Oscar Peterson (15/08/25 – 23/12/2007) foi um pianista de virtuosismo fenomenal, disso não há dúvidas, e de uma versatilidade que o fez construir uma discografia ímpar na história do jazz, verdadeiramente enciclopédica: tocou com Coleman Hawkins, Ben Webster e Lester Young, com Louis Armstrong e Ella Fitzgerald, com Billie Holliday e Sarah Vaughn, com Charlie Parker e Dizzy Gillespie, com Johnny Hodges, Benny Carter, Sonny Stitt e Stan Getz, com Roy Eldrigde, Clark Terry e Freddie Hubbard, com Lionel Hampton e Milt Jackson, com Stephane Grapelli e até um violinista clássico como Itzhak Perlan, etc!
Um e outro factor muito contribuíram também, no entanto, para a continuada desconfiança que também muito suscitou, a suspeição de um virtuosismo mecanicista, a que acresceu o facto, também ele “suspeito”, que desde o momento em que o célebre produtor Norman Granz o descobriu e contratou para o arranque do Jaaz at the Philarmonic, no Carnegie Hall, em 1948, foi muito mais um músico de salas de concerto do que de clubes.
Todavia, excepto explicitamente Miles Davis, os seus pares não cessaram de o admirar: a discografia é disso exemplo suficiente, mas houve mais e conhecidos elogios, como o de Duke Ellington, que lhe chamou “o marajá do teclado”, de Count Basie que dele disse que tocava “a melhor caixa de marfim que alguma vez ouvi”, de Ray Charles que tão só exclamou que "Oscar Peterson is a mother fucking piano player!". Ainda mais digno de consideração é o respeito que por ele manifestaram outros pianistas, como Bill Evans, ou Herbie Hancock e Diana Krall que num artigo ontem publicado no “Los Angeles Times” diziam, um e outra, que Peterson tinha sido a influência decisiva que os fez tornarem-se pianistas de jazz.
Se é certo que momentos houve, e vários, em que a auto-confiança do virtuosismo o fez rodear-se de comparsas sem espaço de afirmação, e com isso se tornou também previsível e superficial, não é menos certo que Oscar Peterson todavia também não cedeu a compromissos de modas e vagas, como sucedeu por exemplo com um Dave Brubeck ou um Stan Getz, e que para além do seu prodigioso pianismo deu redobrados lustros à arte do trio, nomeadamente quando se rodeou de um contrabaixista e de um guitarrista, como com Ray Brown e Herb Ellis nos anos 50 e Niels-Henning Orsted-Pedersen e Joe Pass nos anos 70.
Com Ray Brown e Herb Ellis
Oscar Emmanuel Peterson era afro-americano, mas não cidadão dos Estados Unidos: nasceu numa família pobre, nos subúrbios de Montréal – de resto cidade de origem de outro pianista de jazz, Paul Bley, sendo que com esses, como com um Neil Young, até um David Cronenberg, ou Diana Krall também, muitas vezes se esquece que são canadianos e não norte-americanos. E se foram inúmeros os prémios que recebeu, incluíndo sete “Grammies” e o “Life Achievement Award”, além de muitos triunfos nas votações anuais da revista “Down Beat”, no seu país foi cumulado de honras.
Peterson, de resto, tinha particular orgulho, entre as suas obras, pela “Canadiana Suite”. Ocorre dizer-se que era mesmo um totem nacional, atendendo nomeadamente a que em 2005, quando dos seus 80 anos, os correios canadianos fizeram-no mesmo objecto de um selo, a única vez que isso ocorreu com alguém vivo, que não os soberanos.
Apesar de ter aprendido música desde cedo, Peterson tornou-se profissional contra a vontade do pai, que contudo lhe disse que então tentasse “ser o melhor” – conselho que Oscar Emmanuel nunca esqueceu.
A influência de Teddy Wilson e de Nat “King” Cole (a de Cole perdurou aliás não só numa certa tendência a um melodismo insinuante como sobretudo na sua própria arte do trio) conjugou-se com uma descoberta que começou por ser um choque intimidante: a de Art Tatum.
No referido artigo do “Los Angeles Times”, Herbie Hancock conta também como um dia ousou finalmente perguntar a Peterson o que sentira perante Tatum, e ele contou como depois do ter ouvido foi para o segundo andar da sua casa e quis mandar fora o piano. “You too, Oscar?”, perguntou Hancock; “Me too. Tatum scared me to death”, respondeu o outro.
O certo é veio a atingir níveis de virtuosismo só comparáveis aos de Tatum, e todavia mais substantivos, quando o outro tendia a ser mais pirocténico. Combinando a mão esquerda do pianismo “stride” com uma prodigiosa destreza da mão direita, um incrível jogos de pedais e uma assombrosa variedade no “toucher”, Oscar Peterson, por muitos momentos mais superficiais que também tenha tido, foi sem dúvida um gigante do piano e um gigante do jazz.
