Os ajustamentos dos jornais portugueses aos imperativos do “marketing” para fazer face à tendência de queda têm continuadamente suscitado, entre várias consequências, uma acelerada depreciação da crítica. Sem dúvida que a desvalorização da mediação crítica é mais geral, que há mesmo uma transformação social da função crítica, cada vez menos um exercício fundamentado de mediação e cada vez mais um mero processo de intermediação na cadeia de consumos. Daí que, como agravadamente se verifica na crise ainda mais aguda da imprensa em Portugal, o que o “marketing” dos jornais ainda assim não dispensa são as críticas de pop e de cinema, ou mais exactamente as “estrelinhas” atribuídas pelos críticos de pop e de cinema, que é fundamentalmente isso que tem valor de uso no processo de intermediação na cadeia de consumos.
Falemos então de cinema ou mais exactamente de “filmes”. Se bem que o sistema industrial do cinema americano, do que designamos por “Hollywood”, esteja em agudo estado interrogativo, como os números do “box-office” dos últimos três anos demonstram sem margem para dúvidas, a sua dominação não cessa de se expandir, com um único outro sistema produtivo, o da designada “Bollywood” indiana, a fazer ainda face.
Assim sendo, as entidades reconhecíveis que foram os “cinema nacionais” perderam também o seu relevo quando não foram mesmo condenadas à irrelevância: o “cinema francês” – ainda assim, o único distintitivo que existe a nível europeu – perdeu a maioria da quota do seu mercado nacional, o “cinema italiano”, que tão importante foi, ronda os 20% do mercado e enquanto sistema de produção já não exporta, etc, etc. O caso de Portugal então, é o de uma autêntica colónia americana, aliás com níveis de subserviência de discurso verdadeiramente alucinantes.
Não vale a pena estar agora a insistir ainda na absoluta falta de dimensão do mercado interno para produzir, já não digo sequer uma indústria, mas um fluxo continuado de produção independente de apoios públicos. Certo é que o “cinema português”, os discursos do “cinema português”, são um psicodrama recorrente. E esse é agora um primeiro ponto a atender.
O segundo é a paradoxal situação da dita “crítica de cinema”, sector que pelas razões apontadas ainda é simbolicamente reconhecido, mas se tornou também, no jogo a que ela própria se prestou, um objecto de fustigação, desde logo por parte de jornalistas, note-se - é ler aliás a bloga fácil deles. E sendo o sector crítico com um rasto manifesto no quadro das estrelinhas acaba também por ser afinal aquele em relação ao qual se polariza um larvar populismo anti-intelectual.
Acresce no espaço público um terceiro ponto, em que há já muito tempo venho insistindo: a situação extraordinariamente paroxística de, sendo os filmes de produção portuguesa em geral pouco vistos, ou mesmo muito pouco vistos, todavia haver uma série de cineastas que têm um notório estatuto e presença públicas. As coisas sendo o que são, nesse recorrente psicodrama do cinema português há uma exacerbação de discursos que não é apenas muito pouco saudável (tantos e tão notórios são os “ódios de estimação” entre cineastas, ou mais exactamente entre cineastas acima de uma certa idade, que também é necessário fazer notar haver nos modos de discurso público claras diferenças geracionais), é mesmo exasperante – e falo em concreto de realizadores como António-Pedro Vasconcelos, Fonseca e Costa, Fernando Lopes, João Botelho, João Mário Grilo ou Pedro Costa, independentemente do apreço que por alguns deles e pelos seus filmes eu tenha.
Mas há um factor particular ainda a salientar. É que no caso de dois dos citados, Vasconcelos e Botelho, as suas intervenções são características dessa redução que João Lopes designou por “futebolês”, a terrível contaminação do espaço público pelo discurso do facciosismo clubista, sendo mesmo ambos notórios benfiquistas e comentadores de futebol também.
Entenda-se: não é o futebol nem sequer em abstracto as paixões que suscita que estão em causa – deixemos isso ao complexo de superioridade e ao desejo “big brotheriano” de vigilância do espaço público do hirsuto profeta Pacheco Pereira. Recordo tão só a propósito o que tive ocasião de dizer a propósito de Zidane: un portrait du XXIéme siècle de Douglas Gordon e Philippe Parreno, que “convém não subestimar a inteligência da minoria que ainda gosta de ver cinema nem a da minoria que gosta da arte do futebol sem que seja parasitada por comentários". O que está em causa sim é a dominação dos espaços informativos, a omnipresença de um discurso excedentário e terrivelmente empobrecedor.
Em todo este quadro se calhar, mais cedo ou mais tarde, tinha de se produzir uma insalubre mistura directa do futebol e do cinema. Pois aí está.
Primeiro foi Corrupção, e todo o seu mediático e atribulado processo. Independentemente de se aguardar a estreia também da versão do próprio realizador, João Botelho, é da ordem das evidências que todo o processo do livro Eu, Carolina foi monitorizado pela jornalista - e co-argumentista do filme do marido – Leonor Pinhão, que foi por essa via que o livro foi parar à Dom Quixote e em concreto à sua responsável editorial Tereza Coelho, supostamente votada sim a António Lobo Antunes, com a qual Pinhão trabalhou durante anos na revista “Os Meus Livros”.
Será uma ambição tão legítima como qualquer outra que Botelho um dia também quisesse fazer o seu filme para o dito “terceiro anel”, para a claque benfiquista, e sendo ainda de respeitar, até prova em contrário, que mais uma vez ele quis fazer “um filme sobre Portugal” na continuidade de outros anteriores, não menos há que assinalar que o austero Botelho, ideólogo do “cinema português” como espaço de “resistência” aos malefícios do terrível “imperalismo americano”, se deixou alucinar, ele também afinal, pela perspectiva de fazer um filme de “grande público” : “se o livro vendeu 150.00 quero que o meu filme tenha o triplo dos espectadores”, afirmou durante a rodagem ao jornal “patrocinador”, o “Correio da Manhã” – note-se bem, o “Correio da Manhã”, o tablóide, “patrocinador” de um filme do puritano Botelho!
E eis agora, depois da história de alterne, a Call Girl de António-Pedro Vasconcelos, o ex-godardiano “attitré” do cinema português. E com ele, o panfleto rasca do distinto Presidente da Associação Comercial do Porto e colunista do “Público” Rui Moreira, mais prosaicamente comparsa de Vasconcelos no “Trio de Ataque” da RTP-N, outro desses infectos programas de suposto debate de futebol que demonstram bem como o legado do populismo de Emídio Rangel na SIC – matriz destes programas – e do anti-intelectualismo do “Independente” se espalharam duradouramente na imprensa e no espaço público.