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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Dois concertos "austríacos" - II

 

 

Um Concerto para Thomas Bernhard

Obras de Mozart, Mendelssohn, Cerha e Pinho Vargas

Luís Lucas, Kurt Azesberger

Orquestra Metropolitana de Lisboa, Michael Zilm

CCB, 1 de de Dezembro de 2007, às 21h

 

 

 

“Há vinte e oito anos exactos havíamos morado em Leopolskron e estudado com o Horowitz, e (no caso do Wertheimer e no meu, não do Glenn Gould naturalmente) com o Horowitz tínhamos aprendido mais durante um verão completo, Verão em que chovera continuamente, do que durante os oito anos anteriores do Mozarteum e da Academia de Viena”.

 

O Náufrago

 

“Tanto quanto me lembro, não houve nada no mundo de que eu gostasse tanto como de música, pensei eu, olhando, através de Reger, para além do museu, para o interior da minha infância”.

Antigos Mestres

 

 

 

Ter como tópico organizador de um concerto um autor literário é facto que só usa suceder no “lied” e na “mélodie”, e mesmo nessa àrea até mais em disco que propriamente em recital. Realizar um concerto em torno de Thomas Bernhard (1931-1989), justifica-se plenamente pela importância da música na sua obra e na sua vida. Ainda assim, estava longe de ser uma proposta “evidente”, de tão “canónicas”, mesmo estereotipadas, que são as linhas de programação de concertos. Há pois, em primeiro lugar, de dar o devido realce à proposta do CCB – encerrando o ciclo dedicado ao escritor austríaco – e da OML, uma Orquestra que, aliás, vem apresentando, com um incompreensível pouco eco crítico, interessantes propostas de programação, já não falando agora de um trabalho de fundo.

 

Com tais premissas, terá também de aceitar-se que os modos de enunciação não tenham eles também sido “canónicos”, ou seja que, por exemplo, a Abertura “A Flauta Mágica” de Mozart tenho sido cortado por momentos de leitura de textos referentes à mesma (diga-se contudo que Luís Lucas, excelente “diseur” que é, esteve pouco à vontade nas funções de narrador).

 

Não menos é certo que Mozart – no caso a referida Abertura e a Sinfonia “Haffner” – não é exactamente o autor com quem Michael Zilm tem mais afinidades, ainda que, em “extra”, um número do “singspiel” Zaide, com o próprio Zilm, Lucas e o tenor Kurt Azesberger vocalizando de diferentes modos, tenha sido hilariante. Já interessante foi conhecer a abertura de outra “singspiel”, Die wandernden Komödiantenten/ Os Comediantes Ambulantes de Mendelssohn, anunciada como sendo em 1ª audição moderna – em Betão a personagem principal é um escritor que ambiciona escrever uma biografia de Mendelssohn.

 

 

Friedrich Cerha, compositor austríaco nasciado em 1926, é sobretudo conhecido por a ele se dever o acabamento do Acto III da Lulu de Alban Berg. Dir-se-ia impossível não recordar o facto ouvindo Bevor es zu spaet ist/ Antes que seja tarde para tenor e orquestra, sobre um texto de Derrubar Àrvores de Bernhard. Mas a obra maior de Cerha, convém também recordá-lo, é Baal, ópera sobre a peça do jovem Brecht, ainda “expressionista”. A clarissima herança berguiana em Bevor es zu spaet ist é a das aproximações “expressionistas” e até anteriores, a herança de Wozzeck, de Der Wein e mesmo dos Albenterg Lieder. Mas não se entenda a obra como epigonal, já que não menos se salienta, na força da sua expressão, um raro caso de correspondência musical ao universo inquieto, revolto e agreste do autor do texto.
 
O propósito de Pinho Vargas era de outro tipo, uma vez que, como desde logo o indica o título, a obra constrói-se sobre um texto declarativo, Um Discurso de Thomas Bernhard, pronunciado quando lhe foi entregue o Prémio Nacional de Literatura em 1967, discurso irado, na má-relação que foi a do escritor com a Àustria. A escolha do texto traduz também, por assim dizer, uma “radicalização” da aproximação por parte do próprio compositor neste seu “encontro”, aliás “reencontro”, com Bernhard.
 
Recordo que Pinho Vargas vinha a incluir na apresentação das suas obras um texto sobre “a melancolia física do artista”, com uma epígrafe colhida em Peter Sloterderjik, “não há apenas aprendizagem positivas...ao lado há também um verdadeiro curso de decepções”, e que em Six Portraits of Pain, a sua melhor obra dos últimos anos, um dos “retratos” era do de Thomas Bernhard - “Esta dor constitui-nos, esta dor é agora o nosso estado de espírito”. No texto deste Discurso, o “curso das decepções” é extremo: “Não há nada a dizer a não ser que somos lamentáveis. (...) Não somos nada e só merecemos o caos”.
 
As circunstâncias da encomenda acabaram por ser, ou se tornar duplas, uma vez que a obra é escrita para a mesma formação que a Sinfonia “Haffner”. Ocorria assim também um duplo risco: de a música se tornar envolvente ou sustentáculo da primazia de um discurso verbal e o da própria formação. Riscos esses que creio não inteiramente superados num aspecto: os “tutti” das cordas, numa escrita menos trabalhada que a dos sopros, não deixam de confirmar alguma propensão enfática que se vem notando em obras recentes de Pinho Vargas. Mas não menos é evidente que no fundamental há uma adequação entre os propósitos e a matéria, questão de “autenticidade”, para evocar o conceito adorniano que no caso creio de toda a pertinência.
 
 
P.S. – Na lista das obras de Thomas Bernhard publicadas em Portugal, incluídas no programa geral do ciclo do CCB, faltam as seguintes: O Fazedor de Teatro, tradução de Idalina Aguiar de Melo, Livraria Estante Editora, 1987; Betão, trad. Maria Olema Malheiro, 1989; Trevas, trad. Ernest Sampaio, Hiena, 1993. As omissões são tanto mais chatas quanto induzem uma certa parcialidade de referências editoriais. E aliás o discurso quando do Prémio Nacional está incluído em Trevas.