Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Crítico Excelentíssimo - II

 

"Tenho repetidamente assinalado que as questões de 'gatekeeping', de selecção, legitimação e poder no campo das artes visuais, se processam em Portugal de modo estreitíssimo. Não menos tenho acrescentado que o paradigma dominante, ou, como se queira, a estrutura do poder neste campo específico, tem origem no momento de afirmação dos anos 80, a exposição Depois do Modernismo, e recordado a propósito, não sem amarga ironia, que tendo aquela também tido um objectivo político claro, contra o sistema critico encarnado em José Augusto França, acabou por a prazo produzir um outro crivo apertado e um sistema crítico de poder.
 
 Arte e Artistas Portugueses é a esse respeito um objecto a ser devidamente considerado, já que o facto de um crítico que até é agora assessor cultural do Primeiro-Ministro produza em forma de livro um discurso oficioso sobre a arte em Portugal conduz o estreitamento ao seu grave pico unipolar, e unipessoal, para mais tão duvidoso em termos de escrúpulos éticos e integridade intelectual."
 
 
 
 
 
Arte e Artistas Portugueses, livro do crítico e também assessor cultural do Primeiro-Ministro Alexandre Melo, editado por uma instituição oficial, o Instituto Camões, é o objecto da minha coluna O Estado da Arte na Artecapital.

Réplicas, comentários - e questões

 

A propósito do texto anterior, ou, mais exactamente, da publicação de uma réplica, importa-me de novo esclarecer que o caixa de correio existe também para respostas e comentários. Se bem que o Letra de Forma funcione como página pessoal, não menos me é importante estar aberto ao debate e à polémica. Não aceito contudo é a “caixa de comentários”, sendo que como, é facilmente verificável, e é importante sobre isso reflectir também, as ditas caixas são sobretudo povoadas por comentários ou sem qualquer interesse ou dando azo a estados de ressentimento, quando não de insulto, sendo também que quando há comentários que são de facto pertinentes então eles devem estar em situação de leitura imediata – e para “moderar” uma tal caixa não tenho a menor das vocações.
 
Escrevi em tempos um texto, “Foi você que pediu uma democracia SMS?”, sobre a intrínseca perversidade das sugestões mediáticas de pretensa “democracia participativa” e os “inquéritos feitos” por jornais junto dos seus “leitores” – dos leitores que se dispõe a fazer militantemente a sua opção por meio da Internet, como é óbvio. E esse meu texto data de Novembro de 2002, bem antes portanto da celeuma provocada pela votação no concurso “Grandes Portugueses” – sendo curioso, acrescento, que o mesmo método tenha sido “pacificamente” aceite como metodologia de outro análogo concurso, o das “Novas Sete Maravilhas do Mundo”, que até teve – sim, convém relembrá-lo – o patrocínio do Ministério da Cultura da Profª Pires de Lima, e mesmo um representante destacado em jeito de comissário por esse ministério, nada menos do que um dos bonzos do regime, o Prof. Freitas do Amaral, supondo-se que deveria mesmo ter sido motivo de “orgulho nacional” o facto da apoteose ter tido lugar em Lisboa!
 
Há evidente que há mutações das sociedades no sentido da chamada “democracia de opinião”, de resto mesmo com importantes consequências políticas, como foi o caso em França da candidatura de Segoléne Royal, que de facto emergiu da net e dessa espécie de página de “myspace” que se designou por “désiresdeavenir”, com a notória consequência dessa mescla de aspirações se ter tornado em termos de projecto política num efectivo nado-morto.
 
Em termos mais latos, é evidente que essa lógica tendencialmente instantânea da “democracia de opinião” (a tal “democracia sms” e todos os seus correlatos) está a agravar ainda mais a crise patente das democracia representativas, dos laços da representação política e das instâncias de regulação e mediação, mesmo no sentido do que o sociólogo Pierre Rosanvallon designa por Contre-Democracie – e o subtítulo desse livro, “La politique à l’âge de la défiance”, indica uma disseminada atitude não só de “desconfiança” mas de ressentimento e protesto privado de conteúdos concretos, que podendo ainda ter fundas razões, e tem-nas por certo, se traduz, mais do que em qualquer atitude de mudança, numa deslegitimação generalizada de que tão só sobressaem, reforçando o seu poder sensacionalista e a derrota do pensamento e da acção reflectida, as televisões e imprensa ditas “populares” – lógica que é prosseguida na manifestação imediata por meios de sms ou da net.
 
