Os ocasos da Cultura
A reposição de E.T., há uns meses [no inicío do Verão de 2002], suscitou alguns “flash-backs” sobre o “dossier” que o “Expresso — A Revista” lhe tinha dedicado, aquando da estreia em Portugal, em Dezembro de 1982 [fora a primeira vez que um filme tinha sido capa de uma publicação generalista]. Ao que entendi, os comentários e referências feitos agora em diversas publicações indicavam atitudes de alguma nostalgia, nuns casos, de alguma incredibilidade, noutros: esse “dossier” poderia parecer, visto hoje, ser ele próprio um “e.t.”, pelo seu manifesto desajustamento com o panorama actual da cobertura cultural da actualidade na informação escrita: o que então se fez era de todo impossível de aproximadamente se repetir agora.
Fui parte dessa história e não o posso iludir — e também nesta coluna [então “Mediatismos”] nunca se pretenderam insinuar análises clinicamente feitas, abstractas de uma experiência pessoal que antes tem estado repetida e explicitamente implicada. Porventura, este preciso campo das mediações jornalísticas-culturais será até aquele em que mais indissociavelmente sou em simultâneo observador e participante. Mas essa não é razão para considerações sobre ele serem indefinidamente adiadas.
O que se passou a partir de 1981 foi obviamente uma conjugação de vontades individuais, a começar por quem era o editor da “Revista”, Vicente Jorge Silva, mas não podendo ser esquecido que o sinal verde veio do então director do “Expresso”, Marcelo Rebelo de Sousa. Talvez hoje se possa observar melhor, considerando as personalidades, que foi também o facto de o primeiro caderno estar tão politicamente vocacionado que permitiu um outro tipo de abordagens, não estritamente culturais mas que certamente de forte matriz cultural, na abordagem reflexiva da actualidade. E, depois, o estilo da “Revista” estava no ar do tempo, de um certo “culto cultural” mesmo, até de uma estetização do quotidiano, na qual, pelos menos nos primeiros anos, se fazia sentir a ressaca do “tudo político” de 1974/75 — e este quadro, que tem de ser atendido, não é propício a exercícios meramente nostálgicos.
Em 1989, quando o núcleo da “Revista” saiu (saímos) para fundar o PÚBLICO, a aposta inicial tinha sido largamente lograda, culturalmente mas também economicamente, com a continuada expansão do semanário, que, como os números provam, começou em processo de subida em paralelo à implantação da “Revista”. Em 1989, pensar-se-ia que a experiência mediática-cultural adquirida poderia ter continuidade bifurcada, na “Revista” que permanecia no “Expresso” e no PÚBLICO, que ousava também ensaiar numa articulação de actualidade diária e suplementos semanais, um legado que afinal estivera na base da sua própria contratualização. Uma e outra expectativa desvaneceram-se.
A revista do “Expresso” deixou há muito de ser, vagamente sequer, uma referência cultural. O que é entendido como “cultura”, os objectos de “cultura culta” se quisermos, estão num “ghetto” virtual, arrumados no “Cartaz”, que aliás com a sua actual fórmula está prestes a deixar de existir — donde se arrumará definitivamente o rasto de qualquer espectro [é o “Actual”, tal como ora existe]. De facto, não deixa de haver uma certa ideia cultural subjacente a essa mostra social do “Expresso” que é o caderno “Vidas”. E esse, aí, “é o que está a dar”...
No respeitante ao PÚBLICO, é de recordar que os suplementos foram dos primeiros a ser afectados, quando se tornou óbvio um sobredimensionamento do projecto (no qual, obviamente, tenho uma quota-parte de responsabilidades). Iniciada faz agora dois anos, a actual “arrumação” com os suplementos Y e Mil Folhas não é apenas mais uma das várias que se foram sucedendo. A ela está subjacente uma superação da matriz original, curiosamente retomando no entanto uma outra mais tradicional, aquela mesma que a experiência do “Expresso — A Revista” nos anos 80 tinha suscitado a ilusão de ter sido superada: uma diferenciada vocação da “cultura de massas” no Y e da “cultura de elites”, sobretudo de fortes marcas literárias, no Mil Folhas. Será a “ordem natural das coisas”?
Acontece que se as críticas terão de ser consideradas, até por razões de ordem prática, senão um campo à parte, pelo menos como tendo delimitações específicas, o espartilhar de diferentes perspectivas culturais pode conduzir a um alheamento das próprias capacidades críticas no tratamento da actualidade. É o que sucede. Dois exemplos apenas: já estamos no terceiro sucessivo ministro da Cultura [Sasportes, Santos Silva, Roseta] sem haver um único comentário editorial por parte deste jornal; salvo erro, no decorrer deste ano houve apenas dois “dossiers” culturais que foram destaque do jornal. A secundarização é patente.
É pequeno o passo entre a remissão à secundariedade e o alheamento, com o qual o tratamento dos acontecimentos é susceptível de entrar num sistema de auto-reprodução que acaba por equivaler à irresponsabilização. Eis dois exemplos em que atentei como leitor do jornal e frequentador de actos culturais por aquele abordados.
Como é possível que, no recente festival de documentário ocorrido em Lisboa no Centro Cultural de Belém, o jornal não tenha minimamente relatado o modo como aquele correu na prática? E entende o PÚBLICO que a escrita sobre filmes já dispensa vê-los no espaço em que são apresentados, as salas de projecção e no caso um festival? Como é possível que ao ler as notas de programa de um concerto tenha até verificado, como certamente outros espectadores, que esse texto e a apresentação do mesmo concerto no PÚBLICO sejam afinal um e o mesmo texto, com a mesma assinatura?
“Público”, 20-09-02
Republico agora este texto, que explicitava um itinerário também pessoal, embora não só, como ponto de partida para retomar a análise da depreciação da opinião cultural e sobretudo das práticas críticas no espaço em que elas eram supostas ter relevo, a dita “imprensa de referência” em Portugal.