bleu des origines foram sete filmes em comum, antes da ruptura em 1978. "Os meus filmes começam com La Cicatrice intérieure, os outros são coisa passada. Não há um só filme que tenha feito sem Nico. Ela está nos meus filmes desde que a encontrei e não farei nenhum filme sem ela" - dizia Garrel em 1978, o ano em que, afinal, vem a ocorrer a ruptura.
 
Desses sete, três, La Cicatrice intérieure, Athanor e Le Berceau de cristal, são inteiramente dedicados a Nico; "Não sou eu o autor da trilogia que foi de facto realizada por Nico e por mim", dirá ainda Garrel.
 
Em 1979 Nico é já um fantasma no cinema de Garrel que, com L’Enfant secret entra numa outra fase. Por duas vezes, nesse filme e em Elle a passé tant des heures sous les sunlights, Anne Wiazemsky dará corpo a esse fantasma. No segundo filme o nome da sua personagem é mesmo aquele, oficial, de Nico, Christa. Derradeira (?) epifania, ela será evocada como Marianne em J’ Entends plus la guitarre, quando o luto já não era só o de uma relação terminada mas também o de um corpo morto: Christa Päffgen, dita Nico, tinha morrido em Ibiza, em 1988. Nos dois últimos filmes em conjunto tinham evocado a morte e as origens. Com Nico, Garrel descobriu, ou inventou-se, outras origens. Sem ela, prosseguiu uma "voyage au pays des morts". E continuou a narrar a sua vida.
 
Viagem com Nico e Garrel in catálogo Monumental 95
“Where are you taking me?”, pergunta repetidamente ela no começo de La Cicatrice intérieure. Apesar de tudo – e o “tudo”, nada dispiciendo, são vários momentos fulgurantes, de extraordinária beleza plástica, como o espantoso “travelling” de 360º no começo do filme – cada vez mais penso que o me verdadeiramente me importa na obra de Phillipe Garrel, de Marie pour mémoire a Os Amantes regulares, é o tal modo como nela se imprimem os sentimentos, as emoções, a biografia.
 
Razão óbvia para entender ao seu “período Nico” e em particular à “trilogia” de ambos, dir-se-á. De facto, é um pouco mais contrastado. Não consigo abster-se também do que nesses filmes há de pose fátua, por vezes mesmo a resvalar para o “kitsch”. Um filme como Athanor (que me foi mesmo quase insurportável rever na segunda-feira, na Cinemateca) parece-me uma colectânea de fotografias de publicação “fashion” – como se as poses de Nico, que antes das andanças que a celebrizaram se iniciara como modelo, fossem a própria “raison d’être” do filme, ou antes, do catálogo de imagens.
 
Há a evidente intensidade da presença de Nico (e La Cicatrice intérieure vai-se “perdendo” tanto quanto o protagonismo dela cede lugar à figura mitológica encarnada por Pierre Clementi), mas há um auto-deslumbramento, neste caso ou neste período sim, um forte pendor "autofágico", ao qual de resto o próprio Garrel viria tão fortemente a reagir.
 
Por isso, guardando a memória do que era anterior, de Marie pour mémoire, ou de tantos intensíssimos momentos do “período Nico”, mas momentos, o que mais me interessa na obra de Garrel, ainda que com intermitências, é afinal o que se começa a esboçar com L’Enfant secret (1979/82), e plenamente se afirma, incandescente de beleza e dor, com Já Não Ouço a Guitarra (1991), no luto de Nico.