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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Manifesto pelo cinema português - II

 

O Manifesto pelo cinema português é um documento da maior importância e urgência, e por isso entendi colocá-lo também aqui – sendo uma excepção que publique um texto alheio. Mas, como se compreenderá, não deixo por isso de ter opinião própria.
 
A situação é de facto de asfixia, e a criação de um Fundo de Cinema para o Cinema e Audiovisual, FICA, ao lado do Instituto de Cinema e Audiovisual, ICA, que participa enquanto parceiro público no outro, e o funcionamento até agora desse Fundo, só vieram afinal criar mais disparidades e prepotências, em vez de diversificar as fontes de financiamento com regras claras.
 
Numa carta aos produtores, que o público.pt divulgou, a ministra da Cultura reconhece a paralisia do FICA, que precisa de novos parceiros e a substituição da sua entidade gestora, que por extraordinária que pareça tem sido a ESAF, Espírito Santo Fundos de Investimento Mobiliário! Acontece que se há paralisia institucional, o FICA não deixa de ter concedido apoios que, ao contrário da necessidade de regras claras, se caracterizam pela arbitrariedade e facciosismo.
 
Nesta circunstância, com diminuição significativo do número de filmes produzidos, uma chamada de atenção e um apelo público eram imperativos, sendo de salientar que o manifesto reúne um conjunto sem precedentes dos cineastas portugueses mais representativos (exceptuando, como é óbvio, aqueles que prosseguem uma mirífica indústria do audiovisual, que o mercado interno nunca poderá comportar – tenho respeito pela competência e coerência de alguns deles, e entendo, e sempre entendi, que se deveria garantir a pluralidade do cinema português, mas acho o “discurso da indústria”, além de inconsequente, pernicioso), do patriarca do cinema mundial, Manoel de Oliveira, de 101 anos, Palma de Ouro especial do Festival de Cannes, entre muitas outras distinções (Veneza, Berlim, etc.), ao jovem João Salaviza, de 26 anos, Palma de Ouro da Curta-Metragem na última edição de Cannes. Já no tocante aos produtores, e tem também que se assinalar, o leque é muito de uma escala micro, apenas se salientando as subscrições da Filme do Tejo e da Midas – esta conhecida sobretudo como imprescindível editora de dvds, mas que além de igualmente distribuidora, tem um significativo número de documentários produzidos.
 
Começo por assinalar aquilo em que divirjo do documento, desde logo no pressuposto de que “Nunca nos últimos vinte anos teve o cinema português uma tão grande circulação internacional e uma tão grande vitalidade criativa” – não concordo e acho factualmente incorrecto.
 
O grande período de florescimento do cinema português foram sim os anos 80, e, caso excepcional no panorama mundial no tocante a pequenas cinematografias, a repercussão internacional prolongou-se ainda pelos anos 90. Ao contrário desse “estado de excepção”, entendo que na última década o cinema português, se teve um florescimento dos documentários e curtas-metragens, se a década foi também a da consagração de Pedro Costa como um dos grandes cineastas da actualidade, do ainda mais alargado reconhecimento do malogrado João César Monteiro e da emergência de dois outros autores de estatuto internacional, João Pedro Rodrigues e Miguel Gomes, foi igualmente a de apagamento criativo de alguns cineastas, e sobretudo que o cinema português, em vez do “estado de excepção” se “normalizou”, com o que isso supõe de mediania dominante. Chamo aliás a atenção, e é factualmente comprovável, que a presença de filmes portugueses nas diversas secções dos grandes festivais internacionais baixou de forma muito significativa, em relação às duas décadas anteriores.
 
Isto leva-me a uma segunda divergência, esta bastante polémica e “impopular”. Se acho imprescindível aumentar a produção de primeiras obras, documentários e curtas, não subscrevo de modo algum uma genérica reivindicação de “mais filmes”. Acho mesmo que para o impacto real que têm, no acolhimento pelos diferentes segmentos de público, na recepção crítica, e difusão internacional (festivais e vendas), há antes “filmes a mais”.
 
O que há também, e são pontos que me espanta que o Manifeste não foque, são dois problemas gravíssimos: um é a suborçamentação dos filmes, com as mais danosas consequências para o seu acabamento e valor, e outro é a catastrófica falta de rigor dos júris de atribuição de subsídios do ICA. Não se trata de dizer, como é tantas vezes discurso corrente no meio, que X devia ser subsidiado e não Y – isso é uma “política de gosto”, inaceitável nos princípios de subsidiação pública de um Estado Democrático.
 
Trata-se sim de dizer (e permitam-me que refira que o digo com a experiência de ter lido e dado pareceres sobre centenas de projectos de cinema e televisão de quase toda a Europa nos anos em que fui consultor do Script Fund do Programa Media da União Europeia) que os membros de júris cinematográficos têm de ter uma capacidade específica de apreciação dos projectos atendendo aos curricula dos realizadores, do impacto das suas obras anteriores e do tipo de públicos a que se destina. Em vez disso os júris têm sido constituído por literatos e “nomes de prestígio”, com as mais nefastas consequências – por exemplo, é incompreensível, mas há casos, em que determinado filme tem impacto público quase inexistente, e logo de seguida o realizador tem novo subsídio, e até um outro depois.
 
Explicitadas as divergências, acho o Manifesto um documento importantíssimo, com alguns pontos do maior relevo, como a actualização das taxas de distribuição e exibição e a canalização para o cinema, mais que justificada e urgentíssima, da taxa sobre os dvds, da normalização do funcionamento da FICA, e de fazer nele entrar as novas plataformas por cabo, e das relações com a RTP, (que cada vez é mais só residualmente um serviço público), etc., etc., sem esquecer, ponto da maior importância, o apoio à distribuição e exibição independentes, tão estranguladas. De facto, “está na altura dos poderes públicos assumirem as suas responsabilidades” e “é urgente uma intervenção de emergência no cinema português”.
 
Por isso, apesar das divergências de análise (até porque sou crítico e programador e não realizador ou produtor), publiquei aqui o Manifesto com o link para a petição pública, assinei esta e apelo à sua subscrição. A ministra da Cultura, não pode deixar de atender a um tal documento.

Tréplica a Rui Moreira - I

Como o ilustre Presidente da Associação Comercial do Porto e comentador futeboleiro na sua recarga dispara em várias direcções mas quase só contra mim – e contra esta página, que não nomeia – investe, sou forçado a concluír que além de pessimamente informado, padece não só de demagogia e populismo rasca, como já se tinha notado, mas também de dislexia profunda.
 
