Na mesma manhã da passada segunda-feira, em que o dislate de Rui Moreira chegava à comparação de posições críticas com a Stasi da defunta RDA evocada em As Vidas dos Outros, Eduardo Pitta punha em linha um “post”, que seria “resposta a uma leitora, M., filha de portugueses, nascida na antiga RDA, que tenta acompanhar o que se passa no nosso país, e tem dificuldade em perceber [«sinceramente não entendo»] os mecanismos de recepção cultural nos jornais e nos blogues”.Veja-se só a coincidência, ou a falta de imaginação no pretexto do argumentário...
Eu pratico a nomeação e o confronto directos, não a insinuação, mas sendo esta tão óbvia, aproveito então a oportunidade para também enunciar um ponto prévio, esclarecer uma regra e suscitar desde já alguns tópicos de reflexão.
Quero dizer em primeiro lugar que poucas coisas são para mim tão insultuosas como qualquer comparação com a RDA. Lembrar-se-ão alguns que, emocionado no momento da queda de Bagdad, que comparou ao 25 de Abril, o director do “Público”, José Manuel Fernandes, citou dois cépticos, Ana Sá Lopes e eu próprio, dizendo que estariam “com cara de comunistas na queda do Muro de Berlim”. Respondi-lhe dizendo também que o dito era tanto mais insultuoso quanto ele me conhecia o suficiente para saber o que directamente significou para mim a Queda do Muro, tanto que persisto em considerar em termos da minha vivência pessoal o 9 de Novembro de 1989 como a segunda grande data depois do 25 de Abril de 74.
Quanto a regras , aproveito para devidamente reiterar o seguinte: na apresentação desta página está escrito: “É isto um blog? Tecnicamente sim, mas o seu intento é outro. Letra de Forma será uma página de crítica e opinião, prosseguindo no espaço digital aquela que foi a minha actividade na imprensa ao longo de muito anos, (...) interessando menos, mesmo muito pouco, algumas das interacções características da blogosfera”. Entre outras razões, sou suficientemente leitor de blogues para me têr imposto como regra tentar evitar o imediatismo e os despiques taco-a-taco.
Mas sou suficientemente leitor de blogues para também acompanhar de há muito, entre outros, o Da Literatura e o que nele escreve Eduardo Pitta. Começando por dizer que, desde um post que foi o primeiro a fundadamente contestar a possibilidade do suposto “arrastão” a vários outros sobre uniões de facto, etc, apreciei com relevo muito do que escreveu. Mas também o leio o suficiente para tomar nota que, entre percursos na restauração, receitas finas e divagações sobre “hotéis de charme”, por um lado, e um impetinente tartufismo socrático que dele tem feito um dos mais destacados reprodutores do actual discurso governativo na blogosfera, Eduardo Pitta nos tem fornecido abundante material para se proceder a um “close reading” – retomando uma designação por ele tão apreciada.
Acho portanto que há de facto matéria para discutir os “mecanismos de recepção cultural nos jornais e nos blogues” de que ele fala, sem outras considerações extravagantes.
No caso de Eduardo Pitta, mas também em muitos outros, diga-se, o que a blogosfera me permitiu verificar foi a persistência de uma “norma literária” como critério genérico de apreciações artísticas e culturais (com as suas implicações também no que toca aos discursos sobre políticas culturais, diga-se). Mais: constatei nomeadamente, em Pitta e noutros bloguers que aprecio, que não só são em geral poucas as suas concretas referências fora do campo literário, como a exigência que têm nesse campo se desvanece quando das idas ao cinema. Esse é um primeiro ponto, genérico.
Mas acrescento que no caso particular de Pitta, da “cena literária” e do “milieu” que representa, há uma suplementar restrição, marcadamente de classe, bem manifesta na sua expressão de “uma certa Lisboa, entre a Versalhes e o Campo Grande”. Esta inscrição social matiza também ela consideravelmente alguma sua suposta “heterodoxia”. Mais: de par com isso há um abuso de posição que chega mesmo a roçar o arrivismo; um exemplo foi a crítica no “Público” ao estudo de Vasco Pulido Valente sobre Paiva Couceiro, matéria sobre a qual se desconhecem as competências de Pitta – e qualquer prática crítica supõe questões de competência.
