Rivette, o instante real e os fantasmas - I
“La Belle Noiseuse /A Bela Impertinente”
Este texto podia começar como segue: “A evidência é a marca do génio de Jacques Rivettel. O que é, é.”
Se digo que o “texto podia começar como segue”, em vez de introduzir directamente a citação, estou a instaurar uma hipótese que, ao referir-se a um texto prévio, estabelece a possibilidade de a citação ser pertinente, mas também de não o ser. Para averiguar da pertinência, não basta o axioma “o que é, é”, mas impõe-se um percurso em que a verificação da hipótese genérica se pode subdividir em particulares, umas condicionando as outras, delineando-se como um jogo. Um percurso rivettiano, precisamente.
A citação está truncada. A frase, famosíssima, diz respeito a Howard Hawks e a Monkey Business. Jacques Rivette foi, sim, o seu autor. O texto, publicado nos “Cahiers du Cinéma” de Maio de 1953, foi o segundo de Rivette na revista e a primeira crítica importante à obra de Hawks, autor que em breve iria ser equiparado pelos “jovens turcos” dos “Cahiers” a Hitchcock — a famosa tendência hitchcock-hawksiana. Hoje, o génio de Hawks é uma evidência; alguém teve a clarividência de o ver primeiro. O que era obscuro, ou estava na penumbra, tornou-se visível.
Cabera então recordar o que era, no Rivette/crítico, um regime de evidências (e portanto de visibilidade), que mais tarde o Rivette/cineasta sistematicamente relativizará, contrapondo às claridades as zonas das secretas obscuridades.
Impossível, então, não referir outro celebérrimo texto, feito também contra a corrente crítica dominante na altura — a “Lettre sur Rossellini”, em defesa de Viagem em Itália, publicado em 1955, e que implicitamente colocava as evidências como uma questão de fé: “Eis o segredo de Rosselini, que é o de se mover com um liberdade contínua e com um só e simples movimento no eterno visível: o mundo da incarnação.”
Se Rivette retomava o dogma, não deixa de notar como ele se revela: não num desenrolar previamente determinado de um programa ficcional, mas no movimento, nas esperas, nos acasos. E por isso, esse texto, que não podia ser mais clássico na apologia do cinema como arte da incarnação, é também a grande defesa da “modernidade” de que Viagem em Itália surgia como um exemplo maior.
A modernidade, justamente. Dela, foi Rivette o motor teórico nos “Cahiers” (nomeadamente contra Rohmer, há que relembrar). Os grandes reabilitadores críticos do classicismo do cinema americano haveriam de ser os cineastas da “modernidade”. No caso específico de Rivette (de resto, com Godard, certamente o mais “experimentador” do grupo), a passagem para detrás da câmara foi acompanhada por uma reticência metódica.
“Com tudo o que houve durante os últimos 25 anos, e sobretudo durante os anos 70, a reflexão trazida por pessoas como Barthes ou mesmo aquela a partir de Brecht sobre a impossibilidade do primeiro grau, afigurou-se-me progressivamente impossível fazer filmes como, com todas as devidas distâncias, alguém como Rossellini, com aquele lado imediato, bruto. O facto de saber que o primeiro grau é sempre uma ilusão, que não existe, e que, pois que estamos sempre pelo menos no segundo grau, mais vale então partir daí e servir-se dessa obrigação de partida, jogar com ela, ou em todo o caso não se deixar enganar a fim de não enganar os outros.”
A citação data de 1985 e se reparo cabe fazer é sobre a referência aos anos 70. Efectivamente, Rivette poderia apenas falar do que então eram “os últimos 25 anos”, uma vez que, já no princípio dos anos 60, esta reflexão sobre a ilusão (onde anteriormente se supunha uma evidência) e os diferentes graus da representação está presente na sua prática, quer na crítica, onde dirige a chamada “viragem modernista” dos “Cahiers” (que leva nomeadamente ao diálogo interdisciplinar com personalidades como Barthes e Boulez), quer na realização, com Paris Nous Appartient.
“Será verdadeiramente o filme da nossa geração”, dizia François Truffaut em 1958. Poderia ter sido (“deveria” ter sido?) o primeiro filme da “nouvelle vague”, mas, por atrasos sucessivos, apenas foi estreado em finais de 1961. E se esse lado de experiência geracional não é de desconsiderar, pois que supõe uma aspecto decisivo — a inscrição de um filme no real e num tempo histórico concreto (lá voltaremos) —, cabe sobretudo interrogar se Paris Nous Appartient não é, entre todos os primeiros filmes do grupo vindo dos “Cahiers”, aquele em que há uma mais aguda consciência de uma nova experiência, da “modernidade” cinematográfica.
Gilles Deleuze, que foi grande admirador da obra de Rivette, falava a propósito da “nouvelle vague” da “crise da imagem-acção”, cuja apoteose tinham sido os filmes de Hitchcock, baseada numa continuidade sensomotriz, na experiência pelo espectador do “suspense”, da angústia e dos movimentos. Com a “nouvelle vague”, surge uma “nova consciência intelectual e reflexiva”, da qual, entre vários exemplos, Deleuze desenvolve os dos primeiro e terceiro filmes de Rivette, Paris Nous Appartient e L’Amour Fou.