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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Berlin Alexanderplatz - II

 

 

 

 

 

 

Como é central à obra de Fassbinder, há em Berlin Alexanderplatz uma enorme violência simbólica, inclusive de incrustações físicas, na apresentação dos corpos em confronto. E como lhe é igualmente central, há uma economia de trocas e lógicas de poder entre as personagens que impossibilitam as relações propriamente afectivas – no caso, o contrato pelo qual Reinhold cede a Franz as mulheres de que sucessivamente se vai querendo “desfazer”.
 
Dito noutros termos, que me parecem axiais à perspectiva de Fassbinder, em Franz há uma impossibilidade não só simbólica como também social de constituir a sua masculinidade, e com isso há também a violência física no seu corpo – a amputação de um braço, por exemplo  – e a que sobre outras exerce. Dai também que eventualmente os vértices da obra sejam o do desespero solitário e embriagado de Franz, na parte 4, e, como que em contraponto, o assassinato por Reinhold – esse outro a que Franz se sujeita – de Mieze, aquela que Franz ama e que por ele se prostitui, na parte 12, dois dos momentos mais exasperados de toda a obra de Fassbinder.
 
Mas não é menos axial que essa impossibilidade, o processo de “castigo” de Franz, implique também a diluição no magma dos fragmentos de experiência urbana e, em consequência, que essa composição fragmentária e o inerente desenho do mosaico da grande cidade pelo princípio lato de montagem (o que já de si é distintivo do romance de Döblin), suponha também uma percepção descentrada e expandida no tempo por parte dos próprios espectadores.
 
“A cidade, o mundo e eu”, exclama Biberkopf logo ao início; as características do romance de Döblin e o modo como perante aquele Fassbinder supôs um devir-Biberkopf como horizonte da sua própria obra, fazem com a experiência da diluição e da percepção urbana implicam também um outro tipo de experiência de espectador – e por isso, e para além de alguns elementos à época (1980/81) muito controvertidos como a escassa visibilidade de algumas cenas, a obra exige algo de diferente de um exercício mais ou menos regular de tele-visão, e assim solicita um acto de espectador que é ir quotidianamente à sala reencontrar e prosseguir as personagens.
 
Assim sendo, e por muitas dúvidas (muitas mesmo) que eu tenha à figuração alegórica-apocaplítica do Epílogo, Berlin Alexanderplatz não deixa de ser uma experiência de cinema extra/ordinária, e de cinema, sublinho ainda: “mergulhar” num filme, perdermo-nos nele, ao longo de uma visão forçosamente espaçada em vários dias.