Quando em Outubro passado apresentei JLG/JLG : Autoportrait de Décembre no ciclo “Diários e Autoretratos” integrado no DocLisboa, desde logo chamei a atenção para a feliz coincidência propiciada pela apresentação de Scenário du film “Passion” na exposição “Centro Pompidou: Novos Media 1965-2003” no Museu do Chiado. Eis então que as felizes e frutíferas coincidências se sucedem, e de Godard surgiram entretanto editados no mercado português, e entre outros, os dvds de Paixão, Eu vos saúdo Maria e as Histoire(s) du Cinéma, o primeiro pela Universal, os segundos pela Midas.
“Moi, je suis une image”, disse Godard em entrevista aos “Cahiers” (nº316, Outubro de 1980), quando do seu dito “regresso ao cinema” com Sauve qui peut (la vie), depois do período “militante” e do vídeo. O autor que, mais que qualquer outro, sempre pautara a sua obra pelo duplo imperativo da homenagem (a dedicatória à Monogram Pictures de “série b” logo em O Acossado) e da ruptura, e que convocara mesmo um dos mestres maiores, Fritz Lang, para o porventura seu filme máximo dos anos 60, O Desprezo, confrontava-se pois com o sua próprio estatuto icónico.
Assinalada retrospectivamente a devida importância dessa declaração e dessa entrevista (há um texto magnífico de Raymond Bellour incluído em L’Entre-Images, ed. La Différence, 1990), convirá então sobretudo assinalar dois eixos, ou talvez antes três.
O primeiro eixo é uma tendência à auto-exposição e a auto-análise filmíca, apenas com paralelo noutro autor a que curiosamente Godard nunca foi em especial afecto, Orson Welles, o Welles de Filming Othello e de F for Fake, Welles que todavia representa na história do cinema, e na história da recepção pública da arte cinematográfica, uma das figuras por excelência do “demiurgo”, a outra sendo Hitchcock.
As figuras da auto-exposição na obra de Godard desde então são de diverso tipo, incluíndo a derrisão auto-paródica, tão tocante no tão pouco-amado Soigne ta droite, catastrófica no malfadado King Lear, como a declarada auto-exposição nos casos de Scenário du film “Passion” e JLG/JLG : Autoportrait de Décembre (“autoportrait, pas une autobiographie”, esclarece ele, de algum modo num impulso paralelo ao de Roland Barthes por Roland Barthes). Mais genericamente, a enunciação do “Eu” inscreve-se numa explicitação do estatuto do discurso culminando nas Histoire(s) du Cinéma.
Dir-se-á também, segundo eixo, que de “Moi, je suis une image” decorre uma muito particular apropriação do mote de Rimbaud “Je est un Autre”: Godard “é” uma pessoa e um significante, Godard “é” JLG/JLG, “JLG” e “JLG”, Jean-Luc Godard e as “imagens de JLG”, a pessoa de Jean-Luc Godard no seu jogo com o cinema e as imagens “de Godard”.
Insisto: assinalada retrospectivamente a devida importância dessa declaração e dessa entrevista quando de Sauve qui peut (la vie), ganha outra nitidez o passo seguinte, ou melhor, os passos imediatamente seguintes, os de Passion e Scenário du film “Passion”, isto é, de um filme em torno da rodagem de um filme (como O Desprezo) e do singularissimo e extraordinário caso de um ensaio que, ao contrário do que o título Scenário du film “Passion” faz supôr, não foi a apresentação de um projecto mas uma análise posterior – é um filme “aprés” e “d’aprés”.
Mas com Passion e o seu trabalho de estúdio em torno dos “tableaux vivants” a partir de Delacroix, El Greco, Rembrandt, Goya ou Ingres, Godard confrontou-se directamente não apenas com a matéria da “criação artística” mas também com a da iconologia, do “museu imaginário” e da memória da arte. Daí que eu tenha feito a ressalva de que a partir da declaração “Moi, je suis une image” há sobretudo dois eixos que convirá assinalar, ou talvez antes três. O terceiro será então o da iconologia e, a ele associado, o da criação, ou antes, da criação e da Criação.
Em Scenário du film “Passion” Godard confronta-se directamente ainda com um outro quadro, com a imagem de um outro quadro, o “Baco e Ariana” de Tintoretto, como se confronta com a imagem de Hanna Schygulla no seu próprio filme Passion. Repare-se bem como se acerca delas, todavia na impossibilidade da relação fisíca com o “interior” dessas imagens. “Flash-forward” então para Eu vos saúdo Maria e Joseph – a mão de Joseph - que se acerca do ventre de Marie, todavia na impossibilidade fisíca e racional de se abeirar do seu “interior”, no mistério de uma concepção, qual interrogação agnóstica sobre a Criação e a Imaculada Conceição, esta uma iconologia retomada em Passion segundo El Greco.
Com Passion se iniciou portanto uma aventura iconológica que se aproximou explicitamente da iconologia católica em Eu vos saúdo Maria (ou a descoberta por um homem de cultura protestante, um criador de imagens, dessa iconologia católica), percurso conducente às Histoire(s) du Cinéma ou mesmo às “histoire(s) de l’art”, atendendo nomeadamente ao transcendente (e entenda-se este termo em todo o seu sentido) The Old Place feito para o MoMA (dvd ECM, distribuído pela Dargil), o que fez Jacques Rancière dizer haver mesmo em Godard uma “religion de l’art”.
Scenário du film “Passion”, esse intento de “voir le passage de l’invisible au visible”, foi afinal também o “número zero” das futuras Histoire(s). Paradoxal e extraordinário projecto: retornar à obra própria já criada, para colocar uma hipótese alterando os termos da lógica factual: .”Si l’invisible était visible qu’est-ce qu’on pourrait voir? Voir un scènario”, num jogo especulativo e auto-especulativo - “começo a pensar que para descrever a realidade é preciso descrever a metáfora”. É um retorno à obra e à criação por parte do próprio demiurgo, do paradoxal demiurgo, não para dizer como fez, mas para estabelecer uma relação, um jogo, “un jeu”, com essa obra feita: “Voir. Et tu te retrouves, et je retrouve, retrouve, recherche.. .je me retrouve devant l’invisible”.
“Visible, invisible”, “je, tu” – “Je est un Autre” nesse jogo entre o visível e o invisível, o que é matéria icónica e o que é da ordem do Mistério, “Je est un Autre”, “L' Autre du Je(u)”.
Extraordinária obra este Scenário du film “Passion”, ponto nodal entre Passion, Je vous Salue Marie, JLG/JLG : Autoportrait de Décembre e as Histoire(s) du Cinéma.