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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Cinema, críticos, futebol e "call boys" - II

 

 

 

 
Tinha em consideração Rui Moreira, Presidente da Associação Comercial do Porto e colunista do “Público”, como um homem independente, ainda que por vezes com um gosto de afirmação que manifestamente extravasa o âmbito das suas competências. Já que ele vem à colação por razões de cinema e, associadamente, de futebol, direi mesmo que não esqueço a independência que manifestou perante a decisão de Rui Rio em concessionar a privados um equipamento cultural público como o teatro municipal Rivoli – mesmo que um homem das suas responsabilidades podesse ter manifestado essa posição de forma mais audível -, nem mesmo, no que concerne até aos afectos clubistas, que sendo o F.C. Porto um clube tão presidencializado, é um dos poucos que tem feito ouvir uma voz mais distanciada.
 
Isto dito, o tal artigo “Call Boys” (“Público” de 31-12-07) é mais próprio de um “dummy” com ventríloquo por trás, está factualmente pejado de falsidades históricas, e é um apelo alarve à hostilidade das “massas” contra os “fazedores de opinião” (horrível expressão esta, é certa), categoria em que aliás Rui Moreira se inclui, mas de que se exclui quando o alvo são “os críticos”.
 
Vamos a ver se nos entendemos: eu não tenho a nada a ver com qualquer espécie de “corporação crítica”, antes pelo contrário, e há muito poucos críticos de cinema portugueses em actividade, dois ou três apenas, com quem ainda me sucede discutir cinema. Acrescento ainda que não só hoje em dia muito poucos filmes portugueses me interessam minimamente, como, ponderados uma série de factores que já não são de gosto pessoal, mas de diversos tipos de impacto, nacional e internacional, tenho mesmo a posição extremamente “impopular” de achar que objectivamente se produzem filmes a mais, ou filmes de nulo rasto a mais.
 
Não posso ainda  deixar de dizer que creio ter suficiente experiência, quer de estruturas de atribuições de apoios, quer de júris de festivais, para saber os casos em que me devo bater pelos meus critérios de apreciação e aqueles em que têm de ser ponderados uma série de factores. E isso também me faz acrescentar que, embora as atribuições de subsídios a filmes por parte do Instituto do Cinema e do Audiovisual seja processo que há anos deixei de seguir atentamente, como parte que é do recorrente psicodrama do “cinema português”, ainda conheço as regras legais e tenho também a noção de que a composição dos júris é muitas vezes inepta.
 
Todas as ressalvas feitas, não há que ter dúvidas sobre o intento de um artigo como “Call Boys”: propagando o sistema de discurso do “futebolês”, o portista Rui Moreira limitou-se a ser caixa de ressonância propagandística do seu colega benfiquista do “Trio de Ataque” em defesa de quem saíu, António-Pedro Vasconcelos – não sei se, já agora, o sportinguista Rui Oliveira e Costa se encarregará de um estudo de opinião para validar os “argumentos”.
 
Ora acontece que A.P.V., de que tem Moreira basicamente reproduz o argumentário, é uma espécie de Vasco Pulido Valente do cinema português (relação aliás fundamentada pela proximidade dos dois, V.P.V. tendo mesmo sido o autor do argumento original de um filme do outro, Aqui d’El Rei), isto é, já quase defendeu tudo e o seu contrário, com a particularidade de o fazer muitas vezes com uma virulência malsã e numa lógica do ressentimento. Ainda me lembro de um texto seu que me chocou imenso, de 1980 ou 81, quando A.P.V. era grande defensor de Manoel de Oliveira, mesmo seu produtor; tendo a situação excepcional daquele sido criticada por António de Macedo, cineasta por hoje ele tido como “injusticiado”, logo A.P.V. lhe retorquiu que, como o artigo do outro foi publicado num dia 8, podia ser motivado por ter a renda por pagar – note-se este nível!
 
