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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

A actualidade da Ópera - I

 

 

 

 

Brecht achava que a ópera era “culinária”. Adorno escreveu que “sobre nenhuma outra arte são mais pertinentes  as considerações de Benjamin sobre o declínio da aura [da obra de arte], a vanguarda promulgou durante décadas a morte da ópera e o então seu profeta, Pierre Boulez, proclamou mesmo, numa célebre entrevista ao “Spiegel” em 1967, que era preciso “incendiar os teatros de ópera” - propósitos que até foram retidos por zelosos vigilantes, e fizerem mesmo com que ele fosse brevemente detido pela polícia suíça a seguir ao 11 de Setembro de 2001, pois que ficara referenciado como suspeito de “terrorismo”! Mas, entretanto...
 
Lembro-me de, num colóquio sobre ópera contemporânea - creio ter sido na Ópera da Bastilha, quando aí foram apresentados Os Soldados de Bernd Alois Zimmermann, em inícios de 1994 -, alguém dizer que o simples facto de se saber do interesse do mesmo Pierre Boulez em, afinal, eventualmente compôr uma ópera, era sintomático. Se esse intento ainda se concretizará ou não, ver-se-á, pois Boulez permanece extremamente crítico da instituição que são os teatros de ópera:
 
“Penso que a renovação da ópera é um fenómeno muito artificial. È uma moda que se aplica a tudo (...). Para mim, trata-se em primeiro lugar da influência de encenadores no domínio da ópera. (...) Isto dito, não estou seguro que esta nova grande paixão pela ópera tenha reconsiderado todos os problemas do género, e nomeadamente a relação palco-fosso-público. Com efeito, assisti a algumas encenações de teatro, por exemplo de Peter Stein ou de Patrice Chéreau, para citar dois nomes muito conhecidos, e constatei que não utilizam o espaço teatral da mesma maneira. Eles criam para uma peça um espaço teatral muito específico. (...) Se eu devesse escrever uma obra de teatro e música – e digamos deste modo, já que o termo ‘ópera’ implica uma conotação tradicional – preferiria organizar un espaço à minha vontade, e não ficar escravo de uma relação imóvel (...). Escapar ao quadro convencional da ópera é tão difícil que a maioria das obras novas não vão ao fundo da sua revolução” (Pierre Boulez, Claude Samuel – “Èclats 2002”, ed, Mémoire du Livre, 2002).
 
 
Notar-se-á como nos propósitos de Boulez está mesmo explícita a noção de “revolução” e a desconfiança do “termo ‘ópera’” por implicar “uma conotação tradicional”; isto dito, os problemas de dramaturgia musical que enuncia são de toda a pertinência, mesmo que vá sendo difícil de aceitar que sejam condição obrigatória à renovação do género – “renovação” que não “revolução”. Daí também que esse projecto entretanto acalentado tenha vindo a ser adiado: Boulez pensou numa colaboração com Heiner Müller, e tendo este falecido, encarava a hipótese de trabalhar com Edward Bond – era pelo menos o ponto da situação. Mas tudo ponderado, o facto de se saber do interesse de Pierre Boulez em talvez compôr uma ópera, mesmo que o termo seja outro, não deixa de ser suficientemente sintomático, tão forte foi o rasto da análise adorniana, e bouleziana, da morte da ópera depois do Wozzeck e da Lulu de Alban Berg.
 
Por certo que a renovação teatral foi decisiva: longe da estagnação, da fossilização mesmo, que houve durante décadas, a ópera, depois de Wieland Wagner, Luchino Visconti e Giorgio Strehler, foi espaço para as mais elaboradas e exaltantes experiências cénicas, devidas a um Patrice Chéreau, um Peter Stein, um Luca Ronconi, um Bob Wilson, um Peter Sellars, etc.
 
Depois de tanto se ter proclamado a morte da ópera, difícil vai sendo mesmo saber de um compositor de relevo que não tenha escrito uma ópera, esteja em vias disso ou a tal aspire. Talvez, se não Adorno, o próprio Walter Benjamin pudesse afinal ter constatado, não fosse o seu destino trágico, que a ópera, longe de dissipar a sua aura, afinal resiste, anacrónica, na aceleração vertiginosa da modernidade. E talvez seja disso também sinal que a experiência trágica de Benjamin seja já matéria de ópera, Shadowtimes de Brian Ferneyhough ou, muito recentemente, W de José Júlio Lopes.
 
Falemos então concretamente de ópera, “hic et nunc”, aqui e agora.