Assim quando ele escreve que “Lá onde o outro [o marxismo] se estribava no partido, o de agora tem o respaldo do Estado, sob várias ramificações: ministérios, institutos, empresas do sector público com nicho cultural (e sinecura correlata), universidades, etc. (...) Zelando pelos respectivos interesses, os novos capatazes defendem com fervor de alucinados aquilo que tomam por reserva sua. É-lhes intolerável qualquer resquício de intromissão heterodoxa”, há a notar que reitera essa tão anacronicamente literata noção que os outros campos artísticos e culturais, que pelas suas condições de produção exigem muitas vezes outros meios e aparatos institucionais, são necessariamente palcos de interesses e só desses (o que tem feito repetido dizer disparates sucessivos em matérias como a existência do Ministério da Cultura ou, mais grave ainda, o que escreveu sobre a crise do São Carlos); mas também tenta sonegar o que de “interesses” haverá no “milieu” que frequenta e representa, como em qualquer outro meio.
E quanto a “novos capatazes” suponho que Eduardo Pitta deveria ter algum cuidado no que diz. Não tem ele reiterado uma norma do romance que, vigilante dos outros, o fez nomeadamente escrever de modo de todo despropositado, embora sempre se insinuando “trendy”, “em que outro país Rui Nunes e Mafalda Ivo Cruz seriam considerados romancistas”? Abordando de modo pioneiro a condição homossexual na literatura portuguesa, não tentou ele também formular uma norma ao excluir o mesmo Rui Nunes ou, extravagantes e insultuosas mesmo, nas considerações sobre o modo como Eugénio de Andrade teria manifestado ou contornado essa condição na sua poesia?
Sendo estas questões não só de “mecanismos de recepção cultural nos jornais e nos blogues”, mas mesmo também de hegemonia de discursos críticos e até de abusiva constituição de um cânone restrito, elas ficam pois aqui enunciadas, para além de imediatismos de resposta que não me interessam.
A propósito da observação que aqui fiz ao título português de Das Leben der Anderen referido por Rui Moreira (“Depois de ter lhe sugerido Call Girl, recomendo, caro leitor, que não deixe de ver As Vidas dos Outros, um magnífico produto do novo cinema alemão, disponível em DVD”), um leitor atento, a quem agradeço, chama-me a atenção para que nesse particular estou errado: tal como Moreira escreveu o título é mesmo As Vidas dos Outros.
Não deixa de me ser intrigante que só nas presentes circunstâncias me tenha apercebido do facto, pois que para além de “A Vida dos Outros” me parecer uma tradução mais correcta, tenho a noção de que nas muitas conversas tidas sobre esse filme a regra foi falar de “A Vida...”. Como é óbvio, para quem não viu o filme em sala e apenas o descobre agora na edição em dvd, As Vidas dos Outros é título directamente estampado no objecto, de capa acima reproduzida.
Em qualquer caso, é devido a rectificação com as devidas desculpas – e desculpas também a Rui Moreira, por no caso ser descabida a observação que fiz.
Entretanto, faço notar também que em carta hoje no “Público” há uma resposta de José Vieira Mendes, “Jornalista, crítico, membro da bolsa de jurados do Instituto de Cinema e Audiovisual”, editor da finita “Première”.
Por ironia, a resposta directa a Rui Moreira no jornal em que vem publicando tais dislates partiu de um entusiasta confesso de Call Girl. E diz ele:
“A propósito do artigo de opinião do dr. Rui Moreira, intitulado ‘A revolta dos boys’ (14 de Janeiro), venho por este meio afirmar que sou um dos boys a que ele se refere. (...) Não vejo razão para o dr. Rui Morteira pôr tudo no mesmo saco e inclusive nos chamar ‘batoteiros’ e fazer muitas considerações levianas de um mercado que se vê conhece apenas por fora. Sou efectivamente um dos boys ou dos críticos que têm assento nos júris. (...) Ora bem, em primeiro lugar a bolsa de jurados do ICA - Instituto de Cinema e Audiovisual - é constituído por diversas personalidades de destaque e não só por críticos cinematográficos. Lugar esse a que o dr. Rui Moreira se pode candidatar, mas não sem antes ler a lei do cinema e a regulamentação de apoio à criação cinematográfica, e tirar todas as dúvidas relativamente aos critérios com que os membros do júri têm que se reger e que eliminam qualquer probabilidade de batota ou interferência directa na selecção deste ou daquele filme. Por último, regozijo-me também pelo dr. Rui Moreira ter gostado muito do filme alemão As Vidas dos Outros, o que demonstra nele uma certa cultura cinematográfica e não só de filmes americanos. Mas apenas por mera curiosidade, As Vidas dos Outros fez apenas, e apesar de ser um grande filme, 15.000 espectadores nas salas portuguesas em 2007 (...). Portanto, algo se passa, mas a culpa não é dos críticos, nem só do cinema português”.