Em primeiro lugar, estou completamente fora de qualquer sistema de atribuição de apoios do Instituto da tutela há tempo que baste – desde 1989, para ser preciso. Mais: pelas razões que invoquei, sou profundamente crítico do modo como esse sistema se tem vindo a processar. Não me ofende quem quer, nem quem insinua gratuitamente, e Rui Moreira pode mesmo chamar-me “situacionista” (o que é uma originalidade), que não me atinge.
 
É-me totalmente indiferente que Rui Moreira goste ou não de Call Girl. Nunca foi isso que esteve em causa, nem expressei qualquer opinião sobre o filme; era o que faltava pôr-me a discutir “o gosto dos outros” (para citar o título do inteligente filme de Agnès Jaoui, bem mais sério aliás do que o possa aparentar), o que de resto colidiria com os meus princípios de respeito da autonomia individual. Em matéria de apreciações cinematográficas, estou aliás mais que habituado a ter opiniões minoritárias, e mesmo a ser vituperado por algumas delas, com a ironia de suceder algumas com o decorrer do tempo passarem a ser até da “doxa”, caso por exemplo das continuadas defesas que fiz de Clint Eastwood e David Cronenberg – já agora, e porque veio à colação, oh críticos, oh tempora, oh mores, também posso acrescentar a tudo o que já escrevi que, se não fosse a consagração crítica que teve na Europa, nunca Eastwood teria sido reconhecido nos Estados Unidos e obtido Óscares, e já agora também, porque se pode estar a falar em “mainstream” sem saber do que se fala, que um filme como Million Dollar Baby esteve em risco de não existir porque a Warner não o queria produzir - e depois até teve o Óscar de melhor filme.
 
O que estava e está em causa é sim: 1) a total impunidade e leviandade de opiniões impressas absolutamente irresponsáveis, como a do artigo “Call Boys” de Rui Moreira, isto é, um abuso do espaço público, que descrebiliza o debate e o confronto de ideias, o que cada vez mais é um não pequeno problema da imprensa portuguesa e, 2) que o argumentário de Moreira se baseava num conjunto de falsificações históricas, coisa a que ele não responde. Insinuar que o actual sistema de apoios do Estado, por distorcido que seja (e eu acho que devia ser quase integralmente repensado) prossegue um hipotético “dirigismo” directo do tempo da ditadura, é nomeadamente dizer que Manoel de Oliveira, Fonseca e Costa, Cunha Telles, Paulo Rocha, António de Macedo ou Sá Caetano (cineastas que, como referi, integravam o único plano de produção do então IPC anunciado ainda antes do 25 de Abril), para apenas citar os vivos, foram “cineastas da ditadura”, insulto demasiado absurdo para que quem o enuncia tenha a menor das credibilidades na discussão.

Tréplica a Rui Moreira - II

E eis que, da reserva de argumentos, Rui Moreira ressuscita o fantasma de Branca de Neve de João César Monteiro, e fá-lo saltar do banco e entrar em campo. Certamente que o filme que foi realizado não correspondia ao projecto aprovado, tecla todavia mais que gasta, uma vez que as questões decorrentes foram devidamente resolvidas, tanto quanto se sabe e é público, entre o produtor do filme e o Instituto. Eis, no entanto, e isto sim importa, que o emimente comentador futeboleiro e nessa qualidade colega de painel de António-Pedro Vasconcelos, o realizador da dama de Moreira, Call Girl de seu nome, vem a propósito dizer que “o cinema ‘autista’ (...) não pode esgotar os subsídos” –  mas que despudorada invenção factual é esta?
 
Com todos os vícios do sistema de atribuição, que eu mais uma vez sublinho achar que existem, não têm tido apoios cineastas tão diversos, melhor dito, realizadores (e com eles, produtores) tão diferenciados na sua concepção de cinema como Manoel de Oliveira, Fonseca e Costa, Fernando Lopes, António-Pedro Vasconcelos, João Botelho, Joaquim Leitão, Pedro Costa, Teresa Villaverde, Leonel Vieira, João Pedro Rodrigues, etc, etc? Grave seria de facto se tal não sucedesse - mas sucede.
 
Do mesmo modo lembrarei que, de facto, inquisidores também não faltam. Se Rui Moreira entendeu ressuscitar o caso de Branca de Neve, será útil recordar-lhe que, a propósito, uma campanha contra João César Monteiro foi depois lançada por uma das associações de realizadores, aquela onde pontifica Vasconcelos, tendo o porta-voz sido José Carlos Oliveira. Que eu saiba, Um Rio, o filme seguinte do mesmo Oliveira, José Carlos, que extraordinariamente até teve apoio do tão anti-subsidíodependentes Rio, Rui, foi, por exemplo, um desses filmes que passaram sem deixar qualquer rasto; claro que se destinaria a um vasto público...
 
Quando Rui Moreira escreve que “não se pode disponibilizar apoios, lavando, depois, as suas mãos, desresponsabilizando os agentes que beneficiam de subsídios a fundo perdido, que fazem filmes totalmente pagos por esse dinheiro público e que não são auditados nem escrutinados por ninguém”, e ressalvando que o “totalmente” é inexacto, eu, o tal “insultador situacionista”, acho que isso sim, como tudo o que envolve a atribuição e gestão de verbas públicas, é uma questão séria. Acontece que, de certeza, como poderia saber Rui Moreira acaso soubesse do que fala em vez de ser mero megafone, se há alguém que desde há muito tempo insiste nesses aspectos, pois é este mesmo “situacionista” (pensando bem, é tão grotesco que acabo por achar imensa graça ao epíteto), já desde 1984, como está publicamente registado, coisa que nomeadamente à época me valeu os ataques do costume, imagine-se que na altura a dupla do contra-ataque sendo constituída por António-Pedro Vasconcelos e João César Monteiro!
 
Mas quando Moreira passa dessa questão, real e importante, para proclamar que os filmes não seriam escrutinados por ninguém “a não ser pelos críticos que têm assento nos júris e depois promovem os filmes e abatem os filmes e os cineastas que ousam afastar-se e enfrentar a sua ‘linha justa’”, o salto é de tal modo disléxico, e sem qualquer espécie de base factual, que só a paranóia do mais rasteiro populismo anti-intelectual de que os seus dois textos são perturbante sinal pode explicar tanta asneira – e estou tanto mais à vontade para o dizer quanto, insisto, há 17 anos que não integro nenhum júri do Instituto e nada, mas nada tenho a ver com qualquer “corporação crítica”.
 
