Rivette, o instante real e os fantasmas - II
“Céline et Julie vont en bateau”
Em Paris nous Appartient, a primeira longa-metragem de Rivette, um grupo teatral trabalha numa encenação do Péricles de Shakespeare, isto é, o dado da representação é explicitamente introduzido no filme. Trata-se assim de algo em vias de se construir, daquilo que nos anos seguintes viria a ser conhecido como “work in progress”. Este processo em movimento, auto-reflexivo, pressupõe uma distância perante as referências prévias, por vezes mesmo irónica, sendo que no decorrer do filme há uma denegação do título: “Paris n’appartient à personne.” Enfim, as intrigas no seio do grupo fazem acumular os mistérios, o pressentimento de um “complot”.
É notório que a ideia do “complot” se cristalizou como uma espécie de marca reconhecível de Rivette, um pouco a contragosto do autor diga-se, que apenas a reconhece para três filmes, todos eles sendo “ensaios, segundo métodos e aproximações completamente diferentes, de pequenas crónicas privadas em relação a dados da actualidade do momento em que se rodava, ou próximos de alguns meses”. Esses filmes, que se estabelecem em cadeia, numa relação de ironia ou distanciamento com o(s) precedente(s), seriam: Paris Nous Appartient, o seu primeiro, de 1958-60, tendo como quadro histórico de referência os dois anos imediatamente anteriores, os do pós-mccarthismo e do pós-Budapeste; Out One, o quarto, de 1970-72, ou do pós-Maio de 1968; e Le Pont du Nord, o nono, de 1980-81, dos finais do giscardismo.
Admitindo que estes filmes constituem uma sequência particular, não será, no entanto, ocasional que constituam uma “marca reconhecível”. Se neles se radica uma matriz rivettiana, os aspectos que aí especialmente se condensam, para além da insinuação do “complot”, são três: a constante bifurcação dos eventos, isto é, o lado eminentemente centrífugo das ficções de Rivette, o primado que nelas tem “o momento”, um e outro aspecto combinando-se numa sucessão lúdica em que “a história”, “as histórias”, vão sendo engendradas e desenvolvidas, perante o olhar do espectador.
“Qu’est-ce que le cinéma, sinon le jeu de l’acteur et l’actrice, du héros et du décor, du verbe e du visage, de la main et de l’objet?”
Esta citação (preservando o original francês pelos múltiplos sentidos, fundamentais na obra rivettiana, de “jeu”) dir-se-ia directamente referida a La Belle Noiseuse, quando perante o espectador vai sendo feito o quadro de Frenhof, para o qual Marianne é modelo. E no entanto, e por incrível que pareça, ela é retirada de uma entrevista a “L’Écran Français” em... 1958, quando Rivette rodava Paris Nous Appartient!
Quando, em 1987, o “Libération” fez a 700 cineastas a pergunta “Porquoi filmez vous?”, Rivette respondeu nestes termos:
“O que, se compreendo o sentido da vossa pergunta, primeiro me ocorre é o que muitas vezes (antes, durante, depois de cada rodagem) me perguntei: Como filmar, com quem, para quem? Mas o porquê da coisa ficou sempre rigorosamente opaco. Pois bem, que fique! E seja então talvez esse ‘ponto cego’ no fundo do olho, sem o qual não veríamos, a que Jean Paulhan fez mais de uma vez referência. Volto à verdadeira questão que, no que me diz respeito, é: Com quem? Então, porque filma? Para poder encontrar os cúmplices necessários e que o nosso trabalho comece, que a nossa reunião de algumas semanas chegue, por vezes, a algo como um filme.”
“Cumplicidade”, conceito capital, mais decisivo que o de “complot”, que aliás abrange. A cumplicidade com os actores, a cumplicidade na equipa. A cumplicidade em que se estabelecem as regras para o jogo. Consequência não menos capital: por paradoxal que pareça em relação a alguém tão reconhecível, enquanto “autor cinematográfico”, o que a Rivette importa não é a afirmação do papel do “criador”, mas o estabelecimento dos laços que permitem um desenrolar do movimento que tomará corpo como filme.
“Mais, le lendemain matin” - mas, ao segundo dia, foi Marianne, aceitando-se na condição de modelo, a ir ter com o pintor Frenhofer, na Belle Noiseuse. “Mais, le lendemain matin” é também um cartão recorrente em Céline et Julie vont en bateau. Todos os dias seguintes havia uma outra hipótese mágica, à maneira de bandas desenhadas, como a Bécassine que Julie espreita, ou de velhos “seriais” cinematográficos, dos de Feuillade nos primórdios a, por exemplo, Os Espiões ou As Aranhas de Fritz Lang, modelo da noção rivettiana do “complot”. Todos os dias, a narrativa toma outras vias, no presente de cada dia.
Transportar o “era uma vez” para o presente, um “presente” como raramente se sente no cinema, eis outro aspecto capital da obra de Rivette, seguindo a construção de uma obra para a tornar precisamente “presente” e não objecto acabado. Seguindo-a, momento a momento.
“Ça se sent dans votre film, l’instant est complement royal, il est traité comme le seul”
Isto disse-o Marguerite Duras a Jacques Rivette, numa conversa a propósito de Le Pont du Nord. Enquanto noutros casos de tradução há uma perda, neste há um acréscimo subentendido, porque nos filmes de Rivette “o instante é completamente real”. É no seu primado que se registam as imagens e os sons.
.“O instante é completamente real”, mas, crítico arguto como poucos, Rivette sabe bem que o dado a ver, sendo ainda apresentado como “presente”, não deixa de ser o registo de algo que já foi. Ora, é extraordinário o modo como nos seus filmes coexistem uma percepção do presente e do passado.
O quadro de Frenhofer, “La Belle Noiseuse”, permanecerá um fantasma – Le Chef’Oeuvre inconnu, no texto de Balzac que é ponto de partida - Balzac como em Out One ou agora neste mais recente Ne touchez pas la hache. No absoluto do desejo, estético ou erótico, quer-se ser o mesmo e um outro. “I am Heathcliff”, diz Cathy em O Monte dos Vendavais — “Je suis Roch”, diz Catherine em Hurlevent, a versão de Rivette do romance.
Impossível é evocar o cinema de Rivette sem atender ao que nele há da fantasmático. “Phantoms ladies over Paris” (como num imaginário filme de Jacques Tourneur) é o subtítulo de Céline et Julie vont en bateau. “Cenas da Vida Paralela” era a designação de uma projectada tetralogia de afrontamento da luz e das sombras que se ficou por Duelle e Noroit, mas viria afinal a ter também um tardio outro “episódio” em Histoire de Marie et Julien. Um fantasma evocava Lucia (Inês de Medeiros), no mais belo plano de La Bande des Quatre. Fantasmáticas eram as mãos que se saudavam, no final de Hurlevent. E Julien sonha com Marie, uma “revenante” (de entre os mortos?). Possessão letal, existências fantasmásticas.
Mestre do “jeu”, da duração e da multiciplicidades de narrativas, Jacques Rivette é um cineasta que, como poucos, nos coloca perante a intensidade do “do instante real” e ao mesmo tempo convoca a potência fantasmática do cinema. É um dos máximos cineastas vivos e um dos grandes autores da arte cinematográfica.