Gostaria apenas de acrescentar, sem qualquer ironia, que me apraz registar que José Vieira Mendes diga também, referindo-se a mim, que “acho que ele há muito tempo não representa a opinião geral da crítica cinematográfica”. Não só já expliquei suficientemente que nada tenho a ver com qualquer “corporação crítica” e quão distante estou da generalidade da que hoje se pratica na imprensa portuguesa, como não pretendo “representar” nada, e também porque entendo, e volto ainda uma vez a afirmar, que uma situação tão esmagadoramente hegemónica e “fazendo opinião” como a que tivemos no “Expresso – A Revista” nos anos 80, com o deserto à volta, nada tem de salutar – e inclusive constituíu uma das razões porque fui um dos que se votaram ao processo de fundação de um outro jornal.
Como o ilustre Presidente da Associação Comercial do Porto e comentador futeboleiro na sua recarga dispara em várias direcções mas quase só contra mim – e contra esta página, que não nomeia – investe, sou forçado a concluír que além de pessimamente informado, padece não só de demagogia e populismo rasca, como já se tinha notado, mas também de dislexia profunda.
Em primeiro lugar, estou completamente fora de qualquer sistema de atribuição de apoios do Instituto da tutela há tempo que baste – desde 1989, para ser preciso. Mais: pelas razões que invoquei, sou profundamente crítico do modo como esse sistema se tem vindo a processar. Não me ofende quem quer, nem quem insinua gratuitamente, e Rui Moreira pode mesmo chamar-me “situacionista” (o que é uma originalidade), que não me atinge.
É-me totalmente indiferente que Rui Moreira goste ou não de Call Girl. Nunca foi isso que esteve em causa, nem expressei qualquer opinião sobre o filme; era o que faltava pôr-me a discutir “o gosto dos outros” (para citar o título do inteligente filme de Agnès Jaoui, bem mais sério aliás do que o possa aparentar), o que de resto colidiria com os meus princípios de respeito da autonomia individual. Em matéria de apreciações cinematográficas, estou aliás mais que habituado a ter opiniões minoritárias, e mesmo a ser vituperado por algumas delas, com a ironia de suceder algumas com o decorrer do tempo passarem a ser até da “doxa”, caso por exemplo das continuadas defesas que fiz de Clint Eastwood e David Cronenberg – já agora, e porque veio à colação, oh críticos, oh tempora, oh mores, também posso acrescentar a tudo o que já escrevi que, se não fosse a consagração crítica que teve na Europa, nunca Eastwood teria sido reconhecido nos Estados Unidos e obtido Óscares, e já agora também, porque se pode estar a falar em “mainstream” sem saber do que se fala, que um filme como Million Dollar Baby esteve em risco de não existir porque a Warner não o queria produzir - e depois até teve o Óscar de melhor filme.
O que estava e está em causa é sim: 1) a total impunidade e leviandade de opiniões impressas absolutamente irresponsáveis, como a do artigo “Call Boys” de Rui Moreira, isto é, um abuso do espaço público, que descrebiliza o debate e o confronto de ideias, o que cada vez mais é um não pequeno problema da imprensa portuguesa e, 2) que o argumentário de Moreira se baseava num conjunto de falsificações históricas, coisa a que ele não responde. Insinuar que o actual sistema de apoios do Estado, por distorcido que seja (e eu acho que devia ser quase integralmente repensado) prossegue um hipotético “dirigismo” directo do tempo da ditadura, é nomeadamente dizer que Manoel de Oliveira, Fonseca e Costa, Cunha Telles, Paulo Rocha, António de Macedo ou Sá Caetano (cineastas que, como referi, integravam o único plano de produção do então IPC anunciado ainda antes do 25 de Abril), para apenas citar os vivos, foram “cineastas da ditadura”, insulto demasiado absurdo para que quem o enuncia tenha a menor das credibilidades na discussão.