Acontece ainda que, qual pescadinha de rabo na boca, se o argumentário soprado por Rui Moreira recuava históricamente a uma falsificação sobre as pretensas características “dirigistas” herdadas da ditadura, termina com outro insulto político, tão extravasante quanto grave: a comparação com a RDA e a Stasi evocadas em A Vida dos Outros (e não “As Vidas dos Outros” como ele escreve, sempre pertinente e fundamentado). Eu conheci a RDA, e essa é uma memória de que tenho particular horror, tanto maior quanto verifico que até há nostálgicos que tentam prosseguir políticas que lá os fascinaram. Rui Moreira não sabe do que fala e na sua total irresponsabilidade não faz de facto a miníma ideia, ao usar um argumento tão gratuito, do que é valor da liberdade face a aparelhos totalitários. E assim, portanto, conversa acabada – homens livres têm opiniões próprias, não sopradas e abusivas.

 

 

A resposta de Rui Moreira

A revolta dos boys
 
Como esperava, a minha crónica sobre cinema suscitou a ira dos que se sentiram visados. Augusto M. Seabra, no seu papel favorito de insultador situacionista, foi um dos que espumaram e a chamaram rasca. Não faltaram os comentários jocosos, ligando-me ao futebol (de que só os indigentes e incultos gostam e falam), invocando que sou presidente da Associação Comercial do Porto (que julgam ser de horríveis comerciantes) e apelidando-me de "empresário" (que é, para eles, sinónimo de ignorante e imbecil). Distorceram, claro, o que escrevi, sugerindo que só poupei Oliveira pela sua vetusta idade, que não sei o que é "cinema de autor", que não reconheço a diferença entre qualidade e bilheteira.
 
Essa reacção sistémica dos zelosos boys e dos auto-intitulados especialistas perante a denúncia que fiz do ciclo vicioso instalado e do clientelismo que afecta e infecta a crítica cinematográfica, é tão patética como compreensível. São eles, afinal, quem tem, e quer manter, o poder. São eles quem colhe os privilégios de dominar os júris e de determinar, através da selecção e, mais tarde, da crítica, quem filma e quem não filma. Naturalmente, não lhes convém que gente como eu se atreva a discutir esses critérios ou se aventure, sequer, a escrever que gosta de um filme como Call Girl, que, segundo o inquisidor Pedro Costa, tem o triste condão de entusiasmar os burgueses por uma mulher fatal...
 
Acontece que não me conformo com esta sina do nosso cinema e não me deixo intimidar pela pabulagem dos batoteiros. Entendo que o Estado deve regular e estimular o cinema português (e não apenas o mainstream) de forma responsável. Não se pode limitar a disponibilizar apoios, lavando, depois, as suas mãos, desresponsabilizando os agentes que beneficiam de subsídios a fundo perdido, que fazem filmes totalmente pagos por esse dinheiro público e que não são auditados nem escrutinados por ninguém; a não ser pelos críticos que têm assento nos júris e que depois promovem as suas escolhas e abatem os filmes e os cineastas que ousam afastar-se e enfrentar a sua "linha justa".
 
Não me incomoda, por exemplo, que César Monteiro tenha tido uma crise de inspiração ou de fotofobia ao realizar Branca de Neve. O problema é que o subsídio que recebera destinava-se a um filme convencional (com cenários e guarda-roupa), que o cineasta nunca realizou. Este cinema "autista", que despreza o público em nome da ideia romanesca de que o artista é um incompreendido, não pode esgotar os subsídios e estes não lhe podem ser atribuídos por falsos pretextos e pelas piores razões.
 
Depois de ter lhe sugerido Call Girl, recomendo, caro leitor, que não deixe de ver As Vidas dos Outros, um magnífico produto do novo cinema alemão, disponível em DVD, que retrata o dirigismo da produção artística. Nesse caso, é certo que o dirigismo é político, mas verá que se assemelha, pela corrupção que fomenta e pelos resultados que produz, ao dirigismo estético que continua em voga entre nós e que tem, nesta gente que incomodei, os seus Stasi de serviço. A esses, prometo-lhes que voltarei, em breve, a este tema.
 
 
in “Público” de 14-01-08

Cinema, críticos, futebol e "call boys" - IV

 
Eis que agora o cinema também é matéria do âmbito de “treinadores de bancada” e dos locutores públicos do “futebolês”. O que lhes não ocorre, no seu facciosismo, é que se alguém está estritamente a traçar uma suposta “via para o cinema português”, e assim a delinear um dirigismo, são eles mesmo, os “call boys” e “cow boys”. Querem sim sexo e padre, sexo, poder e futebol, sexo, poder e polícia, querem O Crime do Padre Amaro, Corrupção e Call Girl? Querem isso, e vêm falar ainda de “dirigismo”?
 
Mas como supõem que se garante o “apelo público”? Sabem por acaso que A Guerra das Estrelas começou por ser um divertimento quase experimental de George Lucas? Que E.T. foi o “pequeno filme pessoal” de Spielberg? Ou que agora a Dreamworks e a Warner andam confusas temendo por um projecto tão ousado como Sweeney Todd de Tim Burton?
 
(Sou um confesso admirador de A Guerra das Estrelas, rendi-me extasiado a E.T. logo na sua primeira apresentação pública em Cannes em 1982, Tim Burton é um dos meus autores mais apreciados, que fique tudo devidamente claro; se há pessoas que por facciosismo, e cabotinismo, tenham um discurso de rejeição do que é “sucesso” só por o ser, não faço parte desse lote.)
 
Conhecem estes articulistas os dados e factos do cinema em Portugal para saber como se fazem “filmes de mais público”? Saberão que realizadores e produtores que eram tido como garantes de “sucesso de público”, como o já citado Leonel Vieira, se depreciaram vertiginosamente? Têm alguma ideia concreta do impacto real das ficções telenovelescas e, mais grave ainda, dos “reality shows”, do impacto do sistema televisivo em geral?
 
Que há filmes e filmes que têm vindo a ser apoiados e produzidos condenados à insignificância, eis também o que é uma triste realidade que não pode ser iludida – e me leva de há anos à posição “impopular” de achar que há excesso de projectos apoiados e que deveria redifinições urgentes, mas esta é uma posição crítica pessoal. Não postulo linhas de orientação, ao contrário destes eminentes “treinadores de bancada”.
 
Quem serão afinal esses tal “call boys” que até dão título ao texto de Rui Moreira? Quem são nomeadamente os mencionados “críticos que desprezam tudo o que atrai público”, quem? É que já agora fico curioso por saber pois, pelo contrário, o que me parecem não faltarem é “críticos” com pouco sentido crítico, e alguns mesmo claramente enfeudados a distribuidoras e aos valores do “box office”, e das pipocas.
 
Que eu tenha sim apercebido, o notório “call boy” desse panfleto rasca, cheio de deturpações e insinuações, é o próprio Rui Moreira.
 
