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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Ana e Ana

 

Sylvie Rocha e Pedro Lacerda, foto de Jorge Gonçalves
 
 
 
ANA
De José Maria Vieira Mendes
Com Sylvie Rocha, Pedro Lacerda, António Simão e Rita Brütt
Encenação de Jorge Silva Melo
Artistas Unidos
Centro Cultural de Belém
 
 
José Maria Vieira Mendes revelou-se em 1998, com um notabilíssimo texto a partir de Kafka, Dois Homens. Se continuou e tem continuado a escrever textos a partir de outros autores (Dostoievski, Schnitzler ou o Padre António Vieira), o que mais importa é o seu segundo momento de revelação, com um texto original, T1, em 2003, espécie de manifesto geracional também, já que colocando em cena situações de actualidade, de uma geração jovem aqui, e texto de uma considerável claustrofobia.
 
É de reter o título T1, tanto mais quanto uma dos mais recentes obras de Vieira Mendes, de 2008, se intitula Onde Vamos Morar. O problema da habitação, ou os problemas na habitação, no choque das personagens encerradas num mesmo espaço, nas casas, afigura-se um dos topos essenciais da sua escrita. Mesmo em Outro Fim, libreto para a ópera – e notável libreto de uma ópera de câmara -, que a partir do texto viria a ser composta por António Pinho Vargas em 2008, havia um minucioso detalhe das divisórias e compartimentos.
 
Mas disse que T1, qual efectiva matriz, era também, um manifesto geracional, Vieira Mendes viria a escrever mesmo uma trilogia sobre pais e filhos constituída por A Minha Mulher, O Avarento e Onde Vamos Morar. Pais e filhos e casais são outro topos da sua escrita.
 
Agora há Ana. Há de novo uma delimitação espacial muito preciso, uma sala de estar, uma sala de uma casa, e as mesmas recorrências desse topos: “Vão deitar a casa abaixo” ou “Encontro pessoas, casas habitadas”.Mas há uma mãe e uma filha, Ana e Ana – caso para perguntar se neste tradutor de Brecht se tratará de uma reminiscência das Hanna 1 e Hanna 2 de Os Sete Pecados Capitais de Brech/ Weill. E já que falei dessa outra actividade é de assinalar o eco pinteriano – e Vieira Mendes traduziu Pinter – na personagem que instaura a estranheza, esse visitante Outro Homem, que talvez já tenha habitado naquela casa e tenha sido anterior marido de Ana1.
 
Mas atente-se bem ao título, Ana – é um nome corrente mas também um palindroma, que pode ser lido de trás para a frente, como que instaurando um vaivém no texto. E há Ana e Ana, que tem o mesmo nome mas são uma e outra, repetição e diferença.
 
Ana, retomando ainda os topos mais reconhecíveis do autor é a sua peça estruralmente mais original e formalmente abstractizante. Não há linearidade na sucessão de cenas ou quadros – uns, que vêm depois, podem ser cronologicamente anteriores ao precedente. A atenção dos espectadores, os modos de recepção, são assim problematizados e ao mesmo tempo mais abertos de leituras. E como se pode deduzir é um texto de grande complexidade.
 
Entre a objectivação e a abstracção, o encenador Jorge Silva Melo optou por, tanto quanto possível, deixar o texto fluir. Acontece que a opção não faz jus à singularidade do texto. Há um reconhecível estilo Artistas Unidos, por exemplo na frieza da cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves e das luzes de Pedro Domingos, que aqui se torna quase asséptico. Mas Ana, o texto sobrevive, e na sua particular singularidade é uma confirmação acrescida do estatuto ímpar de José Maria Vieira Mendes na dramaturgia portuguesa contemporânea.
 
 
CCB até domingo, Teatro Municipal de Almada de 26 de Novembro a 13 de Dezembro