E eis que, da reserva de argumentos, Rui Moreira ressuscita o fantasma de Branca de Neve de João César Monteiro, e fá-lo saltar do banco e entrar em campo. Certamente que o filme que foi realizado não correspondia ao projecto aprovado, tecla todavia mais que gasta, uma vez que as questões decorrentes foram devidamente resolvidas, tanto quanto se sabe e é público, entre o produtor do filme e o Instituto. Eis, no entanto, e isto sim importa, que o emimente comentador futeboleiro e nessa qualidade colega de painel de António-Pedro Vasconcelos, o realizador da dama de Moreira, Call Girl de seu nome, vem a propósito dizer que “o cinema ‘autista’ (...) não pode esgotar os subsídos” – mas que despudorada invenção factual é esta?
Com todos os vícios do sistema de atribuição, que eu mais uma vez sublinho achar que existem, não têm tido apoios cineastas tão diversos, melhor dito, realizadores (e com eles, produtores) tão diferenciados na sua concepção de cinema como Manoel de Oliveira, Fonseca e Costa, Fernando Lopes, António-Pedro Vasconcelos, João Botelho, Joaquim Leitão, Pedro Costa, Teresa Villaverde, Leonel Vieira, João Pedro Rodrigues, etc, etc? Grave seria de facto se tal não sucedesse - mas sucede.
Do mesmo modo lembrarei que, de facto, inquisidores também não faltam. Se Rui Moreira entendeu ressuscitar o caso de Branca de Neve, será útil recordar-lhe que, a propósito, uma campanha contra João César Monteiro foi depois lançada por uma das associações de realizadores, aquela onde pontifica Vasconcelos, tendo o porta-voz sido José Carlos Oliveira. Que eu saiba, Um Rio, o filme seguinte do mesmo Oliveira, José Carlos, que extraordinariamente até teve apoio do tão anti-subsidíodependentes Rio, Rui, foi, por exemplo, um desses filmes que passaram sem deixar qualquer rasto; claro que se destinaria a um vasto público...
Quando Rui Moreira escreve que “não se pode disponibilizar apoios, lavando, depois, as suas mãos, desresponsabilizando os agentes que beneficiam de subsídios a fundo perdido, que fazem filmes totalmente pagos por esse dinheiro público e que não são auditados nem escrutinados por ninguém”, e ressalvando que o “totalmente” é inexacto, eu, o tal “insultador situacionista”, acho que isso sim, como tudo o que envolve a atribuição e gestão de verbas públicas, é uma questão séria. Acontece que, de certeza, como poderia saber Rui Moreira acaso soubesse do que fala em vez de ser mero megafone, se há alguém que desde há muito tempo insiste nesses aspectos, pois é este mesmo “situacionista” (pensando bem, é tão grotesco que acabo por achar imensa graça ao epíteto), já desde 1984, como está publicamente registado, coisa que nomeadamente à época me valeu os ataques do costume, imagine-se que na altura a dupla do contra-ataque sendo constituída por António-Pedro Vasconcelos e João César Monteiro!
Mas quando Moreira passa dessa questão, real e importante, para proclamar que os filmes não seriam escrutinados por ninguém “a não ser pelos críticos que têm assento nos júris e depois promovem os filmes e abatem os filmes e os cineastas que ousam afastar-se e enfrentar a sua ‘linha justa’”, o salto é de tal modo disléxico, e sem qualquer espécie de base factual, que só a paranóia do mais rasteiro populismo anti-intelectual de que os seus dois textos são perturbante sinal pode explicar tanta asneira – e estou tanto mais à vontade para o dizer quanto, insisto, há 17 anos que não integro nenhum júri do Instituto e nada, mas nada tenho a ver com qualquer “corporação crítica”.
Acontece ainda que, qual pescadinha de rabo na boca, se o argumentário soprado por Rui Moreira recuava históricamente a uma falsificação sobre as pretensas características “dirigistas” herdadas da ditadura, termina com outro insulto político, tão extravasante quanto grave: a comparação com a RDA e a Stasi evocadas em A Vida dos Outros (e não “As Vidas dos Outros” como ele escreve, sempre pertinente e fundamentado). Eu conheci a RDA, e essa é uma memória de que tenho particular horror, tanto maior quanto verifico que até há nostálgicos que tentam prosseguir políticas que lá os fascinaram. Rui Moreira não sabe do que fala e na sua total irresponsabilidade não faz de facto a miníma ideia, ao usar um argumento tão gratuito, do que é valor da liberdade face a aparelhos totalitários. E assim, portanto, conversa acabada – homens livres têm opiniões próprias, não sopradas e abusivas.