Mas o discurso do populismo “anti-intelectual” e “anti-críticos” ganhou uma tal dimensão, que até se viu esse artigo subscrito por um crítico literário e blogger de opinião fácil e abundante. Sim, já sabíamos que Eduardo Pitta também é muito “socialaite” e que, supondo-se cosmopolista, não raro cai na parolice. Pode ser que, tão “socialaite”, tenha achado que vir em socorro da Call Girl um “call boy” não apenas de bolsa mas de Palácio da Bolsa, era “chic a valer”. Mas mesmo sabendo como é fácil a tentação do blogger (e falo agora em termos gerais), é ainda assim inquietante de verificar quão longo é o lastro rasteiro do apelo contra um suposto “establishment crítico”, todavia já de si reduzido à insignificância de estrelas e estrelinhas.
 
 
 
Com estes quatro textos se retoma afinal uma reflexão sobre os estados críticos, sobre se “a ‘crítica’ ainda existe?”

Cinema, críticos, futebol e "call boys" - III

 

 

 

 

 
Vai sendo cada vez mais frustante de verificar o afunilamento da opinião impressa, a falta de renovação, o auto-centramento e defesa de interesses pessoais mesmo de vários colunistas, e sobretudo a absoluta leviandade de muitos dos argumentos expandidos. Também a este respeito, “Call boys” é um texto tristemente sintomático.
 
O apoio do Estado às actividades artísticas e culturais é recorrentemente apresentado como um “monstro tenebroso”. Que possam existir riscos é inegável, e volta de quando a quando a ser notório, como agora com o dirigismo em vários aspectos da actual equipa do Ministério da Cultura  – e, ao longo dos anos, não tenho cessado de me manifestar quando creio ocorrerem tentativas dirigistas, ou um sistema de promiscuidades que fecha o leque das opções. Mas os muitos “liberais” adeptos da retirada do Estado para funções apenas de preservação patrimonial, “esquecem-se” de uma condição básica do liberalismo: a criação de condições tão alargada quanto possíveis à manifestação pública não só das mais diversas opiniões, como também das mais diversas expressões, incluíndo as de ordem artística.
 
Que muita coisa seja inepta e mal-fundamentada nas atribuições de apoio por parte do Instituto do Cinema e do Audiovisual e de outros congéneres é inegável. Que daí se deduza a estigmatizaçao de um suposto “dirigismo” consubstancial a essas estruturas, é um salto arbitrário e afinal de natureza ideológica.
 
Em defesa do colega do “Trio de Ataque” e da sua Call Girl diz Rui Moreira “A.P.V. tem o raro mérito de produzir filmes de que o público gosta e que são sucessos de bilheteira. Paradoxalmente, paga caro essa virtude e é vítima de um sistema perverso de dirigismo, que teve início na Primavera marcelista. Nessa altura, como o regime queria evitar a censura directa, escolhia quem podia filmar através do controlo político dos subsídios, que eram atribuídos pelo Instituto Português do Cinema em função das conveniências e financiados através de uma percentagem das bilheteiras”. As asneiras são tantas que justificam a análise do detalhe.
 
1) - A que se propósito se pode escrever que “o regime queria evitar a censura directa”? Tinha acaso deixado de haver censura? Por exemplo, não estava proíbido O Mal Amado de Fernando Matos Silva?
 
2) – Quanto a essa de que “o regime (...) escolhia quem podia filmar através do controlo político dos subsídios, que eram atribuídos pelo Instituto Português do Cinema em função das conveniências”, diga-se apenas que, a) a Lei 7/71 foi consequência de um esforço persistente da geração do “cinema novo”, António-Pedro Vasconcelos incluído, e que na Assembleia Nacional do regime, forçado a reconhecer a necessidade de um novo quadro legal, mormente depois do decisivo apoio da Gulbenkian à cooperativa Centro Português de Cinema, quem sobretudo se bateu foram deputados da “ala liberal”; b) houve um único plano de produção antes do 25 de Abril, e nenhum dos autores com projectos aprovados, Manoel de Oliveira, António de Macedo, Manuel Guimarães, Cunha Telles, Artur Ramos, Sá Caetano, Fonseca e Costa e Paulo Rocha, era afecto ao regime, e vários eram mesmo oposicionistas declarados. Como então falar expressamente de “controlo político dos subsídios”? Santa ignorância, mas não ingénua.
 
Este exercício de falsificação é o pórtico necessário para o “dummy” abrir plenamente o espaço ao discurso e aos ressentimentos do ventríloquo, reconhecíveis a léguas: “Hoje (...), em vez de critérios políticos, o dirigismo exerce-se através de critérios pretensamente estéticos, fomentando o "cinema de autor" de que Oliveira é o paradigma, e impedindo a produção de cinema main stream. É por isso que A.P.V. só conseguiu, até hoje, produzir sete longas metragens e teve de adiar o seu Call Girl, já que no ano passado o subsídio lhe foi negado a pretexto de, imagine-se, ter menos capacidade de comunicação com o público do que a Belle Toujours de Oliveira. Ora, Oliveira merece todo o apoio, mas não pode esgotar os subsídios nem se pode transformar no paradigma do cinema nacional.”
 
Vamos lá a ver. Se bem me recordo, Call Girl foi de facto inicialmente preterido num concurso do I.C.A., em que foi nomeadamente aprovado Belle Toujours. As coisa não foram exactamente claras, mas também não foram redutíveis só a esses dois projectos. Nesse concreto tipo de concursos há vários factores a ponderar, e estou muito longe de estar seguro que a razão tenha sido a do projecto de Vasconcelos “ter menos capacidade de comunicação com o público do que a Belle Toujours de Oliveira”. De resto, se bem me lembro, foi também então aprovado Julgamento de Leonel Vieira, realizador que ainda há pouco tempo era suposto ser especialista em “sucessos de público”, e filme que, apesar da presença de algumas vedetas televisivas e do apoio da TVI, passou recente e fugazmente, quase sem deixar rasto. Portanto, mesmo que nem tudo tenha sido tão claro quanto desejável nesse concurso (o que aliás foi refutado por um membro do júri, o jornalista e ora provedor do “Público” Joaquim Vieira), é ainda assim redutor extraír a conclusão do texto de Rui Moreira.
 
Sucede que se justifica contudo essa conclusão ser devidamente ponderada. Tempos houve em que Oliveira era pura e simplesmente rejeitado. Hoje, quase centenário, com o estatuto de ser “O veterano” do cinema mundial, o diapasão mudou de tom, e é exactamente esse: “Oliveira merece todo o apoio, mas não pode esgotar os subsídios nem se pode transformar no paradigma do cinema nacional.”
 