P.S. – Cabe recordar que, depois das mortes de Max Roach e agora de Oscar Peterson, os dois grandes gigantes do jazz veteranos entre os veteranos são Ornette Coleman, que veio este ano ao “Jazz em Agosto”, e Sonny Rollins, que a 18 de Setembro passado assinalou o 50º aniversário da sua estreia no Carnegie Hall, num concerto com Roy Haynes e Christian McBride, uma gravação a ser editada em 2008. Ambos têm 77 anos.
Cantatas vol. XVI – “Para o domingo seguinte ao Natal”
Moteto “Singet dem Herrn ein neues Lied”, BWV 225, Cantatas 152, 122, 28 e Cantata BWV 190 “Singet dem Herrn ein neues Lied” (para o dia de Ano Novo)
Katharine Fuge, Gilian Keith, Joanne Lunn, Daniel Taylor, James Gilchrist, Peter Harvey
Monteverdi Choir, English Baroque Soloists
John Eliot Gardiner
Soli Deo Glori, dist. CNM
Em 2000, no 250 anos da morte de Johann Sebastian Bach, Gardiner e as suas Monteverdi Productions empreenderam um projecto de “peregrinação” absolutamente sem paralelo: durante esse ano realizaram a integral das cantatas litúrgicas de Bach num conjunto de cidades (passaram pelo Porto).
Com a “peregrinação” perspectivava-se também um novo ciclo integral em disco – e quem imaginaria, há 25 ou 20 anos, quando se seguia é caso para dizer que devotamente aquele que era à época o empreendimento mais ousado da história da indústria fonográfica, o ciclo dirigido por Nikolaus Harnoncourt e Gustav Leonhardt na Telefunken – “Das Alte Werke”, quem imaginaria que agora estivessemos com três integrais em curso, as de Gardiner, Suzuki e Koopman!
Só que quem não esteve pelos ajustes foi afinal a editora que em Gardiner tinha um dos seus maiores trunfos, a “Archiv” da Deutsche Grammophon. Apenas alguns volumes foram ainda publicados aí, decidindo Gardiner a criar o seu próprio “label” discográfico, “Soli Deo Glori” – o mesmo sucedeu aliás com Ton Koopman na Erato, tendo também o músico holandês estabelecido a sua própria etiqueta, Antoine Marchand (nome que é literalmente a tradução francesa de Ton Koopman).
Há que dizer que o conjunto se está a apresentar bem mais interessante do que seria expectável. Se o brilhantismo característico de Gardiner se mostrara bastante superficial na abordagem das Cantatas, esta plena imersão durante todo um ano revela-se bem mais frutífera.
Não menos, no entanto, se deve deixar de ter em conta o estrito quadro temporal em que foi realizada esta integral, certamente com imensa dedicação, mas não menos por certo também sendo em especial extenuante. E convém atender a esses dados concretamente na escuta deste vol. XVI, que ao contrário dos outros não é duplo, pela sua particular situação na quadra natalícia – e lançado agora por esse mesmo motivo.
Seguindo o calendário, o presente disco corresponde também ao último concerto da gigantesca “tournée”, a 31 de Dezembro de 2000 em Nova Iorque. É mais que provável que o cansaço acumulado tenha sido um factor para que a obra de abertura, o moteto “Singet dem Herrn ein neues Lied” (incluído no programa em razão de ter o mesmo “incipit” que a famosa Cantata de Ano Novo), soe tão pálido – o que ainda assim não deixa de ser desagradavelmente surpreendente, já que é ímpar a excelência do Monteverdi Choir.
Exceptuada a constante distinção do baixo Peter Harvey, as perspectivas só mudam de facto com as Cantatas BWV 28 (com uma belíssima ária inicial da soprano Joanne Lunn também) e 190, especialmente na última, em que enfim se reencontra, nessa festiva obra, a magnificência do Monteverdi Choir e o brilhantismo dos English Baroque Soloists também – e seria mesmo uma das mais esplendorosas interpretações da Cantata “Singet dem Herrn ein neues Lied!” se não ocorresse uma desastrada ária, “Lobe, Zion, deinen Gott”, “cortesia” de Daniel Taylor.
Mas, e atendendo também que, exceptuado Harvey e a referida ária “Gottlob! Nun geht das Jahr zu Ende” por Lunn, os solistas são claramente insatisfatórios, este é um volume algo mitigado, e bem inferior a outros já publicados. Resta a singularidade distintiva de incluír as cantatas da quadra natalícia e que, longe de afastar as atenções de Gardiner, nos deve antes solicitar para uma percepção mais matizada, atendendo a outros momentos do ciclo – ou, dito de outro modo, não é de modo nenhum uma introdução a esta integral, antes uma passagem, saliente em termos de calendário, mas musicalmente menos relevante.
Metchild Bach, Daniel Taylor, Marcus Ullman, Raimund Nolte
Coro de Câmara e Orquestra Barroca de Estugarda
Frieder Bernius
2 Cds Carus
Bernius é um intérprete que se aproxima da figura do “kapellmeister” na tradição da Igreja Reformada. Não surpreende assim que a sua concepção da grande obra segundo a liturgia latina de Bach seja de uma sobriedade alheia as noções de monumentalidade e também de fervor. Nesses termos, é uma interpretação austera, que não propriamente retida: sem traços de dôr e exaltação (ainda que com algumas passagens bruscas, como o começo do “Cum Santo Spiritus”), a interpretação seduz pela sua ampla respiração.