Só que agora o inimigo de estimação passou a ser Oliveira, que se estaria nas tintas para o público. Acontece isto, que A.P.V. e tantos outros sonegam: se muita coisa se pode e deve discutir sobre o cinema de Oliveira, e se pode mesmo discutir a cláusula não-escrita pela qual todos os seus projectos são inevitavelmente subsidiados, não se pode é negar que àquele é indiferente sim o número de espectadores, mas não, de modo nenhum, que os seus filmes sejam estreados e assim cheguem ao público – e a Oliveira pesou-lhe muito não ter sido estreado, caso único, Le Soulier de Satin, longo de 4h30.
 
António-Pedro Vasconcelos foi, já o recordei, o godardiano “atittré” do cinema português. Foi autor de belos filmes, que lamento estarem esquecidos, como Adeus Até ao Meu Regresso, documentário com os soldados da guerra colonial, de facto a primeira-longa feita depois do 25 de Abril, exibida pela RTP no Natal de 1974; do mesmo modo lamento, e inclusive fi-lo saber junto de quem de direito, que quando do centenário do compositor, em 2006, não tivesse voltado a ser apresentado o seu primeiríssimo filme, 27 minutos com Fernando Lopes-Graça. E foi autor de Perdido por cem, Oxalá ou O Lugar do Morto. Depois, lamentavelmente, com o discurso do ressentimento conjugou-se uma decrepitude acentuada de filme para filme.
 
Mesmo em várias questões em que lhe assistem razões de fundo, ou em que tem experiência suficiente para que posições suas devem ser consideradas no debate, como o manifesto sectarismo na programação de cinema português, melhor dizendo, de realizadores portugueses, da instituição pública designada precisamente Cinemateca Portuguesa, ou da falta de adequação em muitos aspectos de uma política do cinema, Vasconcelos perde as razões que tenha pelos termos do discurso, pelo ressentimento e a “fulanização”.
 
E o ex-crítico radical, “enfant terrible” como o fora o seu muito amado Truffaut, que como poucos vilependiou tantos e tantos cineastas “mainstream” e mesmo respeitáveis autores, encontrou um novo ódio de estimação: “os críticos”, assim genericamente, que desprezariam “os filmes de que o público gosta”, argumento mais que velho, senil mesmo. Mas é próprio do “futebolês” que de A.P.V. é expoente – afinal ele até publicou um livro de título Porque é que as Mulheres não Gostam de Futebol?, que não é por certo de homenagem a O Desporto Favorito dos Homens de Howard Hawks -, e da sua imbecilização facciosa e militante do discurso, ter que encontrar, mais que um adversário, um “inimigo”. Eis pois a grande guerra, ou o grande campeonato, “A.P.V. vs críticos”.
 
E se isto sugere o própriamente sujeito do discurso, no caso tornado ventríloquo, que sai da pena do “dummy” Rui Moreira? “Sugiro ao leitor que dedique umas horas a ver Call Girl, um bom filme de entretenimento, na linha dos que A.P.V. sempre realizou. Recomendo-lhe que, se gosta de cinema português, ignore os críticos que invariavelmente desdenham os raros filmes que vale a pena ver e, já agora, que evite aqueles que recebem muitas estrelas da crítica: mais do que os espectadores que conseguem arrebanhar”.
 
O populismo em todas as suas manifestações, do “poujadismo” a diversos discursos “anti-sistema” de que a mais notória expressão em Portugal foi “O Independente”, é isto mesmo: o apelo às “massas”, aos “descamisados”, aos “anónimos”, contra o suposto “establishment” e os intelectuais também, um “establishment crítico” no caso, o qual todavia até está pouco mais que reduzido à insignificância das “estrelas” e “estrelhinhas”.
 
Se calhar, mais cedo ou mais tarde, tinha mesmo de se produzir uma insalubre mistura directa do “futebolês” e do cinema. O apelo que transpira do panfleto de Rui Moreira, fruto de todo o discurso de “vitimização” e de hostilização que se tornou sistemático em António-Pedro Vasconcelos, nada tem a ver com qualquer análise concreta sobre o estado actual da crítica de cinema em Portugal ou da crítica em geral – é, insisto, um exemplo grave do mais rasca e inflamado populismo, e é nesses termos de gravidade que não pode ser ignorado.