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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Do cinema às exposições

 
 
É uma situação peculiar a de estarem simultaneamente patentes em Lisboa duas exposições em instituições diferentes, todavia com a mesma curadora, Christine Van Assche: “Centro Pompidou: Novos Media 1965-2003” no Museu do Chiado (até amanhã) e “Ida e Volta: Ficção e Realidade” no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian.
 
A expressão “novos media” é sintomática, na sua generalidade, do tipo de tecnologias adoptadas no campo das artes visuais, ao início sobretudo suporte vídeo para registar acções performáticos, como as de Vito Acconci (representado nesta exposição de Beaubourg no Chiado), de resto origem da célebre análise de Rosalind Krauss do “video como arte do narcisismo”.
 
Para além de práticas percursoras como as de Acconci ou de Bruce Naumann (ainda hoje tão imitado, e quantas vezes tão mal “digerido”), ou das instalações com uso de televisão de Nam June Paik, constitui-se também uma “video arte”, uma poética específica ao uso do suporte, como nos casos particularmente paradigmáticos de Bill Viola e Gary Hill.
 
Não menos ocorrera entretanto, e já desde os anos 60, toda uma pesquisa, sobretudo no espaço americano, em torno da imagem projectada, deslocando-a dos códigos narrativos vigentes na ordem industrial do cinema, para trabalhar sobretudo sobre as categorias de percepção: foi o caso de alguns trabalhos de Andy Warhol, de todo o extraordinariamente importante percurso de Michael Snow, como do cinema pintado de Stan Brakhage.
 
O que “grosso modo” ocorre desde os anos 90 é contudo já de uma outra ordem: um trabalho especificamente sobre “a imagem” e frequentemente sobre “a memória das imagens”, que não deixando de prosseguir certas coordenadas provindas do concreto campo das artes visuais e mesmo em particular do espaço pictórico (de um Gerhard Richter, nomeadamente), opera sobretudo numa relação de contaminação entre cinema e imagens projectadas em espaços expositivos.
 
Quando Pontus Hulten, o sueco que foi o primeiro director do Centro Pompidou, iniciou a colecção, e note-se que foi em 74, ainda antes da abertura do Centro, em 77, havia apenas a vaga definição de “novos media”. Quando hoje se apresenta uma proposta como “Ida e Volta: Ficção e Realidade”, está-se a trabalhar com categorias homólogas às de ficção e documentário no cinema.
 
Dir-se-ia assim que as exposições se complementam, e que a sua conjução é sinal particularmente sublinhado de como o cinema invade os museus e espaços expositivos, de resto, e provavelmente não por acaso, num momento que é crítico para o cinema, momento de tantas depreciações e mutações, em que o seu espaço constituinte das salas escuras está em declive que tanto mais se irá acentuar com o consumo das imagens em “download”, momento de “ocaso da que foi a grande arte do século XX, de esgotamento da grande arte industrial e de massas com que crescemos e que amámos” (e faço questão de repetir uma afirmação minha feita ao “Ípsilon” de 19-10-07, já que houve quem fizesse questão de a deturpar).
 
Contudo, cada exposição é o que é – e a de Beaubourg no Chiado e do CAM acabam por ser quase opostas na sua concretização.
 
Sem discutir agora outra aspectos respeitantes à vocação estatutária do Museu do Chiado, à apresentação pública do seu acervo patrimonial e à assaz peculiar situação do seu director, Pedro Lapa, exercendo funções em “part-time”, uma vez que é também um dos responsáveis de uma fundação privada, sem discutir esses aspectos, e até reconhecendo em abstracto as capacidades e méritos de programador de Lapa, é no entanto bizarra a insistência em apresentar exposições a que as condições do museu são adversas.
 
Assim, nomeadamente, falta nesta exposição todo um núcleo, o de maior actualidade, na insistência no trabalho sobre o “real”. Assim, no mais importante dos quatro núcleos em que se organiza a percurso, o designado por “Pós-Cinema”, em que estão as três peças capitais da exposição, Scènario du film “Passion” de Jean-Luc Godard, The Third Memory de Pierre Huyghe e Feature Film de Douglas Gordon, apenas de Huyghe é apresentada nas devidas condições, sendo que no caso da de Gordon a importância da obra justificaria, além do mais, que ela fosse apresentada isoladamente.
“La Jetée”
 
 Num ano que foi marcada por duas exposições excepcionais, que continuam patentes, “Um Teatro sem Teatro” no Museu Berardo e a de Robert Rauschenberg em Serralves, a do “Centro Pompidou: Novos Media 1965-2003” não deixou ainda assim, apesar das reservas manifestadas, de ser outra das saliências.
 
Ao contrário dos limite das condições expositivos no Chiado, “Ida e Volta: Ficção e Realidade” é afinal dominada pelo assombroso dispositivo cenográfico concebido por Didier Fiúza Faustino: assombroso no seu quadro geral, assombroso nas câmaras particulares concebidas também de acordo especificamente com as características da obra aí apresentada, assombroso na relação que consegue estabelecer, pela primeira no CAM, entre uma exposição temporária e a colecção permanente.
 
Mas com uma ou outra ressalva, sobretudo Edge of te World de Rodney Graham, “Ida e Volta: Ficção e Realidade” é afinal uma exposição espectacular mas decepcionante. Mais: é mesmo uma exposição que mostra como certas deslocações se podem revelar desastrosas e mesmo atentatórias das obras.
 
De cada vez que vejo La Jetée de Chris Marker penso sempre que é “o mais belo filme do mundo”. E é um dos filmes que mais vezes vi e que mais vezes vejo. Foi e é também tremendamente influente nestas novas modalidades de “cinema expositivo”. A câmara que para ele concebeu Fiúza Faustino é em particular extraordinária na sua articulação com as características espaciais da obra, e mesmo com as características narrativas, no que estas se aproximam da “science-fiction”. Mas apresentar a obra em videoprojecção é um verdadeiro atentado à sua integridade e à densidade do seu preto e branco – são equívocos, que também os há muitos, desta apropriação do cinema pelos espaços expositivos.