Quer um Brüggen quer um Herreweghe já sublinharam na Missa em si a sua pura beleza musical e plasticidade. Bernius aproxima-se deles com a não pequena diferença, contudo, que não dispõe de solistas equiparáveis (apenas o baixo Raimund Nolte se distingue), o que não é tanto uma questão de limites intrínsecos (ainda que Daniel Taylor se mostre claramente abaixo das suas capacidades no “Agnus Dei”), mas ainda de concepção: seguindo essa tradição da Igreja Reformada, é antes de mais ao coro, a manifestação da comunidade dos crentes, que cabe a proeminência – ao coro e aos notáveis sopros da Orquestra Barroca de Estugarda ( a flauta no “Benedictus”, os oboés e fagotes no “Et in Spiritum Sanctum”, as trompas e trompetes), bem superiores às cordas, em que apenas se salientam os baixos.
Momentos corais como o “Crucifixus” e o “Et ressurrexit” ou o “Sanctus” e os dois “Osanna” são particularmente notáveis e afirmam lapidarmente a específica luminosidade desta interpretação.
Esperemos agora a chegada ao mercado nacional de mais outra interpretação da Missa em si, e particularmente aguardada: a de Masaaki Suzuki com o Bach Collegium do Japão, que estão a realizar, entre os diversos ciclos integrais de cantatas litúrgicas em curso, a que justifica uma atenção mais continuada.
Árias e trechos de Bellini, Pacini, Persiani, Hummel, Mendelssohn, Halévy, Rossi, Manuel García e Maria Malibran
Orquestra La Scintilla, Adam Fischer
Decca/Universal
Com Maria, disco de homenagem a Maria Malibran, Cecilia Bartoli dá um passo não apenas arriscado, o que na sequência dos àlbuns Vivaldi, Salieri, Gluck e Opera proibita é afinal o que a distingue, mas mesmo eventualmente de uma ousadia excessiva, temerário.
Convirá, todavia, atender a quadros mais genéricos para perceber o âmbito deste passo. É sabido que a reapropriação de certos repertórios, com fundamentação musicológica,
foi e é característica dessa verdadeira revolução interpretativa consagrada na expressão “nova música antiga”, abrangendo o barroco, que depois foi englobando também o classicismo no seu campo de reinvenções interpretativas, e mais recentemente o primeiro romantismo. Prenunciada no recital Live in Italy, a integração da Bartoli neste campo estabeleceu-se desde o Vivaldi Album.
Um dos terrenos particulares de aproximação que tem vindo a ocorrer é o do recital com base no repertório histórico de um cantor. Nicholas McGegan foi no caso o pioneiro, dirigindo o conjunto de quatros recitais de “Arias for...” quatro intérpretes emblemáticos de Haendel: a Durastanti, a Cuzzoni, “Senesino” e Mantagnana. Seguiu-se René Jacobs, de resto atento ao sucesso vivaldiano de Bartoli, no passo excessivamente ambicioso das árias para Farinelli, que propulsou Vivica Genaux, Andreas Schöll retomando o repertório do “Senesino” ou, muito recentemente, Phillipe Jaroussky abordando o repertório de “Crescentini”, em disco ainda não distribuído em Portugal.
Deve também dizer-se que no campo musicológico tem havido estudos sistemáticos de perfis de certos cantores históricos, até para melhor perceber o tipo de “vocalità” que as óperas de facto solicitavam, sendo certo que eram compostas com vista também a intérpretes concretos.
Só por ignorância, snobismo alarve ou facciosismo de tertúlia se poderá pois recusar “à priori” uma proposta como esta agora, sendo para mais conhecidas as muitas e cintilantes provas já dadas por essa intérprete verdadeiramente excepcional que é Cecilia Bartoli.
Tudo isto dito, não é menos que abordar a Malibran, aquela que até à Callas foi por excelência a “diva”, é passo temerário.
Contudo, em termos estritamente musicológicos, o objecto Malibran não deixa de ser dos mais fascinantes, sabendo-se como houve um repertório especificamente seu, com árias escritas só para ela (árias que alguns compositores para ela escreveram para serem interpoladas em óperas de outros) ou particulares versões – caso da chamada “versão Malibran” da Sonâmbula de Bellini, a qual todavia, e apesar da enorme admiração do compositor pela cantora e da sua disponibilidade para proceder a justamentos de óperas suas para os requisitos dela (como no caso dos Puritanos) não deverá ser do próprio Bellini mas de Henry Bishop, facto que o livrete, documentadissimo como sempre nos discos da Bartoli, todavia não refere.
Aos nossos hábitos de audição soará estranho ouvir uma “mezzo” cantar A Sonâmbula, Os Puritanos ou Norma, mas as primeiras grandes divas, Pasta ou Malibran (e foi sobretudo para Giuditta Pasta que Bellini escreveu essas óperas, depois reapropriadas pela Malibran) eram de facto o que hoje designamos de “mezzo”, ainda que com agilidade nos agudos e mesmo sobreagudos, numa tessitura mais próxima dos “castrati contraltini” a que sucederam – e no caso da Norma não há mesmo qualquer dúvida que, contrariamente à tradição instituída, o papel titular é sim mais grave, e não mais agudo, do que de Adalgisa.