Como esperava, a minha crónica sobre cinema suscitou a ira dos que se sentiram visados. Augusto M. Seabra, no seu papel favorito de insultador situacionista, foi um dos que espumaram e a chamaram rasca. Não faltaram os comentários jocosos, ligando-me ao futebol (de que só os indigentes e incultos gostam e falam), invocando que sou presidente da Associação Comercial do Porto (que julgam ser de horríveis comerciantes) e apelidando-me de "empresário" (que é, para eles, sinónimo de ignorante e imbecil). Distorceram, claro, o que escrevi, sugerindo que só poupei Oliveira pela sua vetusta idade, que não sei o que é "cinema de autor", que não reconheço a diferença entre qualidade e bilheteira.
Essa reacção sistémica dos zelosos boys e dos auto-intitulados especialistas perante a denúncia que fiz do ciclo vicioso instalado e do clientelismo que afecta e infecta a crítica cinematográfica, é tão patética como compreensível. São eles, afinal, quem tem, e quer manter, o poder. São eles quem colhe os privilégios de dominar os júris e de determinar, através da selecção e, mais tarde, da crítica, quem filma e quem não filma. Naturalmente, não lhes convém que gente como eu se atreva a discutir esses critérios ou se aventure, sequer, a escrever que gosta de um filme como Call Girl, que, segundo o inquisidor Pedro Costa, tem o triste condão de entusiasmar os burgueses por uma mulher fatal...
Acontece que não me conformo com esta sina do nosso cinema e não me deixo intimidar pela pabulagem dos batoteiros. Entendo que o Estado deve regular e estimular o cinema português (e não apenas o mainstream) de forma responsável. Não se pode limitar a disponibilizar apoios, lavando, depois, as suas mãos, desresponsabilizando os agentes que beneficiam de subsídios a fundo perdido, que fazem filmes totalmente pagos por esse dinheiro público e que não são auditados nem escrutinados por ninguém; a não ser pelos críticos que têm assento nos júris e que depois promovem as suas escolhas e abatem os filmes e os cineastas que ousam afastar-se e enfrentar a sua "linha justa".
Não me incomoda, por exemplo, que César Monteiro tenha tido uma crise de inspiração ou de fotofobia ao realizar Branca de Neve. O problema é que o subsídio que recebera destinava-se a um filme convencional (com cenários e guarda-roupa), que o cineasta nunca realizou. Este cinema "autista", que despreza o público em nome da ideia romanesca de que o artista é um incompreendido, não pode esgotar os subsídios e estes não lhe podem ser atribuídos por falsos pretextos e pelas piores razões.
Depois de ter lhe sugerido Call Girl, recomendo, caro leitor, que não deixe de ver As Vidas dos Outros, um magnífico produto do novo cinema alemão, disponível em DVD, que retrata o dirigismo da produção artística. Nesse caso, é certo que o dirigismo é político, mas verá que se assemelha, pela corrupção que fomenta e pelos resultados que produz, ao dirigismo estético que continua em voga entre nós e que tem, nesta gente que incomodei, os seus Stasi de serviço. A esses, prometo-lhes que voltarei, em breve, a este tema.
Sobre o comentário à subscrição por parte do crítico literário e blogger Eduardo Pitta do panfleto anti-críticos de Rui Moreira, recebi o seguinte mail:
José Augusto Seabra,
Se não erro, não nos conhecemos de lado nenhum, nem temos amigos comuns. Tem V. o direito a criticar o que escrevo, em livros, artigos, recensões, posts, etc. Igual direito me assiste. Mas não lhe reconheço capacidade para me classificar como «socialaite», seja lá o que isso for, ou a presumir em letra de forma que me considero «cosmopolita». Que «saber» é esse? Acaso privou alguma vez comigo para ter chegado a essa conclusão? Deduz a partir do que lê? Mas então e a distância crítica? Tenha lá as discordâncias que quiser, mas deixe-se de avaliações levianas.
Eduardo Pitta
Para além do erro na nomeação do destinatário, o direito de resposta será devidamente observado nesta página.
Já quanto a tratar-se de “avaliações levianas”, isso é facto que, num blogue designado por Da Literatura, poderá nomeadamente ser verificado aqui ou, continuando nas apreciações cinematográficas, e restringindo-me a essas, nos tais fotogramas à Manoel de Oliveira que existiriam em Corrupção.
