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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Uma nova ministra

 

 

 

A nomeação agora de Gabriela Canavilhas surgiu como totalmente inesperada, como figura pouco conhecida no meio, excepto na sua área da música, surpresa que se traduziu mesmo em considerações públicas mesquinhas.
 
Já tive oportunidade de escrever que um ministro da Cultura é um responsável político e não necessariamente alguém com provas dadas como programador cultural. Sem me desdizer agora, devida justiça tem que ser feita ao trabalho excepcional que Canavilhas realizou em 2003-2008 como presidente da direcção da Orquestra Metropolitana de Lisboa, demonstrando uma energia e combatividades que, essas, são condições necessárias a quem nesta situação chega ao ministério. Ela aliás demarcou-se imediatamente da extraordinária e catastrófica frase original do seu antecessor; “é possível fazer mais com menos dinheiro”, dizendo antes que é “impossível fazer mais com menos”.
 
Estou assim seguro de que Gabriela Canavilhas, sendo ainda “à priori” uma escolha sem peso político, aceitou o desafio com garantias do primeiro-ministro de reforço orçamental. Mas não menos devo dizer que a sua primeira escolha foi desastrosa: Elísio Summavielle, nomeado secretário de Estado, é um burocrata do aparelho cultural do PS
 
Há razões para uma expectativa ainda que reservada da política cultural de Gabriela Canavilhas, lembrando também que há declarações e escritos que obrigam o governo, o primeiro-ministro e a ministra, sem deixar aliás de fazer notar que, tanto mais no quadro de um governo minoritário, compete também às oposições, a todas as oposições, que em geral tão alheadas têm andado destas matérias, estarem atentas e avaliando o desempenho concreto.
 
Estes são extractos da ora também retomada coluna O Estado da Arte na Artecapital.

 

A síndrome dos Coches

 

Quem tutela a “cultura” afinal?
 
 
 
 
O ministério da Cultura está paralisado, e depois de uma Isabel Pires de Lima que acumulou disparates e prepotências, o actual titular, José António Pinto Ribeiro, é o ministro inexistente. Quanto ao primeiro-ministro, o seu desinteresse pela Cultura apenas foi quebrado por uma intervenção que, de tão demagógica, tem de ficar registada – a sua participação, a 9 de Janeiro passado, no anúncio do lançamento do programa INOV-ART proclamando que “É isso que estamos aqui a fazer: dar mais oportunidades aos jovens no domínio da cultura e para que afirmem internacionalmente o nome de Portugal”, ditame que é no mínimo causador de estupefacção.
 
A verdadeira oposição, ou o sujeito de um discurso de tal modo consistentemente crítico que não pode deixar de ser considerado de oposição, estava afinal na bancada da maioria, e até era dela vice-presidente, mas silencioso: o ex-ministro Manuel Maria Carrilho produziu um documento que é um diagnóstico arrasador.
 
“Uma legislatura perdida?” pergunta-se mesmo ele, constatando o malogro (total) do Compromisso para a Cultura do programa do governo socialista
 
Acontece, todavia, que há no governo quem, não sendo tutela, se interesse por matérias culturas ou certas matérias culturais.
 
Tomemos o caso tão polémico e extravagante do novo Museu dos Coches. Quem [o] quis afinal?
 
A resposta está na evidência dos factos: a responsabilidade incube à Sociedade Frente Tejo, da esfera do ministério da Economia. Enquanto Pinto Ribeiro é inexistente, Manuel Pinho gosta de dar nas vistas e de iniciativas vistosas.
 
Embora presumivelmente a maioria parlamentar chumbasse a iniciativa, propor em plenário a chamada à comissão de Cultura de ambos os ministros para esclarecer quem de facto tutela o quê, eis o que era mais que justificado pelos factos desta “legislatura perdida”, como este extravagante projecto de novo Museu dos Coches surgido na esfera do Ministério da Economia e Inovação – desta balofa “inovação” que é a síndrome que agora atingiu os centenários coches.
 
 
 
Extractos da coluna O Estado da Arte em linha na ArteCapital.

