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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

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O conto interminável, a ópera dos fogos-fátuos - II

“Das Märchen”, ©Alfredo Rocha
 
 
Eis uma “ópera” que, como muitos poucas (só me ocorre essa tentativa de escrita das Tábuas da Lei que é o Moses und Aaron de Schönberg), intenta fazer jus à raíz do termo, isto é, ser “a Obra”.
 
Ao trabalhar sobre Das Märchen de Goethe, ou simplemente “o conto” (embora deva ser entendido mais especificamente no sentido de “conto maravilhoso”), Emmanuel Nunes não realiza apenas a sua obra mais ambiciosa mas uma moralidade na sequência da Flauta Mágica de Mozart, nem menos (e já agora, de A Mulher sem Sombra de Hoffmansthal e Strauss – mais uma coincidência que propriamente uma referência, que não é por certo para Nunes).
 
O que a ópera também revela, e é facto que tem de ser devidamente escrito, com todas as letras, é que o compositor, sendo um autor cultissimo, não tem todavia a menor cultura teatral e cénica. Neste aspecto, crucial, Das Märchen é de facto uma obra espantosa, de inanidade.
Emmanuel Nunes, compositor do eixo franco-alemão de origem portuguesa (e que é “compositor português” quando devidamente lhe convém, como se sabe, quando se trata de obter o apoio e as garantias de mandarinato de entidades e poderes portugueses), foi apresentando o caminho para Das Märchen em várias obras intituladas Épures du serpent vert (a personagem principal do conto de Goethe é uma serpente verde). Recentemente, o Remix, sob a direcção de Peter Rundel, apresentou e gravou mesmo (conjuntamente com Duktus), as Épures du serpent vert II, obra espantosa de incandescências e invenções tímbricas, correspondendo ao “desenho” das partes 2 e 3 da Cena I da ópera.
 
Não me está em dúvida a invenção do material, e apesar da sua duração de 1h58’ (“batendo” inequívocamente a 1h45/1h50 do Acto I do Parsifal de Wagner nas leituras mais lentas), o Acto I de Das Märchen ainda me afigura de grande riqueza, apesar de, entre outros, dois aspectos: a falta de inteligibilidade da concepção dramática e a banalidade da escrita coral, este último um aspecto que, devidamente ponderado e atendendo a já infelizes exemplos anteriores (73 Oeldorf- 75 II, Vislumbre ou Machina Mundi), até não de será de todo surpreendente, mas que a este nível de banalidade é embaraçante num compositor da envergadura de Nunes. Sendo até mais curto, o Acto II é no entanto o da confirmação da catástrofe.
 
Entendamo-nos sobre os “discursos sobre Nunes” e a “doxa” constituída: não é pelo facto do compositor invocar a Fenomenologia de Husserl que uma “fenomenologia do tempo” se torna constituítiva da sua obra; pelo contrário é até com alguma frequência um dos seus aspectos mais problemáticos – no epílogo de 47’ minutos de Das Märchen essa questão chega mesmo a um patamar exasperante.
 
Com obstinado rigor, sem dúvida alguma, Emmanuel Nunes concretizou esta ópera com uma conjunção de meios de todo inédita, co-produção do São Carlos, da Casa da Música e da Gulbenkian (além do IRCAM, no tocante à realização electroacústica) reunindo o Remix, a Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro de São Carlos e ainda, segundo o que é referido no programa, com a colaboração da Companhia Nacional de Bailado – já agora lembrando eu que originalmente estava sim previsto o Ballet Gulbenkian, pelos vistos removido da memória pública. E nem estou sequer agora a falar de um empenhamento directo dos responsáveis do Ministério da Cultura, isto é, do poder político, na solicitação de meios para uma extravagante operação de teledifusão e de um “oportuno” colóquio de “consagração” – isto sem falar mesmo do que não pode ser esquecido, isto é, das intrigas directas do compositor com vista à alteração da direcção artística do teatro, objectivo logrado, como se sabe.
 
 
Pode então perguntar-se, e pergunto eu: estes meios todos para quê? Como é por exemplo admissível, nos precisos termos do rigor que se reconhece em Emmanuel Nunes, que uma imensa percussão todavia mal se ouça, perdida no trajecto entre o Salão Nobre, para onde teve de ser remetida por óbvios motivos logísticos, e a sala? Que “rigor” há na banalidade da escrita coral? Que “rigor” há na participação de um grupo de bailado que o compositor quis desde o princípio e para o qual não tem nenhum pensamento constituído? O que pensa Emmanuel Nunes que é o teatro musical: uma inacreditavelmente dispendiosa récita de “kindergarten”?
 
Há em Das Märchen, o conto de Goethe e a ópera de Nunes, umas personagens de relevo que são os Fogos-Fátuos. Lamentavelmente, e apesar das belezas que na obra também há (e repito que, apesar da vacuidade da concepção dramática, as quase duas horas do Acto I me surgem de grande beleza musical), Das Märchen é um Fogo-Fátuo, com uma encenação atroz no seu simples propósito “ilustrativo”, e mesmo que com uma realização musical empenhadíssima, na direcção de Peter Rundel e também, há a assinalar, contando com um cantor de excepção, o baixo Mathias Hölle.
 
Lamento, sinceramente lamento, em primeiro lugar pela simples razão “egoísta” de que não gosto de me chatear num espectáculo (e já me tinha bastado o que sofri no Rigoletto), em segundo lugar porque as questões contemporâneas da ópera me interessam como poucas, em terceiro lugar porque tenho o devido respeito e admiração, tantos vezes reiterados, pela obra de Nunes, que venho seguindo de há muito e sobre a qual venho escrevendo faz 30 anos; lamento, lamento sinceramente, mas enquanto objecto-ópera, nos seus próprios termos programáticos, Das Märchen afigura-se-me um desastre muito para além de tudo o que se poderia recear.
 
Não vejo “promessa” ou “aurora” alguma na obra, tão só os fogos-fátuos de uma ópera enquanto manifestação do poder.