Há algum tempo atrás, um editoralista do “Le Monde” constatava amargamente que enquanto sempre fora regra deontológica do jornal os textos serem assinados, a edição electrónica estava agora inundada por comentários anónimos ou de identificação da autoria não controlada. E basta ver as caixas de comentarias nas edições electrónicas do “Expresso” e do “Público” para se verificar o tipo de teor altamente maioritário dos comentários.
 
Não pode ser ignorado que esta é uma das questões mais fundamentais da nova era dos media, concorde-se ou não com a posição extremamente crítica, claramente refractária mesmo, expressa por Andrew Keen em O Culto do Amadorismo (agora editado em Portugal pela Guerra e Paz), tal como não pode ser ignorado o debate em curso nos Estados Unidos sobre se os blogs, no modo mais imediato de simples expressão de opinião, não são causa determinante na rarefacção ou desaparecimento dos espaços de crítica, de opinião fundada e articulada, na imprensa – questão tanto mais importante quanto de facto coloca em causa os fundamentos da noção de espaço público, um dos sustentáculos axiais das sociedades abertas e democráticas.
 
Já agora, e no que a blogs e caixas de comentários diz respeito, estas são apresentadas (e foi-me reiteradamente exposta tal consideração a propósito do Letra de Forma) como um factor de “animação”, que afinal o é em termos de competitividade e de um uma espécie de correlato de “guerras de audiências”. Claro que não menos tosco é, não tendo comentários, afirmar uma vocação hegemónica publicando contributos, reais ou supostos, como também fotografias indigentes, naquela formulação falaciosa do inevitável Pacheco Pereira,  “O Abrupto feito pelos seus leitores”.
 
Creio efectivamente que estas são questões de ordem comunicacional importante, de mutação do espaço público, mas não queria deixar também de reiterar a minha disponibilidade para a publicação de comentários e réplicas, para o debate e contraposição, e que é também com vista a isso que existe o endereço letradeforma@sapo.pt – e já agora aproveito também para agradecer o conjunto de informações e apreciações que me é enviado, sendo que algumas sugestões ou pedidos terão oportunamente resposta.

Crítico excelentíssimo

 

 

Foi notada a recente edição pelo Instituto Camões, instância pública de difusão internacional da cultura portuguesa, de (mais) uma publicação de Alexandre Melo, Arte e Artistas em Portugal. O autor é apresentado como licenciado em economia e doutorado em sociologia, crítico de arte, organizador de exposições, autor de diversos livros e também curador das colecções do Banco Privado (em depósito em Serralves) e Ellipse Foundation. Como é sumamente sabido, embora não referido na algo modesta apresentação de um autor que acumula tantos papéis, ele é também assessor cultural do Primeiro-Ministro José Sócrates. Dirá o autor (e de resto já o tem dito) que apesar da data recente da publicação, ocorrida durante a presidência portuguesa da União Europeia durante o segundo semestre do ano passado (facto aliás expressamente assinalado numa nota introdutória do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado), a encomenda data já de 2001, quando o director do Camões era Jorge Couto, e não quando Melo já exercia o seu actual assessorado.
 
Em rigor, pouco importa isso, pois se confirma a proximidade de Melo a uma zona de poder com conotações partidárias, PS no caso (de resto, sendo novamente governo o PS, como o era ao tempo da encomenda, também o responsável pela encomenda, Jorge Couto, está de novo num alto cargo cultural público, a direcção da Biblioteca Nacional), e que o autor do livro, para além das funções que presentemente exerce junto do primeiro-ministro, continua “apresentável”, como curador de colecções privadas, e a esse nível interveniente também em instâncias que são ao mesmo tempo de “consagração” e de “mercado”.
 
