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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Réplicas, comentários - e questões

 

A propósito do texto anterior, ou, mais exactamente, da publicação de uma réplica, importa-me de novo esclarecer que o caixa de correio existe também para respostas e comentários. Se bem que o Letra de Forma funcione como página pessoal, não menos me é importante estar aberto ao debate e à polémica. Não aceito contudo é a “caixa de comentários”, sendo que como, é facilmente verificável, e é importante sobre isso reflectir também, as ditas caixas são sobretudo povoadas por comentários ou sem qualquer interesse ou dando azo a estados de ressentimento, quando não de insulto, sendo também que quando há comentários que são de facto pertinentes então eles devem estar em situação de leitura imediata – e para “moderar” uma tal caixa não tenho a menor das vocações.
 
Escrevi em tempos um texto, “Foi você que pediu uma democracia SMS?”, sobre a intrínseca perversidade das sugestões mediáticas de pretensa “democracia participativa” e os “inquéritos feitos” por jornais junto dos seus “leitores” – dos leitores que se dispõe a fazer militantemente a sua opção por meio da Internet, como é óbvio. E esse meu texto data de Novembro de 2002, bem antes portanto da celeuma provocada pela votação no concurso “Grandes Portugueses” – sendo curioso, acrescento, que o mesmo método tenha sido “pacificamente” aceite como metodologia de outro análogo concurso, o das “Novas Sete Maravilhas do Mundo”, que até teve – sim, convém relembrá-lo – o patrocínio do Ministério da Cultura da Profª Pires de Lima, e mesmo um representante destacado em jeito de comissário por esse ministério, nada menos do que um dos bonzos do regime, o Prof. Freitas do Amaral, supondo-se que deveria mesmo ter sido motivo de “orgulho nacional” o facto da apoteose ter tido lugar em Lisboa!
 
Há evidente que há mutações das sociedades no sentido da chamada “democracia de opinião”, de resto mesmo com importantes consequências políticas, como foi o caso em França da candidatura de Segoléne Royal, que de facto emergiu da net e dessa espécie de página de “myspace” que se designou por “désiresdeavenir”, com a notória consequência dessa mescla de aspirações se ter tornado em termos de projecto política num efectivo nado-morto.
 
Em termos mais latos, é evidente que essa lógica tendencialmente instantânea da “democracia de opinião” (a tal “democracia sms” e todos os seus correlatos) está a agravar ainda mais a crise patente das democracia representativas, dos laços da representação política e das instâncias de regulação e mediação, mesmo no sentido do que o sociólogo Pierre Rosanvallon designa por Contre-Democracie – e o subtítulo desse livro, “La politique à l’âge de la défiance”, indica uma disseminada atitude não só de “desconfiança” mas de ressentimento e protesto privado de conteúdos concretos, que podendo ainda ter fundas razões, e tem-nas por certo, se traduz, mais do que em qualquer atitude de mudança, numa deslegitimação generalizada de que tão só sobressaem, reforçando o seu poder sensacionalista e a derrota do pensamento e da acção reflectida, as televisões e imprensa ditas “populares” – lógica que é prosseguida na manifestação imediata por meios de sms ou da net.
 
Há algum tempo atrás, um editoralista do “Le Monde” constatava amargamente que enquanto sempre fora regra deontológica do jornal os textos serem assinados, a edição electrónica estava agora inundada por comentários anónimos ou de identificação da autoria não controlada. E basta ver as caixas de comentarias nas edições electrónicas do “Expresso” e do “Público” para se verificar o tipo de teor altamente maioritário dos comentários.
 
Não pode ser ignorado que esta é uma das questões mais fundamentais da nova era dos media, concorde-se ou não com a posição extremamente crítica, claramente refractária mesmo, expressa por Andrew Keen em O Culto do Amadorismo (agora editado em Portugal pela Guerra e Paz), tal como não pode ser ignorado o debate em curso nos Estados Unidos sobre se os blogs, no modo mais imediato de simples expressão de opinião, não são causa determinante na rarefacção ou desaparecimento dos espaços de crítica, de opinião fundada e articulada, na imprensa – questão tanto mais importante quanto de facto coloca em causa os fundamentos da noção de espaço público, um dos sustentáculos axiais das sociedades abertas e democráticas.
 
Já agora, e no que a blogs e caixas de comentários diz respeito, estas são apresentadas (e foi-me reiteradamente exposta tal consideração a propósito do Letra de Forma) como um factor de “animação”, que afinal o é em termos de competitividade e de um uma espécie de correlato de “guerras de audiências”. Claro que não menos tosco é, não tendo comentários, afirmar uma vocação hegemónica publicando contributos, reais ou supostos, como também fotografias indigentes, naquela formulação falaciosa do inevitável Pacheco Pereira,  “O Abrupto feito pelos seus leitores”.
 