 

 

 

 

Património - um escândalo

 

 

 

 
Se há ou houve governo “liquidacionista” do sector cultural é certamente este de José Sócrates. Nem nas piores horas de secundarização do sector durante o cavaquismo, quando a austeridade de cortes sem nexo da ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite a ele também se estendeu, ou nas trapalhadas, nesta área também, do governo de Santana Lopes, houve uma tão prosseguida política de negligência e mesmo de quase liquidação do sector.
 
Porque entendo que no contrato político democrático é fundamental a atenção dos governados face aos compromissos publicamente assumidos pelos governantes, relembro ainda uma outra vez o que consta do programa do governo:
 
“A política cultural para o período 2005-2009 orientar-se-á por três finalidades essenciais. A primeira é retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram. A segunda é retomar o impulso político para o desenvolvimento do tecido cultural português. A terceira é conseguir um equilíbrio dinâmico entre a defesa e valorização do património cultural, o apoio à criação artística, a estruturação do território com equipamentos e redes culturais, a aposta na educação artística e na formação dos públicos e a promoção internacional da cultura portuguesa. A opção política fundamental do Governo é qualificar o conjunto do tecido cultural, na diversidade de formas e correntes que fazem a sua riqueza do património à criação, promovendo a sua coesão e as suas sinergias.”
 
“O compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo.”
 
Em vez disso, o que assistimos? Desaparecimento político quase total do Ministério da Cultura, nomeadamente face ao das Finanças e também o da Economia, cujo titular se armou na pose de “ministro da ‘cultura de luxe’”; asfixia financeira reforçada; revogação do Estatuto do Mecenato; intervenção autoritária e liquidação de trabalhos sustentados nos Teatros Nacionais Dona Maria e São Carlos e no Museu Nacional de Arte Antiga; confusões burocráticas mastodônticas com a alteração do estatuto de institutos públicos. Pois como se isso tudo já não fosse pouco chegou agora, constata-se, a hora do património. “Defesa e valorização do património cultura”? Homessa!
 
A notícia do “Público” de ontem, “Vender um monumento poderá ser mais fácil”, tem de ser lido várias vezes (eu tive) para se perceber bem, de tão literalmente inacreditável que é. De acordo com o novo “regime geral dos bens de domínio público” elaborado pelo ministério das Finanças, este podem não só ser “objecto de uso privativo”, como também está prevista a sua “venda e oneração pelas vias do direito privado”. Alienar, obter possivelmente as receitas extraordinárias a que os ministros das Finanças costumam recorrer, eis o caminho aberto. A arqueóloga Ana Dias, Técnica do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, dá um exemplo que se diria extravagante, mas possível segundo o quadro legal ora proposto: o Mosteiro de Alcobaça podia ser transformado num “hotel de charme”! Ou vendida a Torre de Belém, diz a jurista Maria João Silva!
 
É uma “uma inovação de tal forma chocante que estamos certos de vir a constituir um escândalo nacional”, frisa-se num documento da recém-constituída Plataforma pelo Património Cultural. Um escândalo, nem menos, que não pode passar desapercebido, que é uma questão cívica maior – porque implica a memória colectiva e exige uma regulamentação bem definida e prudente. Da parte do governo, nota a Plataforma, há um “silêncio ensurdecedor”, mas um sinal de interesse surgiu: em Janeiro serão recebidos pelo Presidente da República.
 
Quanto ao ministro da Cultura, que se saiba, permanece na Ajuda, como de costume, a ver lá do alto os navios passarem – ou a barca a naufragar.

 

Ouro, prata, lata

 

Nuno Ferreira Santos – “Público”
 
 
 
O primeiro-ministro José Sócrates será pois O Menino de ouro do PS, título da biografia de Sócrates pela jornalista Eduarda Maio, que contou com a apresentação de António Vitorino e Dias Loureiro (como poderia ter sido de Jorge Coelho e Ângelo Correia). É pois em coerência que tem um assessor para a cultura que se apresentou como emblemático de uma Idade da Prata. A “lata” é que também não é pouca.
 