Há umas semanas atrás, comecei a dedicar-me a tentar perceber o que é esta estranha “joint-venture” do “Público” e de “A Bola” que dá pelo nome de “Sexta”, pois que se já de si é singular e anómala a situação de em Portugal as empresas jornalísticas também se dedicarem agora a gratuitos (este e o “Global”), a associação daquelas duas entidades parece extravagante. Eis que no nº 8 de 14 de Dezembro, que até incluía um artigo sobre Oliveira, se me fez alguma luz (ou deverei dizer “Luz”?) quando, folheando com mais atenção, descobri que havia uma coluna do “jornalista de bola” Luís Francisco – atenção “jornalista de bola”, não de “A Bola”, pois vem do “Público” e é Director-Adjunto do “Sexta”, e “jornalista de bola”, que outra coisa são os bons jornalistas desportivos e de futebol.
 
Pois Luís Francisco mostra-se versado em cinema. De facto, creio recordar-me que fazia figuração em Tráfico de João Botelho, filme em que o figurante principal, autêntica “guest star” identificada com o S.L.B., com o Benfica, era... Bagão Félix.
 
E o que escrevia Luís Francisco? “O Cinema Português para lá de Oliveira”. Mostrando o seu amplo conhecimento da matéria logo declarava a abrir: “Manoel de Oliveira estreou esta semana mais um filme [afirmação incorrecta: tinha sim havido a ante-estreia de Cristovão Colombo – O Enigma, que só agora estreia]. Tal como aconteceu com todos os outros que já realizou , este também não me levará às salas para vê-lo” – nunca viu, mas não gosta e tem opinião impressa em jornal sobre a matéria. Continuemos....
 
Segue o hoje inevitável reconhecimento e elogio, “não posso deixar de ser profundo admirador [note-se bem, “profundo admirador”?] de um homem que se mantém, activo, lúcido e criativo na fronteira dos 100 anos”. E depois vem enfim a jogada: “Mas o cinema português tem de ser muito mais do que Manoel de Oliveira, sob pena de se eternizar no ciclo estafado do filme-de-autor-que-recebe-subsídio-e-faz-um-circuito-de-festivais-onde-recebe-grandes-elogios-e-depois-chega-às-salas-e-só-tem-meia-dúzia-de-espectadores [ufa!]. Eis, em todo o seu triste esplendor, uma das regras básicas do “futebolês”, como se pode ouvir e lêr naqueles programas de canal aberto que são do que mais lamentável há nas rádios e televisões: o “adepto” tem sempre certezas, aliás sabe de tudo, e já topou a jogada! Treinadores de bancada, em suma, com as certezas da clubite mais facciosa.

Cinema, críticos, futebol e "call boys" - II

 

 

 

 
Tinha em consideração Rui Moreira, Presidente da Associação Comercial do Porto e colunista do “Público”, como um homem independente, ainda que por vezes com um gosto de afirmação que manifestamente extravasa o âmbito das suas competências. Já que ele vem à colação por razões de cinema e, associadamente, de futebol, direi mesmo que não esqueço a independência que manifestou perante a decisão de Rui Rio em concessionar a privados um equipamento cultural público como o teatro municipal Rivoli – mesmo que um homem das suas responsabilidades podesse ter manifestado essa posição de forma mais audível -, nem mesmo, no que concerne até aos afectos clubistas, que sendo o F.C. Porto um clube tão presidencializado, é um dos poucos que tem feito ouvir uma voz mais distanciada.
 
Isto dito, o tal artigo “Call Boys” (“Público” de 31-12-07) é mais próprio de um “dummy” com ventríloquo por trás, está factualmente pejado de falsidades históricas, e é um apelo alarve à hostilidade das “massas” contra os “fazedores de opinião” (horrível expressão esta, é certa), categoria em que aliás Rui Moreira se inclui, mas de que se exclui quando o alvo são “os críticos”.
 
Vamos a ver se nos entendemos: eu não tenho a nada a ver com qualquer espécie de “corporação crítica”, antes pelo contrário, e há muito poucos críticos de cinema portugueses em actividade, dois ou três apenas, com quem ainda me sucede discutir cinema. Acrescento ainda que não só hoje em dia muito poucos filmes portugueses me interessam minimamente, como, ponderados uma série de factores que já não são de gosto pessoal, mas de diversos tipos de impacto, nacional e internacional, tenho mesmo a posição extremamente “impopular” de achar que objectivamente se produzem filmes a mais, ou filmes de nulo rasto a mais.
 
Não posso ainda  deixar de dizer que creio ter suficiente experiência, quer de estruturas de atribuições de apoios, quer de júris de festivais, para saber os casos em que me devo bater pelos meus critérios de apreciação e aqueles em que têm de ser ponderados uma série de factores. E isso também me faz acrescentar que, embora as atribuições de subsídios a filmes por parte do Instituto do Cinema e do Audiovisual seja processo que há anos deixei de seguir atentamente, como parte que é do recorrente psicodrama do “cinema português”, ainda conheço as regras legais e tenho também a noção de que a composição dos júris é muitas vezes inepta.
 
Todas as ressalvas feitas, não há que ter dúvidas sobre o intento de um artigo como “Call Boys”: propagando o sistema de discurso do “futebolês”, o portista Rui Moreira limitou-se a ser caixa de ressonância propagandística do seu colega benfiquista do “Trio de Ataque” em defesa de quem saíu, António-Pedro Vasconcelos – não sei se, já agora, o sportinguista Rui Oliveira e Costa se encarregará de um estudo de opinião para validar os “argumentos”.
 
Ora acontece que A.P.V., de que tem Moreira basicamente reproduz o argumentário, é uma espécie de Vasco Pulido Valente do cinema português (relação aliás fundamentada pela proximidade dos dois, V.P.V. tendo mesmo sido o autor do argumento original de um filme do outro, Aqui d’El Rei), isto é, já quase defendeu tudo e o seu contrário, com a particularidade de o fazer muitas vezes com uma virulência malsã e numa lógica do ressentimento. Ainda me lembro de um texto seu que me chocou imenso, de 1980 ou 81, quando A.P.V. era grande defensor de Manoel de Oliveira, mesmo seu produtor; tendo a situação excepcional daquele sido criticada por António de Macedo, cineasta por hoje ele tido como “injusticiado”, logo A.P.V. lhe retorquiu que, como o artigo do outro foi publicado num dia 8, podia ser motivado por ter a renda por pagar – note-se este nível!
 
Só que agora o inimigo de estimação passou a ser Oliveira, que se estaria nas tintas para o público. Acontece isto, que A.P.V. e tantos outros sonegam: se muita coisa se pode e deve discutir sobre o cinema de Oliveira, e se pode mesmo discutir a cláusula não-escrita pela qual todos os seus projectos são inevitavelmente subsidiados, não se pode é negar que àquele é indiferente sim o número de espectadores, mas não, de modo nenhum, que os seus filmes sejam estreados e assim cheguem ao público – e a Oliveira pesou-lhe muito não ter sido estreado, caso único, Le Soulier de Satin, longo de 4h30.
 