Creio efectivamente que estas são questões de ordem comunicacional importante, de mutação do espaço público, mas não queria deixar também de reiterar a minha disponibilidade para a publicação de comentários e réplicas, para o debate e contraposição, e que é também com vista a isso que existe o endereço letradeforma@sapo.pt – e já agora aproveito também para agradecer o conjunto de informações e apreciações que me é enviado, sendo que algumas sugestões ou pedidos terão oportunamente resposta.

Pacheco ou a fúria dogmática

 

 

A propósito de Pacheco Pereira, e para as coisas serem pela minha parte devidamente claras, trago para aqui duas referências feitas em recentes crónicas do “Estado da Arte”:
 
 
“Na opinião publicada em Portugal existe uma forte hostilidade à criação cultural, aos apoios a essa criação e às estruturas vocacionadas para a arte contemporânea nos seus diferentes campos, há uma estigmatização dos pretensos ‘subsídiodependentes’ que toca mesmo as raias do delírio, e de que o principal expoente e manipulador é Pacheco Pereira (só a pura cegueira pode ‘explicar’ que, por exemplo, a propósito da crise na Câmara de Lisboa tenho escrito isto: ‘O único exemplo a seguir é o de Rui Rio. Apareça alguém a dizer que vai seguir o exemplo do Porto, ouça-se o ‘espernear’ dos animadores culturais a dizer que o ‘contabilista’ está a matar a ‘cidade’, e Lisboa pode vir a ser finalmente governável’ – ‘Sábado’, 10-05-07).”
 
A intervenção do Estado na área da cultura é (ainda) objecto de reticências e refutações. Todavia, na complexidade das sociedades contemporâneas, e no relevo nelas acrescido dessa área cultural, essa intervenção é justificada pela defesa da diversidade, pela necessidade de mecanismos de redistribuição territorial e social, pelo apoio à criatividade nas suas mais variadas manifestações e processos e pela promoção da imagem externa de um país.
 
 
A associação de um ministério da Cultura – ou mais genericamente da intervenção do Estado nesse campo - a uma entidade de propaganda é assim uma comparação que não colhe, porque o seu campo de regulação e intervenção se funda nos princípios fundamentais do Estado democrático, na tripla vertente da universalidade (o conjunto das políticas destina-se ao conjunto dos cidadãos), do respeito pela soberania individual e de representação externa. Aliás, não deixa de ser irónico, mas também sintomático, que o principal veiculador desse tese no espaço público em Portugal, Pacheco Pereira, seja ele mesmo um caso ímpar (e mesmo insólito) de interventor obsessivo no sentido de condicionamento da agenda política e mediática – ou, dito de outro modo, um caso ímpar de especialista em propaganda própria.”
 
E não é igualmente de passar despercebido um recente comentário seu quando da substituição de ministro da Cultura e que está em linha aqui:
 
“As mudanças da ‘Cultura’... significam quase sempre mais mudanças na clientela do que mudanças na política. Num sector tribalizado até ao limite, o que muda é a tribo próxima do Ministro, e quem perde é a tribo longínqua. Em função da distância aos subsídios , claro.
O novo ministro chega lá com ideias, gostos, opções diferentes do anterior: gosta mais de teatro de revista, mais de ópera, mais de cinema, mais do grupo A ou do grupo B, mais do fado ou de Emanuel Nunes, vai ao CCB ou à CGD, à Gulbenkian ou a Serralves, dá-se com os bolseiros da escrita ou com os actores da ‘Rivolução’, está mais com os críticos do Actual do Expresso, do ex-DNA do Diário de Notícias ou com os do Ipsilon do Público, e por aí adiante conforme as tribos. Como nunca há dinheiro que chegue para todos os gostos e tribos, há sempre uma insatisfação activa na ‘cultura’. É só uma questão de tempo até haver outro abaixo-assinado na Internet.”
 
Raia o delírio insinuar que a grave crise orçamental da Câmara de Lisboa é minimamente consequência do muito escasso item para a Cultura, que aliás não se expressa tanto em subsídios, ou antes, “apoios à criação” (pois é disso que se trata), mas em funcionamento de instituições. E é típico do pensamento grupuscular – como se, digamos, epistemologicamente, Pacheco Pereira nunca tivesse de facto consumado o corte com esse mundo político-ideológico em que aliás continua embrenhado, ao menos historiograficamente, inventariando e relatando os mil e um grupúsculos marxistas-leninistas-maoístas  – supor que os “mundos da arte” (para utilizar a terminologia de Howard S. Becker) mais não são que um conjunto de tribos em disputa.
 
Em coerência, devia Pacheco Pereira andar pelos campos do Iraque, à procura das tão proclamadas Armas de Destruição Maciça. Em vez disso, a famosa Marmeleira é o local do centro de controle de um “Big Brother”, passando em cuidadosa revista todos os media, e trabalhando nesse sistema mediático a nível exponencial, como colunista do “Público” e da “Sábado” e comentador da “Quadratura do Círculo”, além de muitas outras intervenções.
 
Os extractos literários que Pacheco Pereira coloca em linha são um puro gesto mecânico. Em vão se pode procurar nos seus escritos qualquer rasto de uma experiência estética recente, de uma ida ao cinema, a um concerto, a um espectáculo. A reiteração do cânone, no seu caso, é apenas a reafirmação obstinada do dogma.
 
