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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Haendel esquartejado

 

 
Foto de Alfredo Rocha
 
 
 
 
 
Handel
Agrippina
Nuno Côrte-Real
O Velório de Cláudio
Encenação de Michael Hampe
Direcção de Nicholas Kok
São Carlos, 17 de Abril
 
 
 
 
BASTA! Basta de disparates e assassinatos no São Carlos, como agora com a Agrippina de Haendel!
 
Escolheu o teatro comemorar os 250 anos da morte do compositor assinalando também o tricentenário da estreia do seu grande sucesso público italiano, ocorrida no mais prestigiado teatro de Veneza, o S. Giovanni Crisostomo.
 
Logo os disparates começaram com a encomenda a Nuno Côrte-Real de um intermezzo à maneira da opera buffa que se intercalava na opera seria, Acontece que tal prática se constituiu sim com a sucessiva ópera napolitana, e que Agrippina pertence ainda esteticamente ao mundo da seiscentista ópera veneziana, tal como se encontrava já exemplarmente definido na L’incoronazione di Poppea de Monteverdi (de que Agrippina é em termos de referentes históricos uma espécie de préquela), misturando situações sérias e cómicas – Haendel guardará a memória disso ainda em obras muito mais tardias como o Giulio Cesare e o Serse. Quem não sabe isso, ou seja, que não há qualquer lugar a um intermezzo na Agrippina, isto é, o senhor Christoph Dammann – essa “brilhante” personalidade desencantada pelo ex-secretário de Estado e intendente-geral dos teatros, Mário Vieira de Carvalho, responsável primeiro pela actual situação – é um ignorante de história de ópera e, como tal, não tem qualificações para ser director de teatro.
 
Acontece que o libretista escolhido por Côrte-Real, José Luís Peixoto, em nada fiel ao espírito da encomenda, escreveu de facto uma préquela à ópera de Haendel, O Velório de Cláudio ou representação bufa de personagens históricas, texto indigente (escapa-me a piada de no velório de um suposto morto haver uma batalha de pastéis de bacalhau!) que em nada faz jus à sua reputação, e que dada a natureza do texto o encenador Michael Hampe decidiu, com acerto, colocá-lo antes como prelúdio.
 
Considero e estimo Côrte-Real como um dos mais talentosos jovens compositores portugueses, mas depois de A Montanha há dois anos na Gulbenkian, no Fórum “O Estado do Mundo”, este é outro desastre, uma música sem personalidade, que de novo parece uma má filtragem, com alguns “pós” modernos, de certos compositores “nacionais” da Europa Central da primeira metade do século (Janácek ou Kodaly).
 
Mas o pior vem depois: em vez de celebrado Haendel é, ó socorro, esquartejado: das mais de 3h30 de música da Agrippina restam 2h25! Corta aqui e ali, corta a secção b e o da capo (e portanto a arte da variação ornamental), corta mesmo no final a personagem de Juno. Isto faz-se?! É isto a responsabilidade de um Teatro Nacional?
 
No elenco apenas três cantores, Alexandra Coku (Agrippina), Musa Nkuna (Nerone) e Andrew Wattts (Ottone) revelaram algumas noções do canto haendeliano, mas com tantos limites ou falhanços pelo meio! Coku mostrou alguma autoridade, embora também opacidade nos agudos em Pensieri, para logo depois falhar o Ogni vento que conclui o Acto II e terminar a ópera esgotada. Ao contratenor Watts fugiu-lhe sistematicamente a voz de cabeça para voz de peito, e o maravilhoso lamento de Ottone esteve longe de ser pungente como requerido. A Nkuma faltou-lhe plasticidade de voz.
 
Os outros foram um horror, quase todos. Reinhard Dorn (Claudio), que numa troca de papéis se imaginou a cantar, mal, o Don Bartolo do Barbeiro de Sevilha, Manuel Brás da Costa (Narciso) e Chelsey Schill (Poppea) fizeram entre eles um festival de desafinação, para sofrimentos dos nossos ouvidos e melomania handeliana. Schill, a tal que é de facto a única cantora-residente no São Carlos cantando em (quase) todas as óperas (onde estão as prometidas audições de cantores portugueses?) merece uma referência especial, de tão estúpida de superficialidade (sim, escrevi estúpida, no tocante à negação da inteligência musical) se mostra a sua concepção de boneca mecânica a precisar de urgente reparação. Quanto a Luís Rodrigues (Palante), pode ser um dos melhores cantores portugueses, é-o de facto, mas o barroco e o canto fiorito em geral não se lhe adequam.
 
Ao longo de muitos anos escrevi vezes sem conta que Michael Hampe era “o mais chato encenador do mundo” para agora me dizer. A ancenação é chata e rotineira, sem uma ideia, a não ser um beijo incestuoso de mão e filho, Agrippina e Nerone, que nem aquece nem arrefece, é apenas inconsequente.
 
Mas o pior, o pior mesmo (com Chelsey Schill) é a direcção quadrada de Nicholas Kok, a braços, é certo, com a difícil tarefa de pôr membros da Sinfónica Portuguesa a tocar Haendel. Nada há de gradações dinâmicas e de sentido do fraseado, de propulsão rítmica, e os oboés mostram mesmo sérias dificuldades. E de nada vale ter um contínuo “barroco” quando é tão pobre (como é que um músico como o cravista Marcos Magalhães se fica pelo nível zero?!), desagradável mesmo (Kenneth Frazer no violoncelo barroco).
 
Não muito depois de tomar posse, o ministro José António Pinto Ribeiro, tinha dito da sua discordância da Op.Art, esse organismo aberrante que reúne o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado – valendo-lhe aliás logo resposta de Vieira de Carvalho. Como se tornou no ministro inexistente deixou as coisas continuaram. Assim, mais que co-responsável, é ele altamente responsável pela permanência do incompetente senhor Dammann, e portanto pela falta de respeito pelos níveis de “qualidade artística” legalmente fixados.
 
Ò socorro, ó da guarda – Haendel está a ser esquartejado no São Carlos! Basta e BASTA!