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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Cinema, críticos, futebol e "call boys" - III

 

 

 

 

 
Vai sendo cada vez mais frustante de verificar o afunilamento da opinião impressa, a falta de renovação, o auto-centramento e defesa de interesses pessoais mesmo de vários colunistas, e sobretudo a absoluta leviandade de muitos dos argumentos expandidos. Também a este respeito, “Call boys” é um texto tristemente sintomático.
 
O apoio do Estado às actividades artísticas e culturais é recorrentemente apresentado como um “monstro tenebroso”. Que possam existir riscos é inegável, e volta de quando a quando a ser notório, como agora com o dirigismo em vários aspectos da actual equipa do Ministério da Cultura  – e, ao longo dos anos, não tenho cessado de me manifestar quando creio ocorrerem tentativas dirigistas, ou um sistema de promiscuidades que fecha o leque das opções. Mas os muitos “liberais” adeptos da retirada do Estado para funções apenas de preservação patrimonial, “esquecem-se” de uma condição básica do liberalismo: a criação de condições tão alargada quanto possíveis à manifestação pública não só das mais diversas opiniões, como também das mais diversas expressões, incluíndo as de ordem artística.
 
Que muita coisa seja inepta e mal-fundamentada nas atribuições de apoio por parte do Instituto do Cinema e do Audiovisual e de outros congéneres é inegável. Que daí se deduza a estigmatizaçao de um suposto “dirigismo” consubstancial a essas estruturas, é um salto arbitrário e afinal de natureza ideológica.
 
Em defesa do colega do “Trio de Ataque” e da sua Call Girl diz Rui Moreira “A.P.V. tem o raro mérito de produzir filmes de que o público gosta e que são sucessos de bilheteira. Paradoxalmente, paga caro essa virtude e é vítima de um sistema perverso de dirigismo, que teve início na Primavera marcelista. Nessa altura, como o regime queria evitar a censura directa, escolhia quem podia filmar através do controlo político dos subsídios, que eram atribuídos pelo Instituto Português do Cinema em função das conveniências e financiados através de uma percentagem das bilheteiras”. As asneiras são tantas que justificam a análise do detalhe.
 
1) - A que se propósito se pode escrever que “o regime queria evitar a censura directa”? Tinha acaso deixado de haver censura? Por exemplo, não estava proíbido O Mal Amado de Fernando Matos Silva?
 
2) – Quanto a essa de que “o regime (...) escolhia quem podia filmar através do controlo político dos subsídios, que eram atribuídos pelo Instituto Português do Cinema em função das conveniências”, diga-se apenas que, a) a Lei 7/71 foi consequência de um esforço persistente da geração do “cinema novo”, António-Pedro Vasconcelos incluído, e que na Assembleia Nacional do regime, forçado a reconhecer a necessidade de um novo quadro legal, mormente depois do decisivo apoio da Gulbenkian à cooperativa Centro Português de Cinema, quem sobretudo se bateu foram deputados da “ala liberal”; b) houve um único plano de produção antes do 25 de Abril, e nenhum dos autores com projectos aprovados, Manoel de Oliveira, António de Macedo, Manuel Guimarães, Cunha Telles, Artur Ramos, Sá Caetano, Fonseca e Costa e Paulo Rocha, era afecto ao regime, e vários eram mesmo oposicionistas declarados. Como então falar expressamente de “controlo político dos subsídios”? Santa ignorância, mas não ingénua.
 
Este exercício de falsificação é o pórtico necessário para o “dummy” abrir plenamente o espaço ao discurso e aos ressentimentos do ventríloquo, reconhecíveis a léguas: “Hoje (...), em vez de critérios políticos, o dirigismo exerce-se através de critérios pretensamente estéticos, fomentando o "cinema de autor" de que Oliveira é o paradigma, e impedindo a produção de cinema main stream. É por isso que A.P.V. só conseguiu, até hoje, produzir sete longas metragens e teve de adiar o seu Call Girl, já que no ano passado o subsídio lhe foi negado a pretexto de, imagine-se, ter menos capacidade de comunicação com o público do que a Belle Toujours de Oliveira. Ora, Oliveira merece todo o apoio, mas não pode esgotar os subsídios nem se pode transformar no paradigma do cinema nacional.”
 