É assim todo um repertório que Bartoli revela neste álbum, caso por exemplo das árias de Pacini (que, como um Mercadante, foi um dos importantes autores da primeira geração romântica da ópera italiana, eclipsados por Bellini e Donizetti, e pela rivalidade entre esses) ou, já conhecida esta, da Ines de Castro de Persiani, bem como alguns trechos mais circunstanciais ou de menor relevo musical, do pai Manuel Manuel García, da própria Malibran ou uma ária tirolesa de Hummel.
Mas, evidentemente, os trechos bellinianos são uma vertente axial desta proposta. E se é miraculoso o modo como Bartoli soa etérea na Amina da Sonâmbula ou na Elvira dos Puritanos, já a “Casta Diva” da Norma (com a flauta “obligatta” restaurada) é assaz singular, quase murmurada, e hipnótica nesse murmúrio, mas contudo sem o carácter extático da invocação.
A destreza e a bravura de Cecilia Bartoli são incomparáveis – e que “panache” no Rataplan da própria Malibran! Mas também há passagens de registo pouco conseguidas e sobretudo uma espampanante tendência à ornamentação algo mecanicista dos vocalizos.
A afinação a 430Hz é particularmente confortável para a “mezzo” nestas páginas (e filologicamente pertinente) e são excelentes as cores da Scintilla, o conjunto de instrumentos de época da Ópera de Zurique, dirigido por Adam Fischer.
Supervisando a Bartoli todos os aspectos da operação, também há a dizer que a embalagem de luxo e o marketing do produto têm neste caso aspectos poucos felizes, com os seus dourados, mas sobretudo insistindo num jogo de espelhos Malibran/Bartoli que não deixa de favorecer a leitura mais redutora deste projecto, a de um puro acto de “divismo”, quando é outra coisa, e mais, muito mais que isso.
“A mais tocante e universalmente admirada das cantoras românticas tornou-se, depois da morte, num objecto de culto. Ela é um dos fundamentos do mito da diva”, escrevem Roger Blanchard e Roland de Candé sobre Maria Malibran (1808-1836) em Dieux et Divas de l’opéra (Plon, 1987). De resto, “la Malibran” foi uma figura de tal modo decisiva na configuração de um novo tipo de estética vocal e de apreciação pública dos cantores, que os dois volumes dessa enciclopédica obra a retêm como figura divisória – já que os subtítulos do vol. I são “Des origines au Romantisme” ou “Des origines à la Malibran”.
Há que recordar que o “divismo” foi antes do mais matéria respeitante aos seres fabulosos e monstruosos que eram os “castrati”. Pesem ainda famosos casos de “prime donne”, como as “rival queens” para Haendel, a Bordoni e a Cuzzoni, ou Luisa Todi, os objectos de adoração e delírio foram os “Nicolino”, “Senesino”, “Farinelli, “Cafarelli”, Guadagni, “Crescentini” ou "Carestini".
Com o romantismo tudo mudou, da rejeição do acto castrador, que ficou apenas entregue aos cuidados e à piedade da Igreja Católica Romana, à reconsideração da mulher. O movimento romântico, do mesmo modo que no bailado deu origem aos novos seres etéreos de La Sylphideou Giselle, chorou as desgraças das heroínas de ópera e colocou no pedestal as suas intérpretes – colocou as cantoras, antes do mais.
Mas se houve uma ruptura, e uma ruptura cultural profunda, houve também uma transição: os intérpretes da primeira geração romântica formaram-se ainda no canto rossiniano, isto é, no derradeiro esplendor do “bel canto” ornamentado – donde também o uso da equívoca e mesmo de algum modo contraditória noção de “bel canto romântico”, usado a propósito das óperas de Bellini e Donizetti, os compositores dessa primeira geração, certamente já de estética romântica, embora vocalmente ainda com traços belcantistas.
No caso de Maria Malibran essa formação no canto rossiniano foi mesmo familiar: era filha de Manuel García, nomeadamente o criador de Almaviva no Barbeiro de Sevilha. Um dos momentos mais célebres da carreira da Malibran ocorreu aliás, quando interpretando Desdemona no Otelo de Rossini “morreu” às mãos do esposo despeitado, que não era outro senão o próprio pai, Manuel García.
Mas se foi celebrada cantante rossiniana terá estado longe de ser das mais eméritas. Entre as grandes intérpretes do compositor, e para além daquelas para quem as obras foram directamente escritas, a mais saliente foi Giuditta Pasta (1797-1865), que simultaneamente foi, ela sim, a primeira “diva” romântica, para a qual Donizetti escreveu Ana Bolena e Bellini A Sonâmbula. O próprio Rossini aliás preferia a irmã de Maria Malibran, Pauline Viardot (e ainda houve na escola familiar de canto um irmão, Manuel García Junior), aquela para quem Berlioz fez a versão do Orfeu e Euridice de Gluck que se manteve como norma até muito recentemente, Pauline Viardot, a amiga de Chopin, a amada de Turgueniev.
