Magnus Lindberg
Personalidade central ao “Focus Nórdico” que a Casa da Música irá apresentar ao longo deste ano, o finlandês Magnus Lindberg (n. 1958), será mesmo o “compositor em residência”. Feliz situação, credora de toda de toda o destaque, pois Lindberg é certamente um dos autores mais marcantes da actualidade, um dos que mais importa.
A informação, e sobretudo a circulação das obras demorando, e acrescendo ainda mais o tempo para nos apercebermos da dimensão do impacto, poderemos hoje dizer que, ao correr do tempo, nos podemos ir dando conta da importância crucial de Kraft, obra distinguida na Tribuna Internacional de Jovens Compositores da UNESCO de 1986..
Para um “jovem compositor”, Lindberg (n.1958) já tinha então um curriculum de relevo, tanto mais que já havia sido distinguido na mesma Tribuna, em 1982, com …de Tartuffe, je crois - e restrospectivamente, poderemos hoje considerar que uma outra obra, datada dessa mesmo ano, Action — Situation — Signification, era também suficientemente esclarecedora de uma poética própria.
Da sua narrativa curricular constavam cursos com Franco Donatoni em Siena e com Brian Ferneyhough em Darmstad, além de estudos particulares com Vinko Globokar e Gérard Grisey em Paris, ritos canónicos para um “jovem compositor”, pois. O que nem por sombras se sonhava à época era a importância de uma narrativa particular: o encontro no Conservatório Sibelius de Helsínquia, em 1977, de Magnus Lindberg, Kaija Saariaho, Esa-Pekka Salonen, Jukka-Pekka Saraste (estes dois, hoje bem conhecidos maestros) ou do violoncelista Anssi Kartunen, e a constituição do grupo “Korvart Auki/Ouvidos Abertos”, e do conjunto instrumental Toimi, em reacção ao conservadorismo dominante, que em termos de referências reconhecíveis, podemos associar à “canonização” de Sibelius ou Rautavaara, este aliás professor de composição naquele conservatório.
Mas então, Kraft porquê? Pelas extraordinárias explosões rítmicas e de massas sonoras (a obra destina-se a cinco solistas amplificados e orquestra) que Lindberg sumarizava como “uma combinação do hipercomplexo com o primitivo”, declarando que “só o extremo é interessante”. Era uma música de “energia” claro (“kraft”), de “fricção” também, ou, de como ele escrevia nesses anos, a propósito do material e a sua organização, ocorria um paradoxo que “suscita uma tensão irracional entre a expressão e a estrutura, moldando a música com um carácter nervoso, uma fricção, que não é um obstáculo mas uma fonte da inspiração criadora”.
Kraft era a irrupção de um “brutalismo” complexo, para o qual, se bem que se podessem e possam tecer similitudes com outras “deflagrações” anteriores, exteriores à narrativa unínoca das ortodoxias primeiro seriais e depois “post”-seriais, como Xenakis, Ligeti ou o Penderecki inicial, ou, mais perto no tempo, Rihm, haverá também de atender a uma noção mais lata de envolvimento sonoro, que não deixava de ter analogias com orientações de cenas “rock” alternativas, ou seja, para parafrasear o título de uma posterior obra do finlandês, analogias Related Rocks – e se mesmo que “related”, a música de Magnus Lindberg não é ainda assim da esfera do rock, os seus ouvidos estiveram bem abertos para a energia “punk” dos Clash, na Londres dos anos 70, ou o “rock industrial” e experimental dos aventurosos Einstürzende Neubauten na Berlim dos anos 80, de algum modo dessas vivências sedimentando-se na sua própria música uma noção fundamental, a de pulsação.
“Ouvidos abertos” terá sido uma declaração com uma pragmática própria na situação finlandesa. Mas “ouvidos abertos” é uma proposta mais geral, o entendimento de uma poética mesmo. Daí que Lindberg, por exemplo, tenha sido mesmo um dos que enunciaram uma questão capital, “Porquê evitar?”.
Concretizemos: porquê evitar por princípio, por exemplo, certas situações harmónicas só porque de acordo com os príncipios que se consideram caducos da tonalidade funcional, ocorre o que sucede ser um dó maior? Mas então será a “atonalidade”, mormente como se formulou na série dodecafónica, um outro princípio limitativo? “Ainda me lembro do espírito que reinava no meio musical nos anos 80: era imperativo compôr deste ou daquele modo, com o risco de se ficar encerrado num ‘ghetto’. Ora, a música teve sempre necessidade de novas perspectivas. A tonalidade como a atonalidade eram utilizadas na música funcional. Esse é, para mim, e para a maioria dos meus colegas, um anacronismo com o qual não poderia trabalhar. É, creio, um capítulo encerrado”.
Em lugar de funcionalidades ou princípios apriorísticos, a música de Magnus Linbderg revela-se de extraordinária “organicidade”, nas suas torrentes rítmicas e harmónicas, que lhe suscitam uma pulsão vital e uma energia muito próprias, de enorme impacto sensorial na escuta, bem distinta e reconhecível. A extraordinária Aura – In memoriam Witold Lutoslawski de 1993-94, a meu ver uma das portentosas obras musicais dos últimos anos, é particularmente esclarecedora da poética de Lindberg e a da sua tendência às grandes massas e à grande forma – uma “meta-forma-sonata”, foi dito, um modo de enunciação de uma narratividade não-funcional, pensando a música também nos seus encadeamentos temporais, horizontais, e não apenas na verticalidade, como fundamentalmente decorreu e decorre das ortodoxias seriais e pós-seriais. É, se quisermos, uma concepção dinâmica decorrente dos próprios quadros harmónicos, mas não deixando estes restritamente flutuantes e magmáticos.
Há na música de Magnus Lindberg uma dimensão sensorial imediata, física, longe das concepções teoricistas dessas ortodoxias pós-seriais, que de modo nenhum exclui a elaboração formal, mas também de modo nenhum renega um princípio do prazer.
Hoje às 19h30, a Orquestra Nacional do Porto, dirigida por Martin André, abre o “Focus Nórdico”, com um programa constituído por obras de quatro “clássicos”, Alfvén, Grieg, Nielsen e Sibelius (Finlândia) e, com o próprio compositor como solista, o Concerto para Piano de Lindberg, obra dos inícios dos anos 90, marcado pelo influxo das pesquisas no IRCAM e da escola espectral.
É interessante aliás notar, pelo que que revela de diferenciador em relação aos preceitos da “vanguarda”, serial e pós-serial, que ao longo desta residência se ouvirão o Concerto para Piano, o Concerto para Violoncelo e o muito recente Concerto para Violino (do catálogo do autor constam ainda um Concerto para Clarinete e um Concerto para Orquestra ). Mas o evento maior que há desde já que assinalar será outro programa da ONP (também com o grande violoncelista Truls Mork) com essa obra de génio que é Aura, a 23 de Fevereiro. Ouvidos bem abertos, pois...