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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

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A lenda de Maria Malibran - I

Maria Malibran no papel
de Desdemona
 
 
 
“A mais tocante e universalmente admirada das cantoras românticas tornou-se, depois da morte, num objecto de culto. Ela é um dos fundamentos do mito da diva”, escrevem Roger Blanchard e Roland de Candé sobre Maria Malibran (1808-1836) em Dieux et Divas de l’opéra (Plon, 1987). De resto, “la Malibran” foi uma figura de tal modo decisiva na configuração de um novo tipo de estética vocal e de apreciação pública dos cantores, que os dois volumes dessa enciclopédica obra a retêm como figura divisória – já que os subtítulos do vol. I são “Des origines au Romantisme” ou “Des origines à la Malibran”.
 
Há que recordar que o “divismo” foi antes do mais matéria respeitante aos seres fabulosos e monstruosos que eram os “castrati”. Pesem ainda famosos casos de “prime donne”, como as “rival queens” para Haendel, a Bordoni e a Cuzzoni, ou Luisa Todi, os objectos de adoração e delírio foram os “Nicolino”, “Senesino”, “Farinelli, “Cafarelli”, Guadagni, “Crescentini” ou "Carestini".
 
Com o romantismo tudo mudou, da rejeição do acto castrador, que ficou apenas entregue aos cuidados e à piedade da Igreja Católica Romana, à reconsideração da mulher. O movimento romântico, do mesmo modo que no bailado deu origem aos novos seres etéreos de La Sylphide ou Giselle, chorou as desgraças das heroínas de ópera e colocou no pedestal as suas intérpretes –  colocou as cantoras, antes do mais.
 
Mas se houve uma ruptura, e uma ruptura cultural profunda, houve também uma transição: os intérpretes da primeira geração romântica formaram-se ainda no canto rossiniano, isto é, no derradeiro esplendor do “bel canto” ornamentado – donde também o uso da equívoca e mesmo de algum modo contraditória noção de “bel canto romântico”, usado a propósito das óperas de Bellini e Donizetti, os compositores dessa primeira geração, certamente já de estética romântica, embora vocalmente ainda com traços belcantistas.
 
No caso de Maria Malibran essa formação no canto rossiniano foi mesmo familiar: era filha de Manuel García, nomeadamente o criador de Almaviva no Barbeiro de Sevilha. Um dos momentos mais célebres da carreira da Malibran ocorreu aliás, quando interpretando Desdemona no Otelo de Rossini “morreu” às mãos do esposo despeitado, que não era outro senão o próprio pai, Manuel García.
 
Mas se foi celebrada cantante rossiniana terá estado longe de ser das mais eméritas. Entre as grandes intérpretes do compositor, e para além daquelas para quem as obras foram directamente escritas, a mais saliente foi Giuditta Pasta (1797-1865), que simultaneamente foi, ela sim, a primeira “diva” romântica, para a qual Donizetti escreveu Ana Bolena e Bellini A Sonâmbula. O próprio Rossini aliás preferia a irmã de Maria Malibran, Pauline Viardot (e ainda houve na escola familiar de canto um irmão, Manuel García Junior), aquela para quem Berlioz fez a versão do Orfeu e Euridice de Gluck que se manteve como norma até muito recentemente, Pauline Viardot, a amiga de Chopin, a amada de Turgueniev.
 
“Mais, voilá”, enquanto Pasta viveu 68 anos, a Malibran morreu com 28, e era bela enquanto, disse Saint-Saëns, “Madame Viardot n’était pas belle, elle était pire!”. Bela, de vida sentimental atribulada de dois casamentos, dotada de uma voz de “mezzo” incrivelmente extensa de quase três oitavas, atingindo o mi sobreagudo, a Malibran deslumbrava e era adulada. E como “morrem cedo aqueles que os deuses amam”, Maria Malibran sucumbiu depois de um concerto em Manchester. Com ela se fundamentou não tanto o culto mas mais o mito romântico da diva – foi afinal percursora tanto de Maria Callas quanto de Marilyn Monroe.
 
O mais operático dos realizadores contemporâneos, Werner Schröter, recriou a lenda em A Morte de Maria Malibran (1971), que nada tem de “biopic” (ou não fosse um filme de Schröter), mas que é um admirável gesto passional e melodramático, em que Maria morre junto de Schumann e Liszt, consumida na intensidade do seu canto, do seu canto até à morte.
 
 
 
“A Morte de Maria Malibran”