Vamos lá a ver. Se bem me recordo, Call Girl foi de facto inicialmente preterido num concurso do I.C.A., em que foi nomeadamente aprovado Belle Toujours. As coisa não foram exactamente claras, mas também não foram redutíveis só a esses dois projectos. Nesse concreto tipo de concursos há vários factores a ponderar, e estou muito longe de estar seguro que a razão tenha sido a do projecto de Vasconcelos “ter menos capacidade de comunicação com o público do que a Belle Toujours de Oliveira”. De resto, se bem me lembro, foi também então aprovado Julgamento de Leonel Vieira, realizador que ainda há pouco tempo era suposto ser especialista em “sucessos de público”, e filme que, apesar da presença de algumas vedetas televisivas e do apoio da TVI, passou recente e fugazmente, quase sem deixar rasto. Portanto, mesmo que nem tudo tenha sido tão claro quanto desejável nesse concurso (o que aliás foi refutado por um membro do júri, o jornalista e ora provedor do “Público” Joaquim Vieira), é ainda assim redutor extraír a conclusão do texto de Rui Moreira.
 
Sucede que se justifica contudo essa conclusão ser devidamente ponderada. Tempos houve em que Oliveira era pura e simplesmente rejeitado. Hoje, quase centenário, com o estatuto de ser “O veterano” do cinema mundial, o diapasão mudou de tom, e é exactamente esse: “Oliveira merece todo o apoio, mas não pode esgotar os subsídios nem se pode transformar no paradigma do cinema nacional.”
 
Há umas semanas atrás, comecei a dedicar-me a tentar perceber o que é esta estranha “joint-venture” do “Público” e de “A Bola” que dá pelo nome de “Sexta”, pois que se já de si é singular e anómala a situação de em Portugal as empresas jornalísticas também se dedicarem agora a gratuitos (este e o “Global”), a associação daquelas duas entidades parece extravagante. Eis que no nº 8 de 14 de Dezembro, que até incluía um artigo sobre Oliveira, se me fez alguma luz (ou deverei dizer “Luz”?) quando, folheando com mais atenção, descobri que havia uma coluna do “jornalista de bola” Luís Francisco – atenção “jornalista de bola”, não de “A Bola”, pois vem do “Público” e é Director-Adjunto do “Sexta”, e “jornalista de bola”, que outra coisa são os bons jornalistas desportivos e de futebol.
 
Pois Luís Francisco mostra-se versado em cinema. De facto, creio recordar-me que fazia figuração em Tráfico de João Botelho, filme em que o figurante principal, autêntica “guest star” identificada com o S.L.B., com o Benfica, era... Bagão Félix.
 
E o que escrevia Luís Francisco? “O Cinema Português para lá de Oliveira”. Mostrando o seu amplo conhecimento da matéria logo declarava a abrir: “Manoel de Oliveira estreou esta semana mais um filme [afirmação incorrecta: tinha sim havido a ante-estreia de Cristovão Colombo – O Enigma, que só agora estreia]. Tal como aconteceu com todos os outros que já realizou , este também não me levará às salas para vê-lo” – nunca viu, mas não gosta e tem opinião impressa em jornal sobre a matéria. Continuemos....
 
Segue o hoje inevitável reconhecimento e elogio, “não posso deixar de ser profundo admirador [note-se bem, “profundo admirador”?] de um homem que se mantém, activo, lúcido e criativo na fronteira dos 100 anos”. E depois vem enfim a jogada: “Mas o cinema português tem de ser muito mais do que Manoel de Oliveira, sob pena de se eternizar no ciclo estafado do filme-de-autor-que-recebe-subsídio-e-faz-um-circuito-de-festivais-onde-recebe-grandes-elogios-e-depois-chega-às-salas-e-só-tem-meia-dúzia-de-espectadores [ufa!]. Eis, em todo o seu triste esplendor, uma das regras básicas do “futebolês”, como se pode ouvir e lêr naqueles programas de canal aberto que são do que mais lamentável há nas rádios e televisões: o “adepto” tem sempre certezas, aliás sabe de tudo, e já topou a jogada! Treinadores de bancada, em suma, com as certezas da clubite mais facciosa.