Seja qual for a perspectiva, artística, sociológica, política ou ética, torna-se patente que Alexandre Melo é um “case study” de acumulação de competências e papéis – que até eventualmente poderia no âmbito académico ser objecto de uma análise, não sem o risco de ainda vir a ter como arguente ou director do júri o mesmo Alexandre Melo, tais as promiscuidades instaladas.
 
É uma tal abordagem da arte a altos níveis do Estado, com competências sobrepostas e na institucionalização das promiscuidades, um caso crítico, ético e político que cristaliza um entendimento do “Estado da Arte” – sem qualquer regulação de instâncias de regulação. É uma intervenção nos “mundos da arte” que configura uma “dominação” e uma legitimação directa a partir de instâncias centrais do poder político, em violação das normas abertas no espaço público. E que por inteiro, creio, justifica que obstinadamente se continue a chamar a atenção para um sistema gravosamente enquinado…
 
 
 
 
“Crítico excelentíssimo” é o título de novo texto na coluna “O Estado da Arte” em www.artecapital.net , prosseguindo a reflexão “Estado da arte – arte do Estado?”.
 
 
Nota – A propósito de promiscuidades, “arte do Estado” e outras questões: a série PortugALL S.A. – As colecções de Manuel Pinho prosseguirá, tanto mais que agora abriram as exposições por ele desejadas no Allgarve.

 

A crítica, razões

 

 

 

 

 

 
Desde meados dos anos 90, digamos que desde o último momento eufórico, a Expo-98, e também o fim da experiência Carrilho no ministério da Cultura, com o seu activismo, mas igualmente prebendas e séquitos, em 2000, e tendo em conta as reais dificuldades económicas de muitos jornais em Portugal (situação global, devido entre outros factores, à concorrência dos gratuitos e à diversificação de suportes, mas em Portugal muito agravada), nesse quadro geral, direi que se assiste agora a uma confluência particularmente dramática [à actividade crítica] de vários factores.
 
1) A esterilidade de um discurso académico (para não falar – e porque memória tenho – de casos de bajulação que são grosseiras falsificações factuais provindas de “críticos académicos”), cada vez mais ensimesmado na sua auto-reprodução – factor que, apesar de tudo, seria irrisório, não fossem os demais;
 
2) A nova qualificação dos jornalistas provindos dos cursos superiores, sobretudo na área cultural, que é facto indesmentível, não deixou de ter também um efeito potencialmente perverso, agravado pelos condicionamentos resultantes do fantasma da precaridade: é solicitada a esses jornalistas, e eles estão disponíveis, ou são mesmo voluntários, para escrever os textos sobre os objectos artísticos e os consumos culturais. As opções editoriais, aquilo que para os leitores são “as escolhas do jornal”, são suas, as críticas e críticos são um apêndice, tanto mais reduzido ao mínimo quanto agora, com o novo “Público”, se generalizou o modelo simplificado da sinalização pelas estrelinhas;
 
3) A homogeneização conservadora da opinião expressa na imprensa em Portugal é verdadeiramente alarmante – e o tropismo é tão patente que se torna daqueles que ao fim de algum tempo qualquer observador estrangeiro mais nota.
Ora este conservadorismo, arrogante e de diversos modos ignorante, como fazem gala de o exibir um Vasco Pulido Valente, um Pacheco Pereira, uma Filomena Mónica, ou um Vasco Graça Moura, para só citar os mais “destemidos”, tem da cultura e da arte uma noção anacrónica e patrimonial, formada nos livros, nos museus, talvez nalgum cinema dos seus verdes anos, na música e na ópera mas só até Richard Strauss, que nada de “modernices”.
 
Porque é este ponto sobremaneira importante? Porque na sua ignorância, e ignorância histórico-sociológica (e note-se que vários são historiadores e sociológos!) da mutação das condições técnicas e sociais de produção e difusão de alguns modos de arte, segregaram um insistente discurso de hostilidade aos ditos “subsidiodependentes”. Mas o que é mais grave ainda é que a insistência deste discurso tende a comprovar que o défice de legitimação simbólica e pública das artes de palco, em vez de se colmatar, pelo contrário agrava-se.
 
 
 
……..
 