António-Pedro Vasconcelos foi, já o recordei, o godardiano “atittré” do cinema português. Foi autor de belos filmes, que lamento estarem esquecidos, como Adeus Até ao Meu Regresso, documentário com os soldados da guerra colonial, de facto a primeira-longa feita depois do 25 de Abril, exibida pela RTP no Natal de 1974; do mesmo modo lamento, e inclusive fi-lo saber junto de quem de direito, que quando do centenário do compositor, em 2006, não tivesse voltado a ser apresentado o seu primeiríssimo filme, 27 minutos com Fernando Lopes-Graça. E foi autor de Perdido por cem, Oxalá ou O Lugar do Morto. Depois, lamentavelmente, com o discurso do ressentimento conjugou-se uma decrepitude acentuada de filme para filme.
 
Mesmo em várias questões em que lhe assistem razões de fundo, ou em que tem experiência suficiente para que posições suas devem ser consideradas no debate, como o manifesto sectarismo na programação de cinema português, melhor dizendo, de realizadores portugueses, da instituição pública designada precisamente Cinemateca Portuguesa, ou da falta de adequação em muitos aspectos de uma política do cinema, Vasconcelos perde as razões que tenha pelos termos do discurso, pelo ressentimento e a “fulanização”.
 
E o ex-crítico radical, “enfant terrible” como o fora o seu muito amado Truffaut, que como poucos vilependiou tantos e tantos cineastas “mainstream” e mesmo respeitáveis autores, encontrou um novo ódio de estimação: “os críticos”, assim genericamente, que desprezariam “os filmes de que o público gosta”, argumento mais que velho, senil mesmo. Mas é próprio do “futebolês” que de A.P.V. é expoente – afinal ele até publicou um livro de título Porque é que as Mulheres não Gostam de Futebol?, que não é por certo de homenagem a O Desporto Favorito dos Homens de Howard Hawks -, e da sua imbecilização facciosa e militante do discurso, ter que encontrar, mais que um adversário, um “inimigo”. Eis pois a grande guerra, ou o grande campeonato, “A.P.V. vs críticos”.
 
E se isto sugere o própriamente sujeito do discurso, no caso tornado ventríloquo, que sai da pena do “dummy” Rui Moreira? “Sugiro ao leitor que dedique umas horas a ver Call Girl, um bom filme de entretenimento, na linha dos que A.P.V. sempre realizou. Recomendo-lhe que, se gosta de cinema português, ignore os críticos que invariavelmente desdenham os raros filmes que vale a pena ver e, já agora, que evite aqueles que recebem muitas estrelas da crítica: mais do que os espectadores que conseguem arrebanhar”.
 
O populismo em todas as suas manifestações, do “poujadismo” a diversos discursos “anti-sistema” de que a mais notória expressão em Portugal foi “O Independente”, é isto mesmo: o apelo às “massas”, aos “descamisados”, aos “anónimos”, contra o suposto “establishment” e os intelectuais também, um “establishment crítico” no caso, o qual todavia até está pouco mais que reduzido à insignificância das “estrelas” e “estrelhinhas”.
 
Se calhar, mais cedo ou mais tarde, tinha mesmo de se produzir uma insalubre mistura directa do “futebolês” e do cinema. O apelo que transpira do panfleto de Rui Moreira, fruto de todo o discurso de “vitimização” e de hostilização que se tornou sistemático em António-Pedro Vasconcelos, nada tem a ver com qualquer análise concreta sobre o estado actual da crítica de cinema em Portugal ou da crítica em geral – é, insisto, um exemplo grave do mais rasca e inflamado populismo, e é nesses termos de gravidade que não pode ser ignorado.
 

Cinema, críticos, futebol e "call boys" - I

 

“Corrupção” 

 

 

Os ajustamentos dos jornais portugueses aos imperativos do “marketing” para fazer face à tendência de queda têm continuadamente suscitado, entre várias consequências, uma acelerada depreciação da crítica. Sem dúvida que a desvalorização da mediação crítica é mais geral, que há mesmo uma transformação social da função crítica, cada vez menos um exercício fundamentado de mediação e cada vez mais um mero processo de intermediação na cadeia de consumos. Daí que, como agravadamente se verifica na crise ainda mais aguda da imprensa em Portugal, o que o “marketing” dos jornais ainda assim não dispensa são as críticas de pop e de cinema, ou mais exactamente as “estrelinhas” atribuídas pelos críticos de pop e de cinema, que é fundamentalmente isso que tem valor de uso no processo de intermediação na cadeia de consumos.

 
Falemos então de cinema ou mais exactamente de “filmes”. Se bem que o sistema industrial do cinema americano, do que designamos por “Hollywood”, esteja em agudo estado interrogativo, como os números do “box-office” dos últimos três anos demonstram sem margem para dúvidas, a sua dominação não cessa de se expandir, com um único outro sistema produtivo, o da designada “Bollywood” indiana, a fazer ainda face.
 
Assim sendo, as entidades reconhecíveis que foram os “cinema nacionais” perderam também o seu relevo quando não foram mesmo condenadas à irrelevância: o “cinema francês” – ainda assim, o único distintitivo que existe a nível europeu – perdeu a maioria da quota do seu mercado nacional, o “cinema italiano”, que tão importante foi, ronda os 20% do mercado e enquanto sistema de produção já não exporta, etc, etc. O caso de Portugal então, é o de uma autêntica colónia americana, aliás com níveis de subserviência de discurso verdadeiramente alucinantes.
 
Não vale a pena estar agora a insistir ainda na absoluta falta de dimensão do mercado interno para produzir, já não digo sequer uma indústria, mas um fluxo continuado de produção independente de apoios públicos. Certo é que o “cinema português”, os discursos do “cinema português”, são um psicodrama recorrente. E esse é agora um primeiro ponto a atender.
 
O segundo é a paradoxal situação da dita “crítica de cinema”, sector que pelas razões apontadas ainda é simbolicamente reconhecido, mas se tornou também, no jogo a que ela própria se prestou, um objecto de fustigação, desde logo por parte de jornalistas, note-se - é ler aliás a bloga fácil deles. E sendo o sector crítico com um rasto manifesto no quadro das estrelinhas acaba também por ser afinal aquele em relação ao qual se polariza um larvar populismo anti-intelectual.
 