“Mais, voilá”, enquanto Pasta viveu 68 anos, a Malibran morreu com 28, e era bela enquanto, disse Saint-Saëns, “Madame Viardot n’était pas belle, elle était pire!”. Bela, de vida sentimental atribulada de dois casamentos, dotada de uma voz de “mezzo” incrivelmente extensa de quase três oitavas, atingindo o mi sobreagudo, a Malibran deslumbrava e era adulada. E como “morrem cedo aqueles que os deuses amam”, Maria Malibran sucumbiu depois de um concerto em Manchester. Com ela se fundamentou não tanto o culto mas mais o mito romântico da diva – foi afinal percursora tanto de Maria Callas quanto de Marilyn Monroe.
O mais operático dos realizadores contemporâneos, Werner Schröter, recriou a lenda em A Morte de Maria Malibran (1971), que nada tem de “biopic” (ou não fosse um filme de Schröter), mas que é um admirável gesto passional e melodramático, em que Maria morre junto de Schumann e Liszt, consumida na intensidade do seu canto, do seu canto até à morte.
Está escrito o seguinte no Programa do Governo, de resto o programa com que o PS se apresentou ao eleitorado:
“O compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo, importando retomar a trajectória de aproximação interrompida no passado recente. Ao mesmo tempo, o Governo fixa quatro objectivos complementares: a) desenvolver programas de cooperação entre Estado e autarquias, que estimulem também o crescimento da proporção de fundos públicos regionais e locais investidos na cultura; b) valorizar o investimento culturalmente estruturante, na negociação do próximo Quadro Comunitário de Apoio (2007-2013); c) rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão; d) alargar a outras áreas e, em particular, ao funcionamento dos organismos nacionais de produção artística, o princípio de estabilização de um financiamento plurianual”.
Já nem vou falar da famosa meta de 1% do Orçamento de Estado a qual é mais é que óbvio não ser com este governo, e na presente situação, referência nenhuma, nem a médio nem a longo prazo. Em todo o caso, “Rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão”, era um objectivo de grande importância para as dinâmicas culturais, sabendo-se que tem havido uma preversidade intrínseca em captar os apoios mecenáticos para os grandes projectos, e designadamente para as próprias instituições públicas, em primeiro lugar colmatando os limites orçamentais do Ministério da Cultura.
Ora, na extraordinária página electrónica desse mesmo Ministério da Cultura, nessa em que o último comunicado data de Junho, está há muito em destaque um suposto “Novo Enquadramento do Mecenato Cultural”, que de novo nada tem. Ao lado, muito discretamente, de modo quase oculto, quando na secção correspondente se cliqua em Estatuto, aí sim está a informação real, que é estranho ter passado tão despercerbida:“O Decreto-Lei n.º 74/99, que aprova o Estatuto de Mecenato, foi revogado, tendo os incentivos fiscais à Cultura sido incorporados no Estatuto dos Benefícios Fiscais (Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro)”, isto é, no Orçamento de Estado.
O presente governo, em vez de “rever e regulamentar a Lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão”, fez a mais completa marcha a trás, como se pode verificar pelo clausado legal de Donativo, nos termos do Capítulo X – “Benifícios Fiscais”, Art.º 56- “Noção de Donativo”, D – “Dedução para efeitos do lucro tributável das empresas “, nº6, do O.E.:
“São considerados custos ou perdas de exercícios, até ao limite de 6/1000 do volume de volume de vendas ou dos serviços prestados [até 0,6%, n.b, não vá a dedução para efeitos tributáveis ser mais afectada], os donativos atribuídos às seguintes entidades:
a)Cooperativas culturais, institutos e associações que prossigam actividades de investigação, excepto as de natureza científica, de cultura e de defesa do património histórico-cultural e do ambiente, e bem assim outras entidades sem fins lucrativos que desenvolvam acções no âmbito do teatro, do bailado, da música, da organização de festivais e outras manifestações artísticas e de produção cinematográfica, áudio-visual e lietrária;
b)Museus, bibliotecas e arquivos históricos e documentais;..
Artº 87 -3 – São igualmente revogados: f) O Estatuto do Mecenato, aprovado pelo Decreto_lei nº74/99, de 18 de Agosto”.
Dir-se-á: o Mecenato é um Benifício Fiscal. Certamente que sim. Mas por alguma razão lhe é reconhecido um estatuto próprio, que estava legalmente consignado. Quando era antes preciso criar um quadro alargado de incentivos ao mecenato, com o fim de possibilitar cada vez mais dinâmicas próprias e menos dependentes de apoios estatais; quando era urgente e expresso no próprio Programa do Governo a necessidade de consideração de apoios também a “projectos culturais de pequena e média dimensão”; quando era sim preciso quebrar o ciclo viciado pelo qual até agora, e basicamente, o mecenato tem sido, no fundamental, um complemento financeiro das actividades estatais e não tanto um estímulo a acção autómonas; quando tudo isso era imperioso, o enquadramento legal foi remetido para o regime anual dos Orçamentos de Estado, colocado a níveis em que só pode em termos reais ser minimamente significativo por parte de muito grande empresas.