 
 

 

Crítico excelentíssimo

 

 

Foi notada a recente edição pelo Instituto Camões, instância pública de difusão internacional da cultura portuguesa, de (mais) uma publicação de Alexandre Melo, Arte e Artistas em Portugal. O autor é apresentado como licenciado em economia e doutorado em sociologia, crítico de arte, organizador de exposições, autor de diversos livros e também curador das colecções do Banco Privado (em depósito em Serralves) e Ellipse Foundation. Como é sumamente sabido, embora não referido na algo modesta apresentação de um autor que acumula tantos papéis, ele é também assessor cultural do Primeiro-Ministro José Sócrates. Dirá o autor (e de resto já o tem dito) que apesar da data recente da publicação, ocorrida durante a presidência portuguesa da União Europeia durante o segundo semestre do ano passado (facto aliás expressamente assinalado numa nota introdutória do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado), a encomenda data já de 2001, quando o director do Camões era Jorge Couto, e não quando Melo já exercia o seu actual assessorado.
 
Em rigor, pouco importa isso, pois se confirma a proximidade de Melo a uma zona de poder com conotações partidárias, PS no caso (de resto, sendo novamente governo o PS, como o era ao tempo da encomenda, também o responsável pela encomenda, Jorge Couto, está de novo num alto cargo cultural público, a direcção da Biblioteca Nacional), e que o autor do livro, para além das funções que presentemente exerce junto do primeiro-ministro, continua “apresentável”, como curador de colecções privadas, e a esse nível interveniente também em instâncias que são ao mesmo tempo de “consagração” e de “mercado”.
 
Seja qual for a perspectiva, artística, sociológica, política ou ética, torna-se patente que Alexandre Melo é um “case study” de acumulação de competências e papéis – que até eventualmente poderia no âmbito académico ser objecto de uma análise, não sem o risco de ainda vir a ter como arguente ou director do júri o mesmo Alexandre Melo, tais as promiscuidades instaladas.
 
É uma tal abordagem da arte a altos níveis do Estado, com competências sobrepostas e na institucionalização das promiscuidades, um caso crítico, ético e político que cristaliza um entendimento do “Estado da Arte” – sem qualquer regulação de instâncias de regulação. É uma intervenção nos “mundos da arte” que configura uma “dominação” e uma legitimação directa a partir de instâncias centrais do poder político, em violação das normas abertas no espaço público. E que por inteiro, creio, justifica que obstinadamente se continue a chamar a atenção para um sistema gravosamente enquinado…
 
 
 
 
“Crítico excelentíssimo” é o título de novo texto na coluna “O Estado da Arte” em www.artecapital.net , prosseguindo a reflexão “Estado da arte – arte do Estado?”.
 
 
Nota – A propósito de promiscuidades, “arte do Estado” e outras questões: a série PortugALL S.A. – As colecções de Manuel Pinho prosseguirá, tanto mais que agora abriram as exposições por ele desejadas no Allgarve.

 

PortugALL SA, as colecções de Manuel Pinho - II

 

 

Era ainda o mais mediático dos intelectuais do regime, Eduardo Prado Coelho (who else?), que passado precisamente um ano, a 20-03-06, dava conta, extasiado, de uma nova iniciativa cultural-fotográfica do esclarecido ministro da Economia e Inovação, uma exposição organizada “no Palácio da Horta Seca, aonde, naturalmente, o Ministério da Economia e da Inovação regressou”.
 
No afã propagandístico, o êxtase era mesmo prévio à exposição propriamente dita - que aliás não era nenhum motivo para êxtases – uma vez que EPC era um dos autores dos textos do catálogo, tal como também, o outro expoente da culturocacia vigente, o conhecido oposicionista Vasco Graça Moura, que quando lhe acenam com uma prebenda logo aceita penhorado – e mesmo num caso deste pois que, imagine-se, a exposição, 1.2.3. de seu título, era uma “celebração, pelo Ministério da Economia e da Inovação, do primeiro aniversário da data de posse do XVII Governo Constitucional”
 
Demos então a palavra ao ilustre ministro da Economia, Photo e Inovação.
 