Mas não que a cultura, ou as instituições culturais lhe possam ser de todo indiferentes, enquanto funcionário político.
 
Foi suficiente e justificadamente salientado o seu gesto de renúncia ao cargo de embaixador de Portugal junto da UNESCO, quando da posse do governo de Santana Lopes. Acontece que esse gesto, pelo inegável eco político que suscitou, também colocou na sombra algo que importava interrogar: a própria nomeação.
 
É de lembrar que Pacheco Pereira tinha sido cabeça de lista do PSD pelo Porto, e que nunca respondeu se ocuparia ou não esse cargo quando cessasse as suas funções de eurodeputado. Com a arrogância típica dos “iluminados” demonstrou ele a mais absoluta falta de respeito pelos eleitores. Mas mais: Pacheco Pereira não só é um adversário da intervenção dos Estados em matérias culturais, como, eminente neoconservador que é, despreza o sistema das instituições internacionais sob a égide da ONU, que qualifica de “olimpianismo”. Isso não obstou, contudo, quando a perspectiva do cargo se lhe colocou, de num primeiro  momento aceitar ser embaixador na UNESCO, a organização das Nações Unidas para a cultura.
 
A sua vontade controleira faz salientá-lo como caso ímpar de vocação totalitária no espaço público português, e isto deve ser claramente afirmado – afinal os resquícios do dogmatismo marxista-leninista ainda estão nele bem presentes. Mas mais: é a sua própria ética ou, com frequência, falta dela, que deve também ser interrogada – e, por agora pelo menos, nem sequer me estou a referir ao uso que faz em obras suas de investigações de outrem sem devidamente citar os autores, gesto tanto mais lamentável até quanto muita da sua produção historiográfica, como a biografia de Álvaro Cunhal, é obra de valor e já mesmo de referência (e sobre isto acrescento apenas que, pela parte que também me diz respeito, tenho as provas materiais suficientes, e posso apresentá-las). Mas talvez que para ele, no seu complexo de “Chefe”, de “Big Brother” mesmo, os outros sejam apenas “arraia-miúda”.
 
Por isso mesmo também quando há um campo que ele não domina, como a arte e a criação contemporâneas nas suas mais diversas facetas, nele impera antes a cegueira da desqualificação, a fúria do dogmatismo. E importa afirmá-lo em letra de forma, sem quaisquer subterfúgios.

 

"Estética" do maoísmo

 

 

 

 

Por uma perturbante coincidência (não sei se fortuita) a programação de amanhã à noite da Cinemateca é ocupado com dois filmes eminentemente totalitários, e como poucos, o nazi O Triunfo da Vontade de Leni Riefensthal e o maoísta O Oriente é Vermelho.
 
A título de curiosidade, se é que de “curiosidade” se pode falar em tão sinistros casos, o acento coloca-se no maoísta. A bandeira vermelha, as estrelas e a efígie de Mao Tse-Tung são o que resta dessa iconografia maoísta, e, para quem não tem memória desses anos, é mesmo difícil de imaginar o culto demencial que era prestado a Oriente é Vermelho e a esse outro bailado “revolucionário”, O Destacamento Feminino Vermelho.
 
Mas a erosão dessas imagens não supõem necessariamente o esbatimento da lógica dogmático dos que foram seus cultores. Um antigo “esquerdista”, mas de outra orientação, o dirigente Verde e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros alemão Joschka Fischer recordava recentemente na Universidade de Columbia em Nova Iorque como tinha reencontrado um aproximável primado da ideologia sobre a realidade nos emissários da administração Bush, “nos Wolfowitz, Perle, em todos esses neoconservadores reencontrei esse tipo de convicção pela qual a realidade não é um argumento – os neoconservadores tinham uma visão quase leninista: queriam expandir a democracia na ponta do fusil exactamente como os bolchevistas queriam fazer a revolução proletária”.
 
 
Como bem sabemos, em Portugal os mais eminentes neoconservadores, Pacheco Pereira, José Manuel Fernandes, João Carlos Espada, são ex-marxistas-leninitas-maoístas.
 
Leia-se no texto abaixo de Jean Birnbaum sobre Alain Badiou como “Os ex-maoístas conservaram muitos traços comuns, em primeiro lugar a certeza que que o combate intelectual intelectual é o único que verdadeiramente conta, e depois a consciência que tal como as outras, esta batalha não se trava de luvas brancas, enfim, uma relação terrorista com a linguagem, determinado pelo ódio do compromisso, votada à intimidação dos outros”. Lesse essa análise e nela ainda são reconhecíveis Fernandes ou Pacheco.
 
 
Recordar O Oriente é Vermelho ou O Destacamento Feminino Vermelho é pois também ter presente, sobretudo no caso de Pacheco Pereira, no seu perene ódio da arte e da criatividade actuais, o que foi a “educação estético-política” dos maoístas reconvertidos em chantagistas neoconservadores.