Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Presenças de Beckett

 

 

 
“Esse est percipi”, “ser é ser apercebido”, postulou George Berkeley (1685-1753), eclesiástico e filósofo irlandês, filósofo do empirismo. O postulado foi retomado por outro irlandês, Samuel Beckett (1906-1989), na sua incursão cinematográfica designada tão só como Film – e genial filme de 22’ – como uma peça há que tão só se chama Play. Ainda que realizado por Alan Schneider (e com fotografia de um dos mestres maiores, o irmão de Dziga Vertov, Boris Kaufman – os filmes de Jean Vigo ou Baby Doll, Há Lodo no Cais e Esplendor na Relva de Kazan têm a sua impressão fotográfica), seria erróneo dizer que, como nas convenções de uma ficha técnica, Beckett teria sido o “autor do argumento” – a concepção é inteiramente sua, e para supervisar, ou para finalmente se encontrar com Busker Keaton, pois que é ele o protagonista, Beckett até viajou de Paris para os Estados Unidos.
Buster Keaton, de facto...
Muito falam Vladimir e Estragão enquanto esperam, esperam, À Espera de Godot, e a sua imobilidade não deixa de evocar a passidade do homem que nunca sorria...e nunca falou – e ainda mais evoca Keaton a ainda mais imóvel Winnie de Dias Felizes. São todos seres de linguagem e de circunstâncias que outros determinaram, existem, “são”, enquanto circunstãncias e percepções.
“Esse est percipi” – “mas como escapar às ‘felicidades do percipere e do percipi’ se pelo menos uma percepção existirá enquanto vivermos, a mais temível, a de si pelo próprio?”, perguntava a propósito Gilles Deleuze em Cinema I – A Imagem-Movimento. A questão é ontológica, e se é de alguma maneira questão fundamental do teatro de Beckett (Winnie ou Krapp), não menos é uma questão fulcral de cinema nos termos em que ele a delineou.
“O”, a personagem de Keaton, é alguém “em busca do não-ser, tentando escapar a percepções exteriores para caír na inexorabilidade da auto-percepção” (Beckett). “O” tenta assim escapar a “E”, a “e(ye)”, ao olho da câmara, que de facto é como uma outra personagem. Questão eminentemente de cinema, pois.
Film de Samuel Beckett e Alan Schneider é exibido hoje às 19h30 na Cinemateca Portuguesa, com Hautes Solitudes de Philip Garrel.
“Quad”
Uma outra presença de Beckett ocorre na magnífica exposição Um Teatro sem Teatro, patente no Museu Berardo: Quad (sobre a qual Deleuze escreveu um texto próprio, L’Epuisé), de resto numa apresentação bem mais interessante que a do écrã de televisão em que estava encerrada nessa outra recente exposição no Museu do Chiado, Centro Pompidou: Novos Media, 1965 – 2003.
Há Beckett e Bruce Nauman, Beckett que influencia Nauman, este que homenageia o outro em Slow Angle Walk (Beckett Walk), admirável percepção da lógica “coreográfica”, de organização do movimento, que há na obra do outro - não deixa aliás de ser espantoso que a obra de Nauman, de 1968, seja um ano anterior a Film, que entre “O” e “E”, tão extraordinariamente afirmaria essa lógica. De resto, acrescente-se, um recente intérprete de Acto sem Palavras em Nova Iorque foi...Mikhail Baryshnikov.
“Slow Angle Walk (Beckett Walk)”