 
1.2.3
 
A celebração, pelo Ministério da Economia e da Inovação, do primeiro aniversário da data de posse do XVII Governo Constitucional tem lugar através de dois eventos.
 
O primeiro consiste num encontro com empresários no Porto, na Casa da Música, sobre o tema: "Porque investimos em Portugal". Os empresários são os grandes protagonistas do ciclo de investimento que está a despontar no nosso país. Há um ano atrás, não teria feito qualquer sentido organizar um encontro semelhante.
 
O segundo é uma exposição de fotografia e vídeo no Palácio da Horta Seca, aonde, naturalmente, o Ministério da Economia e da Inovação regressou.
 
O Plano Tecnológico é uma das principais ideias políticas que germinou no movimento Novas Fronteiras. Passou mais tarde para o programa do Governo, antes de se transformar na peça central de uma estratégia de crescimento para o País. Trata-se de uma ideia política que está associada a inovação, a qualificação, a modernidade e a globalização; à capacidade de traduzir ideias em acção.
 
Há 1, 2, 3 razões para tentar associar esta exposição de arte contemporânea ao Plano Tecnológico.
 
Primeiro, o facto de o acto de criação artística consistir, na essência, num acto de inovação.
 
Segundo, a modernidade da fotografia, a qual passou de disciplina autónoma a meio de expressão privilegiado das artes plásticas no final do século XX e no início do novo milénio.
 
Terceiro, a ideia de confrontar Candida Höfer, um dos ícones da arte contemporânea e uma das principais discípulas de Bernd e Hilla Becher, com alguns dos nossos mais notáveis criadores contemporâneos.
 
Trata-se de artistas consagrados, tal como Helena Almeida e Jorge Molder, e de jovens artistas com créditos já firmados, tal como Vasco Araújo e Cecília Costa. Neste conjunto, o género feminino ganha por um resultado de 3-2.
 
Deste confronto, fica a noção de que a criação artística portuguesa tem características próprias, mas que acompanha as grandes tendências a nível global. Sendo assim no campo da fotografia e do vídeo, o grande desafio que temos pela frente é trabalharmos em equipa para que o mesmo aconteça a todos os níveis da nossa sociedade. Incluindo, na esfera da Economia.
 
Agradeço a Helena Almeida, Vasco Araújo, Cecília Costa, Candida Höfer e Jorge Molder por terem aceite protagonizar esta iniciativa; à Galeria Filomena Soares, Galeria Baginsky e Galeria Mário Sequeira, pela sua colaboração. A Eduardo Prado Coelho, Rosina Gómez-Baeza, Alexandre Melo, Vasco Graça Moura, António Gomes de Pinho e Nicolau Santos por enriquecerem este projecto com as suas reflexões.
 
A Delfim Sardo, por ter aceite este desafio com talento e capacidade de realização.
 
Finalmente, a todos os que deram o melhor de si próprios com o seu entusiasmo e dedicação ao Ministério da Economia e da Inovação durante os últimos doze meses.
 
Manuel Pinho
Ministro da Economia e da Inovação
 
 
Assinale-se, a propósito, que o curador Delfim Sardo fora quem, meses antes, ainda director do Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém, dera azo à estreia nessas funções de curadoria, da exposição “Espelho Meu – Portugal visto pelos fotógrafos da Magnum”, de Alexandra Fonseca Pinho, esposa do ministro, e responsável pelo pelouro Photo do BES, enquanto o marido, um degrau acima, era (é) ele próprio ministro Photo.

 

PortugALL SA, as colecções de Manuel Pinho - I

 

Tinham passados duas semanas* sobre a posse do Governo Sócrates, quando um deslumbrado Eduardo Prado Coelho nos fazia saber dos gostos d’O Coleccionador
 
Era de noite, estávamos ao pé do Pavilhão Chinês, naquilo a que se chama uma Loja de Conveniência. Formávamos um pequeno grupo, que comprava garrafas de água. Havia algumas pessoas que adquiriam chá, outros estavam sentados, conversavam, bebiam whisky, em certos casos, cerveja.
 