 
O tipo de operacionalidade rápida de um blog formatou um tipo de “post” curto, para além de que a acessibilidade de cada um a essa tecnologia não implica a verificação de grelhas, competências e legitimidade como em princípio haverá na escolha de críticos por parte de um jornal ou uma publicação.
 
Tudo considerado, acabou contudo por ser a base tecnológico do blog que escolhi para dar continuidade ao percurso profissional de crítico e para o fazer em consciência e rigorosa independência, falando do que o desejo me suscita, repondo em linha o que bem entender, etc.
 
E é assim que, depois de tão longas divagações, me apercebo que afinal vim deixar aqui, nesta revista, uma despedida pessoal da crítica em papel, que sinceramente não estou a ver perspectivas de retornar. Uma despedida frise-se bem que pessoal, pois continuo a considerar que crítica é uma componente fundamental da imprensa e do espaço público. E uma despedida da crítica em papel, pelo que entendo ser o papel da crítica e os seus princípios.
 
 
 
 
Excertos de um longo texto, O papel da crítica, a crítica em papel e uma despedida pessoal, num dossier, O que é feito da crítica, no mais recente número, 20, da Revista dos Artistas Unidos – um texto de análise e uma explicação pessoal de razões.

 

 

Da Literatura e das normas - I

“As Vidas dos Outros”
 
 
Na mesma manhã da passada segunda-feira, em que o dislate de Rui Moreira chegava à comparação de posições críticas com a Stasi da defunta RDA evocada em As Vidas dos Outros, Eduardo Pitta punha em linha um “post”, que seria “resposta a uma leitora, M., filha de portugueses, nascida na antiga RDA, que tenta acompanhar o que se passa no nosso país, e tem dificuldade em perceber [«sinceramente não entendo»] os mecanismos de recepção cultural nos jornais e nos blogues”.Veja-se só a coincidência, ou a falta de imaginação no pretexto do argumentário...
 
Eu pratico a nomeação e o confronto directos, não a insinuação, mas sendo esta tão óbvia, aproveito então a oportunidade para também enunciar um ponto prévio, esclarecer uma regra e suscitar desde já alguns tópicos de reflexão.
 
Quero dizer em primeiro lugar que poucas coisas são para mim tão insultuosas como qualquer comparação com a RDA. Lembrar-se-ão alguns que, emocionado no momento da queda de Bagdad, que comparou ao 25 de Abril, o director do “Público”, José Manuel Fernandes, citou dois cépticos, Ana Sá Lopes e eu próprio, dizendo que estariam “com cara de comunistas na queda do Muro de Berlim”. Respondi-lhe dizendo também que o dito era tanto mais insultuoso quanto ele me conhecia o suficiente para saber o que directamente significou para mim a Queda do Muro, tanto que persisto em considerar em termos da minha vivência pessoal o 9 de Novembro de 1989 como a segunda grande data depois do 25 de Abril de 74.
 
Quanto a regras , aproveito para devidamente reiterar o seguinte: na apresentação desta página está escrito: “É isto um blog? Tecnicamente sim, mas o seu intento é outro. Letra de Forma será uma página de crítica e opinião, prosseguindo no espaço digital aquela que foi a minha actividade na imprensa ao longo de muito anos, (...)  interessando menos, mesmo muito pouco, algumas das interacções características da blogosfera”. Entre outras razões, sou suficientemente leitor de blogues para me têr imposto como regra tentar evitar o imediatismo e os despiques taco-a-taco.
 
Mas sou suficientemente leitor de blogues para também acompanhar de há muito, entre outros, o Da Literatura e o que nele escreve Eduardo Pitta. Começando por dizer que, desde um post que foi o primeiro a fundadamente contestar a possibilidade do suposto “arrastão” a vários outros sobre uniões de facto, etc, apreciei com relevo muito do que escreveu. Mas também o leio o suficiente para tomar nota que, entre percursos na restauração, receitas finas e divagações sobre “hotéis de charme”, por um lado, e um impetinente tartufismo socrático que dele tem feito um dos mais destacados reprodutores do actual discurso governativo na blogosfera, Eduardo Pitta nos tem fornecido abundante material para se proceder a um “close reading” – retomando uma designação por ele tão apreciada.
 