Acresce no espaço público um terceiro ponto, em que há já muito tempo venho insistindo: a situação extraordinariamente paroxística de, sendo os filmes de produção portuguesa em geral pouco vistos, ou mesmo muito pouco vistos, todavia haver uma série de cineastas que têm um notório estatuto e presença públicas. As coisas sendo o que são, nesse recorrente psicodrama do cinema português há uma exacerbação de discursos que não é apenas muito pouco saudável (tantos e tão notórios são os “ódios de estimação” entre cineastas, ou mais exactamente entre cineastas acima de uma certa idade, que também é necessário fazer notar haver nos modos de discurso público claras diferenças geracionais), é mesmo exasperante – e falo em concreto de realizadores como António-Pedro Vasconcelos, Fonseca e Costa, Fernando Lopes, João Botelho, João Mário Grilo ou Pedro Costa, independentemente do apreço que por alguns deles e pelos seus filmes eu tenha.
 
Mas há um factor particular ainda a salientar. É que no caso de dois dos citados, Vasconcelos e Botelho, as suas intervenções são características dessa redução que João Lopes designou por “futebolês”, a terrível contaminação do espaço público pelo discurso do facciosismo clubista, sendo mesmo ambos notórios benfiquistas e comentadores de futebol também.
 
Entenda-se: não é o futebol nem sequer em abstracto as paixões que suscita que estão em causa – deixemos isso ao complexo de superioridade e ao desejo “big brotheriano” de vigilância do espaço público do hirsuto profeta Pacheco Pereira. Recordo tão só a propósito o que tive ocasião de dizer a propósito de Zidane: un portrait du XXIéme siècle de Douglas Gordon e Philippe Parreno, que “convém não subestimar a inteligência da minoria que ainda gosta de ver cinema nem a da minoria que gosta da arte do futebol sem que seja parasitada por comentários". O que está em causa sim é a dominação dos espaços informativos, a omnipresença de um discurso excedentário e terrivelmente empobrecedor.
 
Em todo este quadro se calhar, mais cedo ou mais tarde, tinha de se produzir uma insalubre mistura directa do futebol e do cinema. Pois aí está.
 
Primeiro foi Corrupção, e todo o seu mediático e atribulado processo. Independentemente de se aguardar a estreia também da versão do próprio realizador, João Botelho, é da ordem das evidências que todo o processo do livro Eu, Carolina foi monitorizado pela jornalista - e co-argumentista do filme do marido – Leonor Pinhão, que foi por essa via que o livro foi parar à Dom Quixote e em concreto à sua responsável editorial Tereza Coelho, supostamente votada sim a António Lobo Antunes, com a qual Pinhão trabalhou durante anos na revista “Os Meus Livros”.
 
Será uma ambição tão legítima como qualquer outra que Botelho um dia também quisesse fazer o seu filme para o dito “terceiro anel”, para a claque benfiquista, e sendo ainda de respeitar, até prova em contrário, que mais uma vez ele quis fazer “um filme sobre Portugal” na continuidade de outros anteriores, não menos há que assinalar que o austero Botelho, ideólogo do “cinema português” como espaço de “resistência” aos malefícios do terrível “imperalismo americano”, se deixou alucinar, ele também afinal, pela perspectiva de fazer um filme de “grande público” : “se o livro vendeu 150.00 quero que o meu filme tenha o triplo dos espectadores”, afirmou durante a rodagem ao jornal “patrocinador”, o “Correio da Manhã” – note-se bem, o “Correio da Manhã”, o tablóide, “patrocinador” de um filme do puritano Botelho!
 
E eis agora, depois da história de alterne, a Call Girl de António-Pedro Vasconcelos, o ex-godardiano “attitré” do cinema português. E com ele, o panfleto rasca do distinto Presidente da Associação Comercial do Porto e colunista do “Público” Rui Moreira, mais prosaicamente comparsa de Vasconcelos no “Trio de Ataque” da RTP-N, outro desses infectos programas de suposto debate de futebol que demonstram bem como o legado do populismo de Emídio Rangel na SIC – matriz destes programas – e do anti-intelectualismo do “Independente” se espalharam duradouramente na imprensa e no espaço público.

A sonegação do mecenato

Está escrito o seguinte no Programa do Governo, de resto o programa com que o PS se apresentou ao eleitorado:
 
“O compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo, importando retomar a trajectória de aproximação interrompida no passado recente. Ao mesmo tempo, o Governo fixa quatro objectivos complementares: a) desenvolver programas de cooperação entre Estado e autarquias, que estimulem também o crescimento da proporção de fundos públicos regionais e locais investidos na cultura; b) valorizar o investimento culturalmente estruturante, na negociação do próximo Quadro Comunitário de Apoio (2007-2013); c) rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão; d) alargar a outras áreas e, em particular, ao funcionamento dos organismos nacionais de produção artística, o princípio de estabilização de um financiamento plurianual”.
 
Já nem vou falar da famosa meta de 1% do Orçamento de Estado a qual é mais é que óbvio não ser com este governo, e na presente situação,  referência nenhuma, nem a médio nem a longo prazo. Em todo o caso,  “Rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão”, era um objectivo de grande importância para as dinâmicas culturais, sabendo-se que tem havido uma preversidade intrínseca em captar os apoios mecenáticos para os grandes projectos, e designadamente para as próprias instituições públicas, em primeiro lugar colmatando os limites orçamentais do Ministério da Cultura.
 
Ora, na extraordinária página electrónica desse mesmo Ministério da Cultura, nessa em que o último comunicado data de Junho, está há muito em destaque um suposto “Novo Enquadramento do Mecenato Cultural”, que de novo nada tem. Ao lado, muito discretamente, de modo quase oculto, quando na secção correspondente se cliqua em Estatuto, aí sim está a informação real, que é estranho ter passado tão despercerbida:“O Decreto-Lei n.º 74/99, que aprova o Estatuto de Mecenato, foi revogado, tendo os incentivos fiscais à Cultura sido incorporados no Estatuto dos Benefícios Fiscais (Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro)”, isto é, no Orçamento de Estado.
 
O presente governo, em vez de “rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão”, fez a mais completa marcha a trás, como se pode verificar pelo clausado legal de Donativo, nos termos do Capítulo X – “Benifícios Fiscais”, Art.º 56- “Noção de Donativo”, D – “Dedução para efeitos do lucro tributável das empresas “, nº6, do O.E.:
 
“São considerados custos ou perdas de exercícios, até ao limite de 6/1000 do volume de volume de vendas ou dos serviços prestados [até 0,6%, n.b, não vá a dedução para efeitos tributáveis ser mais afectada], os donativos atribuídos às seguintes entidades:
a)      Cooperativas culturais, institutos e associações que prossigam actividades de investigação, excepto as de natureza científica, de cultura e de defesa do património histórico-cultural e do ambiente, e bem assim outras entidades sem fins lucrativos que desenvolvam acções no âmbito do teatro, do bailado, da música, da organização de festivais e outras manifestações artísticas e de produção cinematográfica, áudio-visual e lietrária;
b)      Museus, bibliotecas e arquivos históricos e documentais;..
 