Na rua, havia gente que deambulava, algumas pessoas vinham do Príncipe Real.
 
Tínhamos algum receio dos que andavam nocturnamente junto às árvores e pareciam assumir dimensões ameaçadoras.
De súbito, encontrei o ministro da Economia.
 
Não se encontra todos os dias o ministro da Economia. Daí o meu espanto.
 
Como é que o vemos numa postura desportiva, descontraída como quem se passeia, com uma camisa e umas calças de quem saiu à rua, se deixou surpreender na primeira esquina? Olhou para mim e perguntou-me: "Conhece a minha colecção de fotografia?" Não, não conhecia. Então propôs-me que subisse ao apartamento onde morava.
 
Fomos a um quarto andar de uma casa extremamente sofisticada, com umas janelas extremamente bonitas que davam para a Rua da Escola Politécnica. Havia um quarto de crianças imensamente brincado, uma ampla mesa de casa de jantar, duas ou mais estantes. O apartamento era muito simples e ao mesmo tempo correspondia a um excelente gosto.
 
Já viu a minha jóia da coroa? Era um Man Ray. De Jeff Wall a Alfred Steiglitz e Gary Hill, havia nesta colecção o que há de melhor. A quem pertencia? A Manuel Pinho. Não eram só fotografias belíssimas, organizadas no sentido da beleza, mas no da força, da originalidade, da modernidade, da energia. Eram também fotografias iluminadas. E era sobretudo uma biblioteca de primeira qualidade.
 
Manuel Pinho não se limitava a mostrar, tinha um manifesto orgulho na colecção que reunira, e que gostava de exibir com a alegria de uma verdadeira criança. Não é costume um ministro da Economia gostar de fotografia, gostar de mostrar fotografia.
Não é habitual ter tantos livros. Perguntei-lhe se preferia fotografia à economia.
 
Como misturar coisas tão diferentes? A economia é da ordem do que se acumula: o útil, o instrumental, o capitalizável. A fotografia é outra coisa: o profundamente superficial, o sentido nómada, as coisas que se perdem e não fazem sentido.
 
Que Manuel Pinho consiga jogar nos dois campos deixa-nos surpresos. Parece que Luís Campos e Cunha também colecciona. Ainda bem. Isso quer dizer que há valores que ainda não foram esquecidos.
 
Talvez o socialismo seja hoje isto mesmo. Por outras palavras, colocar uma fotografia no meio de um processo de produtividade. Ou deixar que o que se perde se não perca e preencha as nossas vidas.
 
 
“Público”, 1-4-2005
 
 
Especialmente apreciável no panegírico era o devaneio lírico-político: “Talvez o socialismo seja hoje isto mesmo. Por outras palavras, colocar uma fotografia no meio de um processo de produtividade. Ou deixar que o que se perde se não perca e preencha as nossas vidas”.
 
Entretanto, e para ser rigoroso, uma ligeira correcção, já que fui casualmente testemunha de parte da cena: * o encontro ocorreu sim na noite anterior à tomada de posse do governo, mas o ilustre publicista terá por certo entendido que dava uma outra “patine”  relatar que encontrara, como “não se encontra todos os dias o ministro da Economia - daí o meu espanto”, redobrado da descoberta do coleccionador.

 

"Europe's West Coast" - "The inland"

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para além de todos os outros aspectos, alguns até eventualmente controversos em termos factuais, há um facto indesmentível na sequência dos dados que o “Público” noticiou: o Eng. Técnico José Sócrates Pinto de Sousa assumiu a autoria destes projectos. E isso é si mesmo um facto estético e cultural medonho, um facto político também.
 
O homem que reclama a asssinatura destes projectos foi depois, nomeadamente, Secretário de Estado do Ambiente e Ministro do Ambiente com a tutela do ordenamento do território – do ordenamento do território, sublinhe-se bem. É agora Primeiro-Ministro de um governo que no seu arsenal propagandístico inclui o novo-riquismo da mais recente colecção fotográfica encomendada pelo ministro Manuel Pinho, esse exemplo de parolice consumada que é a campanha “Europe’s West Coast”.
 