Acho portanto que há de facto matéria para discutir os “mecanismos de recepção cultural nos jornais e nos blogues” de que ele fala, sem outras considerações extravagantes.

Da Literatura e das normas - II

No caso de Eduardo Pitta, mas também em muitos outros, diga-se, o que a blogosfera me permitiu verificar foi a persistência de uma “norma literária” como critério genérico de apreciações artísticas e culturais (com as suas implicações também no que toca aos discursos sobre políticas culturais, diga-se). Mais: constatei nomeadamente, em Pitta e noutros bloguers que aprecio, que não só são em geral poucas as suas concretas referências fora do campo literário, como a exigência que têm nesse campo se desvanece quando das idas ao cinema. Esse é um primeiro ponto, genérico.
 
Mas acrescento que no caso particular de Pitta, da “cena literária” e do “milieu” que representa, há uma suplementar restrição, marcadamente de classe, bem manifesta na sua expressão de “uma certa Lisboa, entre a Versalhes e o Campo Grande”. Esta inscrição social matiza também ela consideravelmente alguma sua suposta “heterodoxia”. Mais: de par com isso há um abuso de posição que chega mesmo a roçar o arrivismo; um exemplo foi a crítica no “Público” ao estudo de Vasco Pulido Valente sobre Paiva Couceiro, matéria sobre a qual se desconhecem as competências de Pitta – e qualquer prática crítica supõe questões de competência.
 
Assim quando ele escreve que “Lá onde o outro [o marxismo] se estribava no partido, o de agora tem o respaldo do Estado, sob várias ramificações: ministérios, institutos, empresas do sector público com nicho cultural (e sinecura correlata), universidades, etc. (...) Zelando pelos respectivos interesses, os novos capatazes defendem com fervor de alucinados aquilo que tomam por reserva sua. É-lhes intolerável qualquer resquício de intromissão heterodoxa”, há a notar que reitera essa tão anacronicamente literata noção que os outros campos artísticos e culturais, que pelas suas condições de produção exigem muitas vezes outros meios e aparatos institucionais, são necessariamente palcos de interesses e só desses (o que tem feito repetido dizer disparates sucessivos em matérias como a existência do Ministério da Cultura ou, mais grave ainda, o que escreveu sobre a crise do São Carlos); mas também tenta sonegar o que de “interesses” haverá no “milieu” que frequenta e representa, como em qualquer outro meio.
 
E quanto a “novos capatazes” suponho que Eduardo Pitta deveria ter algum cuidado no que diz. Não tem ele reiterado uma norma do romance que, vigilante dos outros, o fez nomeadamente escrever de modo de todo despropositado, embora sempre se insinuando “trendy”, “em que outro país Rui Nunes e Mafalda Ivo Cruz seriam considerados romancistas”? Abordando de modo pioneiro a condição homossexual na literatura portuguesa, não tentou ele também formular uma norma ao excluir o mesmo Rui Nunes ou, extravagantes e insultuosas mesmo, nas considerações sobre o modo como Eugénio de Andrade teria manifestado ou contornado essa condição na sua poesia?
 
Sendo estas questões não só de “mecanismos de recepção cultural nos jornais e nos blogues”, mas mesmo também de hegemonia de discursos críticos e até de abusiva constituição de um cânone restrito, elas ficam pois aqui enunciadas, para além de imediatismos de resposta que não me interessam.

Call Boys e Vidas dos Outros - rectificação e adenda

 

 

 

 

A propósito da observação que aqui fiz ao título português de Das Leben der Anderen referido por Rui Moreira (Depois de ter lhe sugerido Call Girl, recomendo, caro leitor, que não deixe de ver As Vidas dos Outros, um magnífico produto do novo cinema alemão, disponível em DVD”), um leitor atento, a quem agradeço, chama-me a atenção para que nesse particular estou errado: tal como Moreira escreveu o título é mesmo As Vidas dos Outros.
 
Não deixa de me ser intrigante que só nas presentes circunstâncias me tenha apercebido do facto, pois que para além de “A Vida dos Outros” me parecer uma tradução mais correcta, tenho a noção de que nas muitas conversas tidas sobre esse filme a regra foi falar de “A Vida...”. Como é óbvio, para quem não viu o filme em sala e apenas o descobre agora na edição em dvd, As Vidas dos Outros é título directamente estampado no objecto, de capa acima reproduzida. 
 
