Evil Machines - um sério caso de humor e imaginação
Fotos José Frade
Libreto e encenação de Terry Jones
Música de Luís Tinoco
Figurinos de Vin Burnham
Direcção musical de Cesário Costa
Lisboa, Teatro Municipal de São Luiz
Estreia Mundial
Quando da apresentação, também no São Luiz, de uma anterior obra de Luís Tinoco, já essa sobre textos de Terry “Monthy Python” Jones, Histórias Fantásticas, que especialmente saudei, tive ocasião de relembrar Zapping, esse brilhante objecto paródico, com uma deslocação rápida de materiais musicais, como se fossemos sintonizando sucessivos postos radiofónicos, nos quais ouvíamos designadamente duas obras que também integravam o programa do concerto em que foi estreada, a Sinfonia nº102 de Haydn e a Sinfonia nº39 de Mozart – é, por assim dizer, uma obra “em situação”. E escrevi então que, apesar de se poder temer um carácter circunstancial, isto é, que supunha uma diferença acrescida entre percepção e compreensão da obra, pois que implica no ouvinte o quadro paródico, Zapping afinal deixara marcas, sendo com Sundance Sequence uma das obras de Tinoco que Histórias Fantásticas evocava.
Já agora também me ocorre que quando da estreia de Zapping escrevi que a obra era brilhantemente representativa de um aspectos mais notórios da condição pós-moderna, as práticas de “paródia” – a serem entendidas não só ou nem tanto no sentido humorístico corrente, mas no de trabalho explícito sobre referências e materiais anteriores.
Há uns tempos atrás, num encontro casual com Luís Tinoco – mas que não por acaso ocorreu quando ambos nos debruçávamos numa discoteca sobre as estantes de jazz –, disse-lhe que tinha acabado de ler no programa do Festival Musica de Estraburgo de 2007 um texto falando de “composição pós-pós-moderna” e que imediatamente me ocorrera também ele.
Por isso, trago também para aqui os termos desse texto de Antoine Gindt: “Segundo alguns, continua a haver duas filiações musicais na Europa: os herdeiros de Schönberg e portanto de uma vanguarda globalmente atonal, e os prossecutores de uma tradição mais académica na qual orquestração rima com harmonia.. Mas eis que surge, ao lado deste debate vetusto, uma tendência que reclica e reintegra materiais mais heterogéneos da história recente da música: será zona de margens, ‘no music’s land’ ou futuro da composição pós-pós-moderna?”
Curiosamente em contraste com um caso como o de Emmanuel Nunes (por este ser compositor em destaque no mesmo festival), Gindt falava de uma nova geração “para a qual o material também provém de um potencial mais largo de potencialidades já manufacturadas, mais imediata e directamente reconhecíveis, colhidas no banco mundial de sons, um mundo em reciclagem permanente, porque à distância e facilmente disponível. A citação pela colagem e ainda mais a impressão sonora constituem novos utensílios para o compositor”. E falava de autores que recusam a separação estrita entre “high art” e “low art”, de uma geração que adoptou a heterogeneidade colhendo também as influências e heranças do jazz e do rock, compositores como Heiner Goebbels, Fausto Romitelli, Bernhard Lang, François Sarhan e Oscar Bianchi – elenco em que se podem incluír também o notável Bruno Mantovani e, creio bem, Luís Tinoco.
A biografia de um autor, de um qualquer autor, não é a “chave” de interpretação da sua obra, e ainda mais em música. Mas também há dados biográficos que podem ser esclarecedores quando algumas características se tornam manifestas. Cabe assim recordar que para além da sua formação clássica, Luís Tinoco também cresceu no meio do jazz, por via do seu pai, José Luís Tinoco (de resto também um dos notáveis “song-writers” portugueses), e praticou ele mesmo o jazz, como cabe recordar que antes de optar pela composição e a Escola Superior de Música tinha primeiro frequentado a Escola Superior de Teatro e Cinema.
Terry Jones e Luís Tinoco
Evil Machines é de algum modo uma obra eminentemente cinematográfica. Se em Sundance Sequence o “script” era por assim dizer virtual, embora importante à narratividade da obra, agora o gesto foi mesmo o de pôr um texto em música, de o “musicar”. Já escrevi, logo após a estreia da obra, que enquanto Terry Jones se lhe refere mesmo como “ópera”, Tinoco mostra-se mais circunspecto na caracterização, correctamente a meu ver, a designação mais pertinente sendo a que consta do próprio espectáculo, “fantasia musical”.
Uma ópera é (também) estruturalmente organizada pela música. Uma “fantasia musical” como esta, mesmo totalmente cantada, trabalha de modo heterogéneo as sugestões do texto, por exemplo dando-lhe a imediata concretização sonora, por exemplo integrando também a citação parodiada como a de “God Save the King”.
É inegável que os muito fantasistas e delirantes figurinos de Vin Burnhan são o dado mais imediato da realização. Mas a caracterização das personagens e situações são indissociavelmente matéria do libreto e da música.
Tinoco não temeu que Evil Machines se aproximasse do modelo do “musical”, embora de escrita mais complexa – e essa atitude é mérito seu, sinal de uma liberdade criativa em que os compartimentos da “high art” e da “low art” já não são estanques.
Aqui e além reaparece a influência de John Adams – justamente exemplo de uma situação composicional sem essas compartimentações - que tão importante é noutra obra de Tinoco, Round Time (que pode ser ouvida no seu sitío, www.tinocoluis.com), a pulsão jazzistica é recorrente, as invenções tímbricas muitas, a escrita vocal é ágil. Só num momento, “We Have All Monsters”, me parece que o compositor cedeu a uma facilidade de “canção”, porventura também porque esse é um momento de “moralidade”.
Cabe falar ainda também de um notável elenco, quase todo jovem ou relativamente jovem, com o evidente destaque desse talento consumado que é a soprano Ana Quintans, mas também, entre outros, de dois cantores que aqui confirmam serem casos a justificar atenção, o tenor Fernando Guimarães e o barítono João Merino. E há a notar que está patente o trabalho de “coaching”, que é mais que escorreita a pronúncia inglesa deste elenco português.
Mas cabe sobretudo falar de um exemplar trabalho de equipa, do entendimento Terry Jones-Luís Tinoco, dos contributos também da direcção musical de Cesário Costa, à frente da Orquestra Metropolitana de Lisboa, ou do delineamento coreográfico de Paulo Ribeiro, do trabalho de produção que implicou esta aposta do director artístico do São Luiz, Jorge Salavisa, de um espectáculo com um valor tal que a sua “exportação” nada teria de surpreendente.