Pois, será a “west coast”, mas no “inland”, no interior, como afinal no caos urbanístico de tantas autarquias, não faltam exemplos à revelia dos mais elementares padrões estéticos, arquitectónicos e de qualidade de vida, exemplos como estes de autoria assumida por José Sócrates.
 
A este respeito, transcrevo um mail do arquitecto Pedro Gadanho:
 
Um país de patos bravos
Num momento em que Portugal se procura relançar como West Coast, o último pequeno escândalo que envolve o nosso PM é apenas patético. Para além da eventual ilegalidade dos actos praticados, o que aqui se joga é a imagem de uma cultura nacional. Trata-se dessa cultura bacoca e mal-formada que tarda ainda a revogar um Decreto-Lei, o famigerado 73/73, que simplesmente devolverá a competência de projecto àqueles com quem sempre deveria ter estado. Trata-se da cultura que durante algumas gerações premiou a chico-esperteza e a saloiice. Se, num contexto de mudança, os erros de juventude fossem realmente para se corrigir, se esta cultura fosse mesmo para superar, esperar-se-ia que Sócrates aproveitasse esta tragicomédia para fazer o mea culpa e procurar mudar a paisagem. Quando envereda por desculpas esfarrapadas, quando afirma a sua autoria dos projectos agora vindos a lume, o PM esquece o essencial: são aquelas imagens e aqueles crimes estéticos contra a paisagem que é preciso combater. Lançar uma West Coast cujo PM se declara ufano autor de tais projectos é um contra-senso de marketing político.
 
Pedro Gadanho, arquitecto
 
 
Para além das questões específicas que dizem respeito ao exercício da actividade dos arquitectos – o tal malfadado Decreto-Lei 73/73 que abriu a capacidade projectista a outros -, mas que no fundo nos afecta a todos e à paisagem construída do país, importa sublinhar que “são aquelas imagens e aqueles crimes estéticos contra a paisagem que é preciso combater” , e que “lançar uma West Coast cujo PM se declara ufano autor de tais projectos” não é apenas “um contra-senso de marketing político” mas ainda mais soa descaradamente a uma feira de vaidades.
ADENDA – O texto de Pedro Gadanho figura hoje também nas cartas ao director do “Público”.

O compromisso para a Cultura - II

 

 

 
 
Retomo agora, em versão um pouco abreviada, uma análise feita quando da posse do governo de maioria absoluta do PS por várias ordens de razões.
 
A primeira, que se mantêm por inteira válida, diria mesmo que reiteradamente, é que se tende a esquecer que houve compromissos assumidos pelo PS perante o eleitorado, que tomaram mesmo a formulação política de Programa do Governo.
 
É compreensível que questões, ou quebras de promessas e objectivos claramente fixados, como a da não-subida de impostos, a construção do novo areoporto na Ota ou o referendo ao Tratado Europeu, tenham um maior impacto mediático e público. Todavia, o compromisso governamental é válido para todos os sectores, é peça indispensável e fundamental do contrato democrático e da relação entre governantes e eleitores.
 
Confirmada no elenco governamental a quase absoluta secundariedade da Cultura nas opções do primeiro-ministro, o que tão largamente se veio a confirmar, identificado logo nessa altura um padrão da dupla a quem foi confiada a pasta, “ambos militantes do PC até bem tarde, ao fim da União Soviética, ambos queirosianos, ambos universitários que têm estado sobretudo ligado a questões de educação mais do que propriamente às dinâmicas culturais recentes”, que se viria inclusive a revelar de tão funestas consequências na persistência de um quadro de acção dirigista, havia ainda assim que lembrar, e há que lembrar, “que as capacidades dos governantes se avaliarão em concreto, e sobretudo, naquilo a que estão comprometidos, o programa do governo. Mas a que estão eles comprometidos e que está solidariamente o governo, o Primeiro-ministro desde logo”,
 