Em qualquer caso, é devido a rectificação com as devidas desculpas – e desculpas também a Rui Moreira, por no caso ser descabida a observação que fiz.
 
Entretanto, faço notar também que em carta hoje no “Público” há uma resposta de José Vieira Mendes, “Jornalista, crítico, membro da bolsa de jurados do Instituto de Cinema e Audiovisual”, editor da finita “Première”.
 
Por ironia, a resposta directa a Rui Moreira no jornal em que vem publicando tais dislates partiu de um entusiasta confesso de Call Girl. E diz ele:
 
“A propósito do artigo de opinião do dr. Rui Moreira, intitulado ‘A revolta dos boys’ (14 de Janeiro), venho por este meio afirmar que sou um dos boys a que ele se refere. (...) Não vejo razão para o dr. Rui Morteira pôr tudo no mesmo saco e inclusive nos chamar ‘batoteiros’ e fazer muitas considerações levianas de um mercado que se vê conhece apenas por fora. Sou efectivamente um dos boys ou dos críticos que têm assento nos júris. (...) Ora bem, em primeiro lugar a bolsa de jurados do ICA - Instituto de Cinema e Audiovisual - é constituído por diversas personalidades de destaque e não só por críticos cinematográficos. Lugar esse a que o dr. Rui Moreira se pode candidatar, mas não sem antes ler a lei do cinema e a regulamentação de apoio à criação cinematográfica, e tirar todas as dúvidas relativamente aos critérios com que os membros do júri têm que se reger e que eliminam qualquer probabilidade de batota ou interferência directa na selecção deste ou daquele filme. Por último, regozijo-me também pelo dr. Rui Moreira ter gostado muito do filme alemão As Vidas dos Outros, o que demonstra nele uma certa cultura cinematográfica e não só de filmes americanos. Mas apenas por mera curiosidade, As Vidas dos Outros fez apenas, e apesar de ser um grande filme, 15.000 espectadores nas salas portuguesas em 2007 (...). Portanto, algo se passa, mas a culpa não é dos críticos, nem só do cinema português”.
 
Gostaria apenas de acrescentar, sem qualquer ironia, que me apraz registar que José Vieira Mendes diga também, referindo-se a mim, que “acho que ele há muito tempo não representa a opinião geral da crítica cinematográfica”. Não só já expliquei suficientemente que nada tenho a ver com qualquer “corporação crítica” e quão distante estou da generalidade da que hoje se pratica na imprensa portuguesa, como não pretendo “representar” nada, e também porque entendo, e volto ainda uma vez a afirmar, que uma situação tão esmagadoramente hegemónica e “fazendo opinião” como a que tivemos no “Expresso – A Revista” nos anos 80, com o deserto à volta, nada tem de salutar – e inclusive constituíu uma das razões porque fui um dos que se votaram ao processo de fundação de um outro jornal.

Tréplica a Rui Moreira - I

Como o ilustre Presidente da Associação Comercial do Porto e comentador futeboleiro na sua recarga dispara em várias direcções mas quase só contra mim – e contra esta página, que não nomeia – investe, sou forçado a concluír que além de pessimamente informado, padece não só de demagogia e populismo rasca, como já se tinha notado, mas também de dislexia profunda.
 
Em primeiro lugar, estou completamente fora de qualquer sistema de atribuição de apoios do Instituto da tutela há tempo que baste – desde 1989, para ser preciso. Mais: pelas razões que invoquei, sou profundamente crítico do modo como esse sistema se tem vindo a processar. Não me ofende quem quer, nem quem insinua gratuitamente, e Rui Moreira pode mesmo chamar-me “situacionista” (o que é uma originalidade), que não me atinge.
 
