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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Berlin Alexanderplatz - I

 

 

 

“Nada há de especial em não nos orientarmos numa cidade. Mas perdermo-nos numa cidade, como nos perdermos numa floresta, é coisa que precisa de se aprender”. O famoso enunciado é de Walter Benjamin em Infância Berlinense, em que também se pode nomeadamente ler: “Todos os dias a cidade voltava a prometer-me, e todos as noites me ficava a dever o prometido”.
 
Esses dois extraordinários textos de Benjamin, Infância Berlinense e Rua de Sentido Único são contemporâneos de Berlin Alexanderplatz, o grande romance de Alfred Döblin, publicado em 1929. E Benjamin escreveu mesmo um breve mas relevante ensaio, A Crise do Romance, sobre o romance de Döblin, opondo-o à teorização do “romance puro” de Gide. Para o que importa, Berlin Alexanderplatz, como os textos de Benjamin, inscrevem-se numa nova percepção da experiência urbana, na sua fragmentação e também recomposição estética, designadamente com técnicas de montagem já de si tão cinematográficas.
 
Berlin Alexanderplatz: a história de Franz Biberkopf, pois esse é o título completo, foi recorrentemente aproximada do Ulysses de Joyce e de Manhattan Transfer de John dos Passos – aproximação pela “stream of consciousness” num quadro temporal e/ou urbano preciso. Foi também obra muita discutida enquanto um dos primeiros, senão mesmo o primeiro exemplo de “romance psicanalítico”, mesmo que Döblin tenha sempre negado a influência de Freud. E importa ainda atender que Berlin Alexanderplatz se veio inscrever na estética da “nova objectividade”, um realismo de resto a vários níveis já marcado pela experiência cinematográfica (o que é notório na obra), de que aliás um evidente exemplo é desde logo a própria adaptação cinematográfica do romance, o filme de Phil Jutzi de 1931.
 
A percepção dos sujeitos e das personagens dilui-se no magma das percepções da experiência urbana – só após mais de 100 páginas ocorre o encontro de Franz com Reinhold a partir do qual há uma linha narrativa e um agenciamento de episódios. Isto, quanto está estabelecido o quadro: tudo se dissolve na cidade, na experiência urbana.
 
As cidades do homem e a sua alma, assim se intitula o texto de Fassbinder sobre o romance de Döblin, talvez mesmo o mais importante dos seus textos (incluído na colectânea Os filmes libertam a cabeça), inclusive no modo como se narra no confronto com o romance ao longo dos anos e das leituras. “As cidades do homem e a sua alma” – “as cidades” ou a cidade não sendo um exterior mas um quadro constitutivo da experiência, mesmo o outro pólo sem o qual não existe constituição do sujeito.
 
Atentemos a alguns elementos da filmografia de Rainer Werner Fassbinder (RWF), desde logo os filmes iniciais. Na primeira longa-metragem, O Amor é Mais Frio que a Morte, há um Franz, interpretado pelo próprio RWF. Em Os Deuses da Peste, há um outro Franz, personagem que a RWF mais que entregou, “passou” a Harry Baer (que certamente não por acaso viria a ser o seu principal colaborador depois em Berlin Alexanderplatz).
 
No primeiro filme efectivamente maturo de RWF, o quarto, Porque Corre o Senhor R. Amok?, surge pela primeira na montagem a menção de “Franz Walsch”, pseudónimo de RWF, homenagem simultânea, foi dito, ao Franz de Berlin Alexanderplatz e a Raoul Walsh. Mas depois, mais esclarecedor ainda, num filme tão importante em que ele próprio reaparece como protagonista, e expõe uma homossexualidade como a sua, O Direito do Mais Forte À Liberdade, a personagem chama-se mesmo Franz Biberkopf (dito Fox). Enfim, na extraordinária auto-exposição do seu episódio de A Alemanha no Outono, há um momento em que Fassbinder trabalha, enunciando em voz alta, para o gravador registar, cenas de um argumento, e refere a personagem Franz.
 
“Biberkopf bin ich”, “Bikerkopf sou eu” disse ele, parafraseando o “Bovary, c’est moi” de Flaubert. Fassbinder apoderou-se da personagem, imaginou-se a ele próprio num devir-Biberkopf.
 
É crucial atender assim que Berlin Alexanderplatz não pode ser encarado como uma série de televisão que RWF teria feito, e lateral à consideração da sua obra. Pelo contrário, Berlin Alexanderplatz foi o ponto que ele erigiu como horizonte do seu percurso, e que por força do projecto produtivo e da duração de 15 horas e meia teve também de ser uma série televisiva, de resto bastante contraditória enquanto tal. Mas que é um filme, “um filme em 13 partes e um epílogo”, ou uma obra de cinema, isso garanto, invocando a minha experiência de espectador.
 
De resto, importa realçar desde logo que o número de “14 episódios” não é fortuito; há 14 sequências ou estações –  estações como as de uma “Via Crucis” – no romance de Döblin. E logo a 1ª parte tem como título “Começa o castigo”, isto é, “o castigo” sacrificial de Franz Biberkopf no momento em que, após a sua libertação da prisão, emerge de novo na deriva tentacular da experiência urbana.