E é facto da mais patente hipocrisia política que na página electrónica do Ministério da Cultura esteja em destaque um pretenso “Novo Enquadramento do Mecenato Cultural” quando este governo procedeu sim ao fim do Enquadramento do Mecenato Cultural.
Em plena tormenta, o BCP teve pelo menos um momento de reconhecimento, uma comenda mesmo.
No passado dia 12, a ministra da Cultura, Profª Isabel Pires de Lima, teve à noite uma agenda preenchida: antes de se dirigir à Gulbenkian, para a ante-estreia de Cristovão Colombo – O Enigma de Manoel de Oliveira, nos 99 anos do cineasta, foi à Gala do Millennium BCP, “Mecenas Exclusivo do Teatro Nacional de São Carlos”, galardoar a instituição bancária com a medalha de Mérito Cultural, “pelo seu contributo para o reforço do tecido cultural e a formação de públicos em Portugal” – e essa foi a razão, de imperiosa agenda, pela qual ficou adiada para o dia seguinte a inauguração da nova livraria Byblos. Com o acto de medalha, quis o Ministério da Cultura, esclareceu o próprio em comunicado, prestar uma “simbólica homenagem a uma entidade empresarial privada que coloca a Cultura no centro da sua participação cívica”.
O Millenium BCP constitui um caso particularmente relevante de mecenato, nalguns casos até com uma presença que, embora por responsabilidades compartilhadas, se torna agressiva: que páginas de cultura e crítica no caderno Actual do “Expresso” tenham o patrocínio de uma instituição financeira é facto por demais insólito. Ainda assim, é óbviamente mais que desejável a existência de mecenas, e não só por motivos financeiros – tudo o que fôr no sentido de diminuir a estrita dependência do aparelho burocrático do Ministério da Cultura é auspicioso. E os casos prosseguidos e bem sucedidos de mecenato devem tanto mais ser assinados quanto não são de votar ao esquecimento contra-exemplos, como o fim dos Concertos PT/ Em Órbita, que eram um sucesso, e que a empresa então presidida por Miguel Horta e Costa decidiu abruptamente acabar.
Mas a comenda, há que dizê-lo, teve o seu quê de hipócrita, e tanto mais nas circunstâncias em que foi entregue, a Gala do “Mecenas Exclusivo”.
O Millenium BCP é o mecenas principal de actividades do Ministério da Cultura, e tanto mais o é este ano, num apoio que atinge os 2 milhões de euros: a 1 milhão para o São Carlos e 600 mil euros para o Museu Nacional de Arte de Antiga e 200 mil para o Soares dos Reis, objectos de protocolos, acrescem 200 mil euros, mais outros 200 mil a serem entregues em Janeiro, para a “jóia da coroa” de Isabel Pires de Lima, a exposição do Hermitage.
Sem o apoio do Millenium BCP, o regular funcionamento do São Carlos, como de resto o novo dinamismo que o Museu de Arte Antiga teve durante a direcção de Dalila Rodrigues, seriam sériamente afectados. Isso não obsta a que a fórmula de “mecenatos exclusivos” para as grandes instituições públicas, criada na parte final do consulado de Manuel Maria Carrilho, dando ainda estabilidade de financiamento, seja bastante problemática, quando não seriamente contestável.
Até por ter ocorrido no São Carlos o exemplo original convirá atentar ao caso. Em 1993, tinha sido criada a Fundação de São Carlos, entidade de direito privado e utilidade pública, em que ao Estado estavam associadas empresas como a RTP, RDP e PT. É um facto que a Fundação estava falida e era largamente uma entidade fictícia. Ainda assim, a “re-estatização” do Teatro, pelo Decreto-Lei 88/98 (que vigorou até à recente criação da aberrante OPART E.P.E. pelo Decreto-Lei nº160-2007 de 27 de Abril), de resto no momento em que a tendência de grande parte dos teatros congéneres europeus ia no sentido precisamente da transformação em Fundações, colocava problemas entre a exacerbada retórica do diploma e as limitações de dotação orçamental, ou seja, a necessidade de, não obstante, encontrar parceiros externos. Carrilho encontrou esse parceiro no BCP e o mecenato teve um preço – a gala anual reservada do “mecenas exclusivo”, isso que é como a récita comprada por uma empresa, verdadeira singularidade que desconheço em qualquer outro teatro público de ópera.
Ressalvando devidamente que o Millenium BCP é um caso relevante de actividade mecenática, não deixa de ser deveras extraordinário que a senhora ministra da Cultura tenha ido medalhar a instituição com o Mérito Cultural designadamente “pelo seu contributo para a formação de públicos em Portugal” numa récita para público exclusivo e, de resto, numa instituição, como o Teatro Nacional de São Carlos, onde a formação ou renovação de públicos vai sendo nenhuma, antes pelo contrário (e sei do que falo, porque também frequento outros teatros de óperas), e isto até quando o superintendente-geral, o secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho, tem como tese de doutoramente um estudo sobre “O Teatro de São Carlos na mudança dos sistemas sociocomunicativos desde fins do séc. XVIII aos nossos dias” – a precisar por certo de urgente opúsculo complementar.