Para além de outros aspectos, em que a releitura deste texto suscita até um travo amargo (como na referência concreta a Augusto Santos Silva e que “as suas características parlamentares o qualificam para o novo posto – onde, de resto, afecto ao núcleo político do governo, poderá ter um papel de sensibilização” – amargo, de facto, verificado o particular despudor e gravidade com que afinal assume também ele a vocação controleira), resta ser imperioso recordar que, para além de condutas erráticas e mesmo de relacionamento prepotente e grosseiro, para além do imenso mal-estar que suscitou nos agentes culturais, a dupla Isabel Pires de Lima/Mário Vieira de Carvalho – com a cobertura política do primeiro-ministro é óbvio, ainda que uma ou outra vez com pouco disfarçado mal-estar – deve ser responsabilizada por ter deliberadamente faltado ao próprio compromisso político do Programa do Governo – o que tentarei lembrar com mais detalhe.
 
E isso não é facto político menor ou irrelevante (por muito com por diferentes razões o achem, imagine-se, um Pacheco Pereira ou um Vasco Graça Moura), mas uma violação das premissas do próprio contrato democrático.
 
 
 

 

 

 

O compromisso para a Cultura - I

 

 

 

1 - Tendo em princípio o novo governo as condições políticas para cumprir um contrato de legislatura, a consideração das linhas programáticas que se propõe não deveria restringir-se à sede parlamentar própria da democracia representativa, mas ser mais latamente atendida no espaço público.
 
No que diz respeito ao capítulo cultural, e antes de matéria propriamente de abordagem, esclareça-se um ponto prévio, que em rigor não diz respeito apenas a esse capítulo. Que essa parte siga fielmente o programa eleitoral do Partido Socialista, não é, em boa regra democrática, suponho, razão para “decepção” ou “ausência de novidade”, mas antes de elementar manutenção de um projecto programático, que agora todavia terá, espera-se que sem a repetição das desculpas do costume, tido como linha de acção governativa.
 
Se o programa enuncia uma estratégia, os meios da sua prossecução serão escrutinados também pelo possível relevo que o sector tenha no cômputo da acção governativa e quanto isso, embora não só, é já um outro dado a escolha da equipa do Ministério da Cultura.
 
2 – Mais do que gostaria numa coluna de opinião, mas dada a falta de atenção mediática, tenho que começar por transcrever os tópicos do programa, com a sua retórica própria.
 
“A política cultural para o período 2005-2009 orientar-se-á por três finalidades essenciais. A primeira é retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram. A segunda é retomar o impulso político para o desenvolvimento do tecido cultural português. A terceira é conseguir um equilíbrio dinâmico entre a defesa e valorização do património cultural, o apoio à criação artística, a estruturação do território com equipamentos e redes culturais, a aposta na educação artística e na formação dos públicos e a promoção internacional da cultura portuguesa. A opção política fundamental do Governo é qualificar o conjunto do tecido cultural, na diversidade de formas e correntes que fazem a sua riqueza do património à criação, promovendo a sua coesão e as suas sinergias.”
 
“O compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo (…). Ao mesmo tempo, o Governo fixa quatro objectivos complementares: a) desenvolver programas de cooperação entre Estado e autarquias, que estimulem também o crescimento da proporção de fundos públicos regionais e locais investidos na cultura; b) valorizar o investimento culturalmente estruturante, na negociação do próximo Quadro Comunitário de Apoio (2007-2013); c) rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão; d) alargar a outras áreas e, em particular, ao funcionamento dos organismos nacionais de produção artística, o princípio de estabilização de um financiamento plurianual”
 
É favorecido o funcionamento em rede de equipamentos e actividades culturais, tido como “ o melhor factor de consolidação e descentralização da vida cultural e de sensibilização e formação de públicos”, comprometendo-se também o Estado a “ criar programas de incentivo à qualificação dos respectivos recursos humanos e das respectivas programações, designadamente “um programa de apoio à difusão cultural, cujo objectivo principal será estimular a itinerância de espectáculos e exposições, assim como a circulação de informação e apoio técnico”, comprometendo-se também o Ministério a promover “medidas de facilitação do acesso aos diferentes bens e equipamentos culturais, a começar pela organização de um sistema de passes culturais”.
 