É-me totalmente indiferente que Rui Moreira goste ou não de Call Girl. Nunca foi isso que esteve em causa, nem expressei qualquer opinião sobre o filme; era o que faltava pôr-me a discutir “o gosto dos outros” (para citar o título do inteligente filme de Agnès Jaoui, bem mais sério aliás do que o possa aparentar), o que de resto colidiria com os meus princípios de respeito da autonomia individual. Em matéria de apreciações cinematográficas, estou aliás mais que habituado a ter opiniões minoritárias, e mesmo a ser vituperado por algumas delas, com a ironia de suceder algumas com o decorrer do tempo passarem a ser até da “doxa”, caso por exemplo das continuadas defesas que fiz de Clint Eastwood e David Cronenberg – já agora, e porque veio à colação, oh críticos, oh tempora, oh mores, também posso acrescentar a tudo o que já escrevi que, se não fosse a consagração crítica que teve na Europa, nunca Eastwood teria sido reconhecido nos Estados Unidos e obtido Óscares, e já agora também, porque se pode estar a falar em “mainstream” sem saber do que se fala, que um filme como Million Dollar Baby esteve em risco de não existir porque a Warner não o queria produzir - e depois até teve o Óscar de melhor filme.
 
O que estava e está em causa é sim: 1) a total impunidade e leviandade de opiniões impressas absolutamente irresponsáveis, como a do artigo “Call Boys” de Rui Moreira, isto é, um abuso do espaço público, que descrebiliza o debate e o confronto de ideias, o que cada vez mais é um não pequeno problema da imprensa portuguesa e, 2) que o argumentário de Moreira se baseava num conjunto de falsificações históricas, coisa a que ele não responde. Insinuar que o actual sistema de apoios do Estado, por distorcido que seja (e eu acho que devia ser quase integralmente repensado) prossegue um hipotético “dirigismo” directo do tempo da ditadura, é nomeadamente dizer que Manoel de Oliveira, Fonseca e Costa, Cunha Telles, Paulo Rocha, António de Macedo ou Sá Caetano (cineastas que, como referi, integravam o único plano de produção do então IPC anunciado ainda antes do 25 de Abril), para apenas citar os vivos, foram “cineastas da ditadura”, insulto demasiado absurdo para que quem o enuncia tenha a menor das credibilidades na discussão.

Tréplica a Rui Moreira - II

E eis que, da reserva de argumentos, Rui Moreira ressuscita o fantasma de Branca de Neve de João César Monteiro, e fá-lo saltar do banco e entrar em campo. Certamente que o filme que foi realizado não correspondia ao projecto aprovado, tecla todavia mais que gasta, uma vez que as questões decorrentes foram devidamente resolvidas, tanto quanto se sabe e é público, entre o produtor do filme e o Instituto. Eis, no entanto, e isto sim importa, que o emimente comentador futeboleiro e nessa qualidade colega de painel de António-Pedro Vasconcelos, o realizador da dama de Moreira, Call Girl de seu nome, vem a propósito dizer que “o cinema ‘autista’ (...) não pode esgotar os subsídos” –  mas que despudorada invenção factual é esta?
 
Com todos os vícios do sistema de atribuição, que eu mais uma vez sublinho achar que existem, não têm tido apoios cineastas tão diversos, melhor dito, realizadores (e com eles, produtores) tão diferenciados na sua concepção de cinema como Manoel de Oliveira, Fonseca e Costa, Fernando Lopes, António-Pedro Vasconcelos, João Botelho, Joaquim Leitão, Pedro Costa, Teresa Villaverde, Leonel Vieira, João Pedro Rodrigues, etc, etc? Grave seria de facto se tal não sucedesse - mas sucede.
 
Do mesmo modo lembrarei que, de facto, inquisidores também não faltam. Se Rui Moreira entendeu ressuscitar o caso de Branca de Neve, será útil recordar-lhe que, a propósito, uma campanha contra João César Monteiro foi depois lançada por uma das associações de realizadores, aquela onde pontifica Vasconcelos, tendo o porta-voz sido José Carlos Oliveira. Que eu saiba, Um Rio, o filme seguinte do mesmo Oliveira, José Carlos, que extraordinariamente até teve apoio do tão anti-subsidíodependentes Rio, Rui, foi, por exemplo, um desses filmes que passaram sem deixar qualquer rasto; claro que se destinaria a um vasto público...
 