Mas o o mais grave, e que cabe assinalar à margem desta medalha de Mérito Cultural, é que as políticas governamentais no sentido do enquadramento do mecenato estão cada vez mais afunilada com um único fito: conseguir dos privados as verbas complementares às próprias actividades do Ministério da Cultura. E tanto mais é assim quanto, quase sem ninguém se aperceber, e contrariando uma vez mais as perspectivas enunciadas no próprio programa do Governo, sucedeu antes ter sido revogado o Estatuto do Mecenato. A ministra da Cultura medalhou o “mecenas exemplar” quando neste momento, à face da lei, “mecenas” é coisa que não existe.
Quando seria elementar que as próprias condições de “transição” administrativa e de direcção artística, por si só, recomendassem alguma prudência no desenho da estratégia de acção a prazo do teatro nacional de ópera, a tutela não deixa de fazer saber quem traça os planos e com que escala.
Ainda nada se sabia da temporada, já o secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho, o autor directo do “golpe”, que o foi inclusive em clara contravenção do próprio programa deste Governo, que expressamente previa o reforço da autonomia das direcções artísticas dos teatros nacionais, já ele anunciava uma “excelente temporada”, afinal assim confirmando que o São Carlos era de sua directa intendência.
Com o “dirigismo” instituído veio também a irresponsabilidade da mania das grandezas, que afinal vai de par com a fotografia do poder, a da própria governação da Ajuda, que se colhe de uma operação tão lamentável e dispendiosa como a exposição do Hermitage ora aí mesmo patente.
Para memória futura, deve pois ser devidamente sublinhado esse outro grande projecto anunciado pela Profª. Isabel Pires de Lima, na entrevista ao “Notícias Magazine” de 16-09-07: “Gostava de ver lançado um grande festival ligado à ópera, os termos ainda não estão bem definidos. Teríamos de criar um festival de ópera que fosse o último da temporada europeia. Uma coisa que poderia ter poderia lugar no mês de Setembro, com produção do Teatro Nacional de São Carlos, mas realizado em vários espaços ao mesmo tempo e eventualmente em espaços ao ar livre, para isso já tive um encontro com o presidente da câmara. Tivemos uma audiência muito frutuosa”.
Habituámo-nos em Isabel Pires de Lima àquele inconfundível estilo de uma professora catedrática incapaz de dizer uma frase correctamente articulada em português, com princípio, meio e fim. Mas que ela gostava de ver lançada “uma coisa” que seria um grande festival de ópera, o último da temporada europeia, em Setembro (após o fim de Salzburgo, Bayreuth e Glyndebourne), isso é indesmentível.
Seria caso para dizer que se trata de uma cena “buffa”, não soubessemos também já que a ministra da Cultura se toma muito a sério, e que não teria iniciado as diligências (que não se imagina como poderão ter provimento junto da Câmara da Lisboa, na situação financeira em que se encontra) se o projecto não fosse oriundo do próprio intendente-geral dos teatros nacionais e da Opart, o secretário de Estado Vieira de Carvalho.
Enquanto no concreto palco do São Carlos se assiste por ora a um vazio de perspectiva, o “dirigismo esclarecido” de Suas Excelências atinge o ponto de delírio de se imaginarem príncipes de “um grande festival de ópera que fosse o último da temporada europeia”, eventualmente até em espaços ao ar livre, talvez junto ao rio, qual nova Òpera de Tejo, como a de D. José que o terramoto destruíu.
O desastre que ocorre quando se desconhece que do outro lado da negociação está um dos mais agressivos parceiros do novo capitalismo global dos museus, e a miséria tristemente representativa das mais retrógradas concepções artísticas e culturais ora patente na Ajuda -mas se miséria em termos de exposição, dispendiosissíma pelos termos incautos da negociação -, é o tema do crónica O Estado da Arte deste mês, em www.artecapital.net.
O afastamento abrupto de Paolo Pinamonti da direcção do São Carlos e a sua substituição por Christoph Dammann, em Março transacto, criaram uma situação à beira do abismo, por razões estruturais, que em muito ultrapassam a consideração de méritos: criaram um vazio a sete meses do início de uma nova temporada – e falo genericamente da temporada, e não apenas em particular da ópera.
Que em tão curto espaço de tempo não seria possível mais que um arremedo, era facto desde logo pressentível, evidente para qualquer pessoa minimamente conhecedora, e que apenas o não foi para o ilustre doutorado na história do mesmo Teatro Nacional de São Carlos, o Prof. Mário Vieira de Carvalho, secretário de Estado da Cultura do presente governo socialista, que com os notórios tiques do seu dirigismo cultural de matriz estalinista quis acrescentar mais uma peça à área de directa intendência, mesmo que por interpostos Opart e Dammann – uma peça para ele crucial.