Artº 87 -3 – São igualmente revogados: f) O Estatuto do Mecenato, aprovado pelo Decreto_lei nº74/99, de 18 de Agosto”.
 
 
 
Dir-se-á: o Mecenato é um Benifício Fiscal. Certamente que sim. Mas por alguma razão lhe é reconhecido um estatuto próprio, que estava legalmente consignado. Quando era antes preciso criar um quadro alargado de incentivos ao mecenato, com o fim de possibilitar cada vez mais dinâmicas próprias e menos dependentes de apoios estatais; quando era urgente e expresso no próprio Programa do Governo a necessidade de consideração de apoios também a “projectos culturais de pequena e média dimensão”; quando era sim preciso quebrar o ciclo viciado pelo qual até agora, e basicamente, o mecenato tem sido, no fundamental, um complemento financeiro das actividades estatais e não tanto um estímulo a acção autómonas; quando tudo isso era imperioso, o enquadramento legal foi remetido para o regime anual dos Orçamentos de Estado, colocado a níveis em que só pode em termos reais ser minimamente significativo por parte de muito grande empresas.
 
E é facto da mais patente hipocrisia política que na página electrónica do Ministério da Cultura esteja em destaque um pretenso “Novo Enquadramento do Mecenato Cultural” quando este governo procedeu sim ao fim do Enquadramento do Mecenato Cultural.

Música de Santana



"Nota importante: em consonância com os nossos Estatutos, Declaração de Intenções e tradição teremos , no decurso do jantar, 'apontamentos' musicais"
 
 


Houve um secretário de Estado da Cultura que, inquirido sobre a sua obra musical preferida, respondeu ser ela um Concerto de Violino de Chopin, desconhecido de todos. O secretário de Estado era-o, repita-se, da Cultura. Há um presidente da câmara municipal de Lisboa que um dia, dizem que perguntando-se “espelho meu, espelho meu, que posso mais eu fazer para que falem de mim?”, achou: “já sei, vou fazer uma orquestra sinfónica!”.

Pedro Santana Lopes fica sempre visivelmente incomodado quando vem à colação o tal “concerto de violino”. Sucede que não se tratou de um lapso, mas um daqueles palpites em que Santana é pródigo e que no caso denotava a sua manifestação impreparação no sector que então tutelava como Secretário de Estado.

A Santana Lopes (re)conhece-se o agudo instinto político, o gosto do risco, das altas paradas, certamente também dos “bluffs”. Se fosse frequentador de casinos, e entre a Figueira da Foz e o Parque Mayer tem uma certa tendência para os encontrar ou tentar colocar no caminho, seria um jogador inveterado.

Acontece que a acção política exigirá instinto e mesmo carisma mas também racionalidade, sobretudo quando os objectivos e as até legítimas ambições pessoais visam sempre mais alto. E exige-o mesmo um contexto altamente mediatizado e a um político hiper-mediático, comentador do Telejornal da RTP/1, colunista do “Diário de Notícias” e de “A Bola”, enfim alguém que, como diria o seu aparentado Martins da Cruz, gostava de viver sob as “spotlights”.

Mesmo que, enfim, o próprio já esteja a visar mais alto ‹ e basta olhar o calendário político para verificar que um candidato presidencial não poderá propor-se à reeleição na câmara de Lisboa, haverá um momento em que ele ou responderá pela “obra” ou atinge o princípio de Peter,   haverá um momento em que se colocará a fundo a questão da sua credibilidade. Só que, até lá, Santana Lopes, se vai mantendo alerta as tropas, vai também espalhando a confusão.

Agora deu-lhe para anunciar a fundação de uma orquestra sinfónica de Lisboa. Não uma orquestra qualquer, mas uma tão boa como as concorrentes (presume-se que Berlim e Viena). E olhando nas relações, encarregou do projecto Duarte Lima e António Victorino d¹Almeida.

A orquestra é necessária? Sem a mais pequena dúvida! A Orquestra Sinfónica Portuguesa, sediada em Lisboa, no Teatro Nacional de São Carlos, foi uma solução de convergência ditada pelas circunstâncias, era secretário de Estado da Cultura Pedro Santana Lopes, mas tendo o projecto sido gizado pela subsecretária Maria José Nogueira Pinto, e tendo-se pelo meio interposto uma célebre pala do estádio do Sporting, levando à saída da subsecretária, logo Santana se achou em estado de dar um arzinho da sua graça, torpeando a seriedade do projecto ao afastar o indigitado maestro-titular, Martin André.

Mas hoje, repartida entre as suas funções nas representações operáticas e alguns concertos, é evidente que a OSP não está em condições de ser a orquestra sinfónica com programação regular e agregadora de público que falta em Lisboa. Isso o sugeri há meses quando da crise suscitada em relação aos “benefícios” do director da Orquestra Metropolitana, Miguel Graça Moura: “Querem discutir mesmo? Proponho então um tema: reconsiderar com o Estado central a inexistência real de uma orquestra com temporada de concertos sinfónicos em Lisboa”.

Colocou o presidente da CML a questão à tutela? Não há o mais pequeno indício. Compreendemos todos que seja difícil a qualquer autarca, a qualquer responsável, discutir projectos de fundo com um Ministério da Cultura em que o titular é inexistente. Mas a questão é outra: Santana trabalha a auto-suficiência do seu “curriculum” político. Como poderia ele negociar a constituição de uma orquestra em parceria com o Estado?

Há algum estudo? Nem pensar! De que vale estar a questionar como será feito o recrutamento e garantidas as infra-estruturas se é absolutamente óbvio que não há ideia real dos custos e das fontes de financiamento? Sabe Santana as percentagens da participação do Estado em instituições “congéneres”, por exemplo a Orquestra de Paris? E como vai ele contornar a disciplina orçamental imposta por Ferreira Leite?

Têm Duarte Lima e Victorino d'Almeida “curricula” de gestores culturais? Um é um respeitável melómano, que gosta de piano e toca orgão, coisas que não são suficientes para um projecto sinfónico; o outro, dito “o maestro”, é um dos mais gritantes equívocos culturais deste país, cuja carreira propriamente como maestro não existe (só terá dirigido uns concertos com obras suas), mas ao qual se conhece antes a actividade conjunta com cançonetistas ou a vocação para o piano-bar - mas lá por isso, calhando ele bem no “wonder-bar” do Casino Estoril, Santana, que aí tem boas relações, pode dar uma ajudinha, e poupa-nos as desgraças.

Para fazer uma orquestra sinfónica é preciso muito mais que atirar poeira para os olhos. E muito mais seriedade do que a de quem tem os ouvidos empoeirados pelo concerto de violino de Chopin.

Os violinos de Santana – “Público”, 23-02-03