Quando Rui Moreira escreve que “não se pode disponibilizar apoios, lavando, depois, as suas mãos, desresponsabilizando os agentes que beneficiam de subsídios a fundo perdido, que fazem filmes totalmente pagos por esse dinheiro público e que não são auditados nem escrutinados por ninguém”, e ressalvando que o “totalmente” é inexacto, eu, o tal “insultador situacionista”, acho que isso sim, como tudo o que envolve a atribuição e gestão de verbas públicas, é uma questão séria. Acontece que, de certeza, como poderia saber Rui Moreira acaso soubesse do que fala em vez de ser mero megafone, se há alguém que desde há muito tempo insiste nesses aspectos, pois é este mesmo “situacionista” (pensando bem, é tão grotesco que acabo por achar imensa graça ao epíteto), já desde 1984, como está publicamente registado, coisa que nomeadamente à época me valeu os ataques do costume, imagine-se que na altura a dupla do contra-ataque sendo constituída por António-Pedro Vasconcelos e João César Monteiro!
 
Mas quando Moreira passa dessa questão, real e importante, para proclamar que os filmes não seriam escrutinados por ninguém “a não ser pelos críticos que têm assento nos júris e depois promovem os filmes e abatem os filmes e os cineastas que ousam afastar-se e enfrentar a sua ‘linha justa’”, o salto é de tal modo disléxico, e sem qualquer espécie de base factual, que só a paranóia do mais rasteiro populismo anti-intelectual de que os seus dois textos são perturbante sinal pode explicar tanta asneira – e estou tanto mais à vontade para o dizer quanto, insisto, há 17 anos que não integro nenhum júri do Instituto e nada, mas nada tenho a ver com qualquer “corporação crítica”.
 
Acontece ainda que, qual pescadinha de rabo na boca, se o argumentário soprado por Rui Moreira recuava históricamente a uma falsificação sobre as pretensas características “dirigistas” herdadas da ditadura, termina com outro insulto político, tão extravasante quanto grave: a comparação com a RDA e a Stasi evocadas em A Vida dos Outros (e não “As Vidas dos Outros” como ele escreve, sempre pertinente e fundamentado). Eu conheci a RDA, e essa é uma memória de que tenho particular horror, tanto maior quanto verifico que até há nostálgicos que tentam prosseguir políticas que lá os fascinaram. Rui Moreira não sabe do que fala e na sua total irresponsabilidade não faz de facto a miníma ideia, ao usar um argumento tão gratuito, do que é valor da liberdade face a aparelhos totalitários. E assim, portanto, conversa acabada – homens livres têm opiniões próprias, não sopradas e abusivas.

 

 

Um mail de Eduardo Pitta

 
Sobre o comentário à subscrição por parte do crítico literário e blogger Eduardo Pitta do panfleto anti-críticos de Rui Moreira, recebi o seguinte mail:
 
 
José Augusto Seabra,
 
Se não erro, não nos conhecemos de lado nenhum, nem temos amigos comuns. Tem V. o direito a criticar o que escrevo, em livros, artigos, recensões, posts, etc. Igual direito me assiste. Mas não lhe reconheço capacidade para me classificar como «socialaite», seja lá o que isso for, ou a presumir em letra de forma que me considero «cosmopolita». Que «saber» é esse? Acaso privou alguma vez comigo para ter chegado a essa conclusão? Deduz a partir do que lê? Mas então e a distância crítica? Tenha lá as discordâncias que quiser, mas deixe-se de avaliações levianas.
 
Eduardo Pitta
 
 
Para além do erro na nomeação do destinatário, o direito de resposta será devidamente observado nesta página.
 
Já quanto a tratar-se de “avaliações levianas”, isso é facto que, num blogue designado por Da Literatura, poderá nomeadamente ser verificado aqui ou, continuando nas apreciações cinematográficas, e restringindo-me a essas, nos tais fotogramas à Manoel de Oliveira que existiriam em Corrupção.
 
Para se poder ter uma completa noção do labor e actividades do poeta, ficcionista, ensaísta e crítico literário do jornal “Público” ver www.eduardopitta.com , com realce para a detalhada cronologia.