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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Da Literatura e das normas - II

No caso de Eduardo Pitta, mas também em muitos outros, diga-se, o que a blogosfera me permitiu verificar foi a persistência de uma “norma literária” como critério genérico de apreciações artísticas e culturais (com as suas implicações também no que toca aos discursos sobre políticas culturais, diga-se). Mais: constatei nomeadamente, em Pitta e noutros bloguers que aprecio, que não só são em geral poucas as suas concretas referências fora do campo literário, como a exigência que têm nesse campo se desvanece quando das idas ao cinema. Esse é um primeiro ponto, genérico.
 
Mas acrescento que no caso particular de Pitta, da “cena literária” e do “milieu” que representa, há uma suplementar restrição, marcadamente de classe, bem manifesta na sua expressão de “uma certa Lisboa, entre a Versalhes e o Campo Grande”. Esta inscrição social matiza também ela consideravelmente alguma sua suposta “heterodoxia”. Mais: de par com isso há um abuso de posição que chega mesmo a roçar o arrivismo; um exemplo foi a crítica no “Público” ao estudo de Vasco Pulido Valente sobre Paiva Couceiro, matéria sobre a qual se desconhecem as competências de Pitta – e qualquer prática crítica supõe questões de competência.
 
Assim quando ele escreve que “Lá onde o outro [o marxismo] se estribava no partido, o de agora tem o respaldo do Estado, sob várias ramificações: ministérios, institutos, empresas do sector público com nicho cultural (e sinecura correlata), universidades, etc. (...) Zelando pelos respectivos interesses, os novos capatazes defendem com fervor de alucinados aquilo que tomam por reserva sua. É-lhes intolerável qualquer resquício de intromissão heterodoxa”, há a notar que reitera essa tão anacronicamente literata noção que os outros campos artísticos e culturais, que pelas suas condições de produção exigem muitas vezes outros meios e aparatos institucionais, são necessariamente palcos de interesses e só desses (o que tem feito repetido dizer disparates sucessivos em matérias como a existência do Ministério da Cultura ou, mais grave ainda, o que escreveu sobre a crise do São Carlos); mas também tenta sonegar o que de “interesses” haverá no “milieu” que frequenta e representa, como em qualquer outro meio.
 
E quanto a “novos capatazes” suponho que Eduardo Pitta deveria ter algum cuidado no que diz. Não tem ele reiterado uma norma do romance que, vigilante dos outros, o fez nomeadamente escrever de modo de todo despropositado, embora sempre se insinuando “trendy”, “em que outro país Rui Nunes e Mafalda Ivo Cruz seriam considerados romancistas”? Abordando de modo pioneiro a condição homossexual na literatura portuguesa, não tentou ele também formular uma norma ao excluir o mesmo Rui Nunes ou, extravagantes e insultuosas mesmo, nas considerações sobre o modo como Eugénio de Andrade teria manifestado ou contornado essa condição na sua poesia?
 
Sendo estas questões não só de “mecanismos de recepção cultural nos jornais e nos blogues”, mas mesmo também de hegemonia de discursos críticos e até de abusiva constituição de um cânone restrito, elas ficam pois aqui enunciadas, para além de imediatismos de resposta que não me interessam.