Quem, tendo experiência, e até de direcção de teatros, aceitou o cargo nestas condições, isto é, Dammann, não podia desconhecer os drásticos limites de acção decorrentes de tão precipitada substituição. Cabe-lhe portanto a devida quota-parte de responsabilidade directa pelo que entretanto vai ocorrendo, não esquecendo quem é o responsável principal.
Diga o que disser o ilustre “compositeur portugais” Emmanuel Nunes, que foi parte integrante e desabrida do golpe em São Carlos, na presente temporada resta do planeamento devido ainda a Paolo Pinamonti a estreia em Janeiro da sua ópera, Das Märchen – a qual há razão para aguardar com motivos tantos mais acrescidos à medida que as peças preparatórias, as Épures du serpent vert, têm vindo a ser apresentadas em concerto. Mas entre o que mais resta figura também, e há que perceber em que condições, este Rigoletto -sim, “este” Rigoletto! E depois, quase tudo o resto, é fruto de acasos e imprevistos.
A questão real, por certo agravada e muito pelo golpe dirigista, mas que se coloca para além de directores artísticos e é estrutural, a questão real é a de saber como é possível um bicentenário teatro nacional de ópera ter as temporadas recorrentemente confirmadas só em cima de hora, ou seja, sem um efectivo trabalho de planeamento a médio prazo, com os compromissos devidamente assumidos e para serem cumpridos. Esta é, frise-se, a questão estrutural – a que tem vindo a dificultar, quando não mesmo menorizar, o relevo do São Carlos no circuito internacional dos teatros e do “show-business” da ópera, com as devidas consequências também de valias artísticas.
Christoph Dammann, que aliás ainda está em funções também como director da Ópera de Colónia, tem os suficientes contactos que possibilitaram, em curto espaço de tempo, a vinda de uma Vesselina Kasarova, num concerto bastante equívoco mas com alguns belos momentos de canto, e em rigor de “bel canto”, e de uma das máximas duplas de “lied”, Cristoph Prégardien e Michael Gees, de quem fica a recordar-se uma interpretação modelar do ciclo A Bela Moleira de Schubert. São factos que é devido serem registados e salvaguardados.
O pior, infelizmente, é o que se vai acumulando. Nem vou falar, porque nem tive a curiosidade mínima de assistir, ao concerto em que o tenor José Cura dirigiu (sim, dirigiu) a Sinfonia nº9 de Beethoven. Acontece que por duas vezes sucessivas ouvi maestros que não faziam a mais pequena ideia do repertório e das obras concretas que estavam a dirigir, Cornelius Meister no tal concerto “Do Barroco ao Bel Canto” com a Kasarova, e agora este infausto Alexander Polianichko no Rigoletto. Acontece também que, mesmo admitindo que Chelsey Schill estivesse em especial infeliz na noite em que a ouvi interpretar Gilda, é manifesto que raia o absurdo promover a jovem soprano a solista residente do Teatro, a única depois do desaparecimento do prometido barítono Ernesto Morillo, cantando em ópera após ópera – tal como foi absurdo programar, no mesmo concerto “Do Barroco ao Bel Canto”, ao lado da Kasarova e de José Fardilha, as sopranos Carla Caramujo e Sara Braga Simões, facto que se revelou injustamente traiçoeiro para as próprias.
Depois há a questão das encenações e das produções, afinal também a da ópera como teatro musical, como tanto insiste no seu magistério o Prof. Vieira de Carvalho. Há questões estruturantes, que eram supostas estar devidamente esclarecidas mas às quais, pelos vistos e infelizmente, se retorna. Por exemplo a das produções alugadas e das condições de co-produções.
Um caso como o da Tosca, encenada por Robert Carsen, que virá da Ópera da Flandres, é manifestamente de “produção alugada”, sendo que, com toda a probabilidade, virá um qualquer assistente. Já este Rigoletto, que acabou por vir a ser montado no São Carlos também por uma assistente (e logo a também responsável pela “coreografia”, pelas perninhas das coristas de “cabaret”, Nuria Castejón!), era de raíz uma co-produção entre o Associação de Bilbao e o São Carlos, e aliás também a Semperoper de Dresden (gentilmente não referida ora no programa). E portanto sejamos claros, o seu a seu dono: a aposta nesta malfadada encenação foi ainda de Paolo Pinamonti com Emilio Sagi, pois que a co-produção estava devidamente anunciada em Outubro de 2006, estava ele em funções, quando da estreia em Bilbao.
Mas se tal facto deve ficar registado, também outro dado é devido: na continuidade do trabalho que vinha desenvolvendo em Lisboa, era Donato Renzetti o maestro previsto, tendo-o já sido inclusive na estreia em Bilbao. Ora, infeliz e incompreensivelmente, Renzetti acabou por ser “saneado” na sequência de Pinamonti – e o preço de o substituir pelo infausto, impreparado e incompetente Polianitchko estão à vista, ou antes, gritantemente audível.
Repito: o Rigoletto ora em cena no São Carlos é lamentável. E para além do facto em si mesmo, não deixa de constituír também uma preocupante confirmação de que esta temporada é de facto um arremedo, por obra do “dirigismo esclarecido” da governação da Ajuda.