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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

O conto interminável, a ópera dos fogos-fátuos - I

“Das Märchen”, ©Alfredo Rocha
 
 
 
Das Märchen
de Emmanuel Nunes
encenação de Karoline Grüber
direcção de Peter Rundel
São Carlos, 25 de Janeiro – estreia mundial
 
 
Antes do mais, a obra – estra concreta ópera, Das Märchen, e a obra de Emmanuel Nunes, em geral.
 
Sim, “complexidade” e “rigor” são termos que sempre ocorrem a propósito de Nunes. Há um outro modo de considerar essa obra, sem desmentir essas caracterizações: por muito que pense e evoque, não me ocorre uma escrita musical hoje tão estritamente “ontogenética”. Com isso quero referir-me à “rigorosa” obsessão com as potecialidades de uma matéria musical, e tão só com a “complexidade” dessa composição.
 
Exemplos maiores são os dois vastos ciclos de obras, o centrado em Ruf e o outro, a partir de Nachtmusik I, designado como “A Criação”. Não duvido, de modo algum, que são dois vastos exemplos de “construtivismo musical”, sejam susceptíveis de detalhadas análises. A questão é que a “análise musical” pode ser frutuosa e esclarecedora, é com certeza um indispensável utensílio de aprendizagem e saber, mas não é si mesma “música”. E a música é eminentemente uma arte de dimensão pública.
 
Como no caso de um Boulez, há também em Emmanuel Nunes essa espantosa capacidade de expôr num acorde inicial as premissas da matéria musical – e o acorde inicial de Das Märchen é um exemplo portentoso. Mas, sem prejuízo da exigência de “rigor” e de “complexidade”, há uma inteligibilidade da matéria que, dada a dimensão pública da arte da música, não é suposto confinar-se apenas ao caracter estritamente “ontogenético” dessa matéria, sob pena de a percepção das próprias lógicas construtivas ficar restrista ao autor e aos seus especialistas.
 
Pois que falei em Boulez, cujo pensamento musical é um influxo central em Emmanuel Nunes (mais, muito mais do que um também tantas vezes evocado Stockhausen, do qual em Nunes apenas sinto as visíveis marcas de Gruppen), também recordarei que, desde o início dos anos 80, desde o extraordinário Répons, e com base contretamente também na sua tão fecunda experiência de intérprete, noções como a de “trajectória” e de “escuta” lhe passaram a ser axiais. Ora, o que é radical em Nunes - em sentido literal, de raíz – é o fechamento à perspectiva de qualquer dimensão ou parâmetro que não seja apenas o das potencialidades ontogénicas da sua matéria musical. É um pensamento unicitário e anti-dialógico, que exclui qualquer possibilidade de um Outro. Donde, a escuta pode interessar-lhe enquanto a sua própria escuta do material que elaborou, mas não fundamentalmente nos termos próprios da dimensão pública. Dito de outro modo, é também um pensamento voltado para o interior do labirinto da sua complexidade, e desse modo fortemente entrópico.
 
De facto, o “discurso sobre Nunes”, a “doxa” ciosamente constituída, é também o de uma “verdade revelada”, de que o garante é o próprio compositor e tão só ele. Isto são características gerais, que evidentemente não desmentem ou excluem a fertilidade de um pensamento musical e de algumas obras admiráveis – a meu ver Ruf e Quodlibet sobretudo. Mas que também sugerem uma prudência acrescida ao modo como as referências alardeadas pelo compositor e as suas declarações se tornam “verdades incontestáveis”, quando há também que as situar em termos de recepção – e de recepção crítica.
 
Um tão acentuado pendor entrópico seria sempre uma questão que acrescidamente se colocaria perante uma ópera, uma obra que exige uma realização cénica e um outro tipo de percepção e recepção. Ainda assim, e porque apesar de ter uma posição de prevenção e de distância crítica, a grandeza do compositor Emmanuel Nunes não deixa de me ser evidente, não suporia que esse radical alheamento de um qualquer Outro e das coordenadas concretas de um espectáculo de teatro musical e dos espectadores fosse tão extremo mesmo em Das Märchen.