Sem prejuízo de outros itens, alguns dos quais de relevo, como a separação de direcção artísticas de funções administrativas em teatros nacionais e institutos públicos afins, a filosofia de acção sintetiza-se nas linhas atrás citadas, completadas pela opção pelo livro e pela leitura e pelo audiovisual como áreas de particular relevância.
 
3 – Este é, em primeiro lugar, um programa estruturado. O que é suficientemente raro para não ser assinalado.
 
A suborçamentação crónica do sector criou terríveis vícios, na reiteração das ladaínhas das verbas e dos subsídios. Não que aquelas não sejam importantes e que o reiterado horizonte de 1% do OE não seja crucial, inclusive em termos simbólicos, e até de uma criatividade com eventuais impactos económicos. Mas essa ladaínha da falta de meios financeiros de apoio às actividades, tão recorrente no espaço público, tolda a percepção genérica das dinâmicas culturais e das modalidades políticas da sua articulação, sendo estas uma instância em que há atender não apenas aos artistas e produtores mas também às formas de mediação e aos públicos, à cidadania em geral.
 
Este é um programa de acção governativa que equaciona os diferentes níveis, central e local, de estruturas públicas, a captação de apoios e participações privadas, as distribuições e acessibilidades territoriais, a relevância dos criadores e a diversidade dos públicos, os novos meios de difusão, a responsabilização e a avaliação das gestões. O seu núcleo é o de “cultura em rede”.
4 – Este programa tem a marca reconhecível de Augusto Santos Silva. E não me estou a referir apenas a quem era porta-voz do PS mas ao intelectual e sociólogo que vinha justamente colocando a ênfase no conceito de “rede”.
 
Não me cabe lamentar o facto de não ter sido ele o escolhido para a pasta. Entre o desenho de uma perspectiva e a acção há alguma diferença e, pese ainda a conjuntura financeira bastante adversa que teve que gerir, a sua anterior passagem pelo cargo não auspiciava um regresso, enquanto as suas características parlamentares o qualificam para o novo posto – onde, de resto, afecto ao núcleo político do governo, poderá ter um papel de sensibilização.
 
As questões políticas são de todo outras. Não houve qualquer indicação nem nos enunciados de Sócrates nem no seu preenchimento do cargo de uma presença da Cultura entre as suas atenções, nem mesmo do atendimento às muitas virtualidades do próprio programa.
 
Considerando a equipa Isabel Pires de Lima/Mário Vieira de Carvalho o que surpreende são as similitudes: ambos militantes do PC até bem tarde, ao fim da União Soviética, ambos queirosianos, ambos universitários que têm estado sobretudo ligado a questões de educação mais do que propriamente às dinâmicas culturais recentes. E quanto à óbvia diferença, lamento ter de constatar que a escolha de uma mulher para a Cultura, verificado o padrão geral deste governo, apenas confirma ter sido a pasta uma das últimas escolhas de Sócrates.
 
O que importa ter presente é que as capacidades dos ora governantes se avaliarão em concreto e sobretudo naquilo a que estão comprometidos, o programa do governo. Mas a que estão eles comprometidos e que está solidariamente o governo, o Primeiro-ministro desde logo.
 
Há então um outro nível político das questões. Considerando o programa do governo no seu conjunto, a “Cultura” é um item desgarrado do objectivo estratégico prioritário de “qualificação dos portugueses”, sublinhado em termos de plano tecnológico, inovação e ciência. Daí decorrem diferentes perspectivas de concretização orçamental, mas que podem também implicar o empenho político em “valorizar o investimento culturalmente estruturante”, inclusive na negociação do próximo Quadro Comunitário de Apoio. Ou a própria “estratégia de Lisboa” não passará também por aqui?
 
 
PÚBLICO, 27-03-05