Para se poder ter uma completa noção do labor e actividades do poeta, ficcionista, ensaísta e crítico literário do jornal “Público” ver www.eduardopitta.com , com realce para a detalhada cronologia.
Ontem estreou em Lisboa, no Teatro Municipal São Luiz, o brilhante e divertidíssimo Evil Machines, que o autor do texto e encenador, o celebrado Terry Jones, que integrou os Monty Python, refere mesmo como “ópera”, o compositor Luís Tinoco mostrando-se mais circunspecto na caracterização, correctamente a meu ver. Fique pois a designação que consta do próprio espectáculo, “fantasia musical”.
Em breve, no próximo dia 25, ocorrerá a estreia em São Carlos de Das Märchen de Emmanuel Nunes. Lá mais para o fim do ano, aguarda-se na Culturgest a nova ópera de António Pinho Vargas, com libreto de José Maria Vieira Mendes.
Mas note-se também o que ocorreu ao longo do ano passado, ou para usar critérios mais pertinentes, no ano passado e no decurso da temporada anterior, 2005/2006, isto é, nos últimos 16 meses.
Sucessivamente estrearam: A Little Madness in the Spring, um tríptico de Pinho Vargas, Frédéric Durieux e ìris ter Schiphorst; Itinerário do Sal de Miguel Azguime; Reset de Vasco Mendonça; A Montanha de Nuno Côrte-Real e Metanoite de João Madureira; O Rapaz de Bronze, também de Nuno Corte-Real; enfim, W, de José Júlio Lopes. E no elenco dos factos deve ainda referir-se que chegou a estar anunciada mas não se efectivou por ora a estreia de O Sonho de Pedro Amaral, tendo contudo o autor feito a apresentação de um excerto da ópera.
A lista parece suficientemente eloquente de que também aqui e agora é manifesta a nova actualidade de um género que tanto foi proclamado como “morto”, entrem ou não numa categorização estrita de “ópera” as diversas obras referidas – as quais, em qualquer caso, são todas integralmente de teatro musical, e não “teatro musical” no sentido mais restritivo e específico, característico de um Mauricio Kagel ou de um Georges Aperghis.
É certo que a característica social e simbólica de distinção e ostentatória do género também é um fantasma não-ausente. Infelizmente, o modo como evoluíu o processo de apresentação de Das Märchen, com as intrigas do compositor junto do poder, e o directo, directíssimo envolvimento desse mesmo poder político, do actual dueto do Ministério da Cultura, nesse processo, são prova acabada de como o prestígio simbólico da ópera, e os seus custos de produção também, a tornam propícia a exemplos de espectáculo majestático.
A um outro nível, a dupla operação A Montanha /Metanoite, no Fórum Cultural “O Estado do Mundo” da Gulbenkian, foi também uma operação ostentatória e desastrosa. Digamos que foram mais as duas óperas “comemorativas” do 50º aniversário da Fundação e condenadas a por aí se ficarem, sendo o desastre em especial notório no tocante à de Côrte-Real; entre outros motivos, como depois ficou claro, essa amarga decepção ocorreu também porque não era de facto cabalmente exequível que o autor estivesse em simultâneo dedicado ao processo de composição de duas óperas, essa e O Rapaz de Bronze, sendo ainda para mais que foi ele próprio o libretista de A Montanha, a outra ópera sendo muito mais interessante, entre outros motivos, porque de facto tinha devidamente um libreto, de José Maria Vieira Mendes.
Como não pode deixar de se notar também, esta significativa sucessão de novas óperas e obras de teatro musical é, todavia, um facto quase publicamente ignorado. Pode ser que me tenha escapado alguma referência (pode ser, ainda que duvide), mas só me recordo de ter lido críticas às duas obras que estrearam na Casa da Música, A Little Madness in the Spring e O Rapaz de Bronze, e ambas de um crítico também compositor, Fernando Lapa.
Não sei ou não, esse sim é um facto de que duvido, se na imprensa portuguesa ainda existe “crítica musical”. Não creio é que uma tendência tão insistente e importante possa deixar de ser assinalada. E, a propósito, não menos foi lamentável que quando da estreia de W a Culturgest tenha anunciado um suposto colóquio internacional, que contudo foi confidencial, “Next Opera Next”, co-organizado pela “Coisa-em-Si”, a produtora do próprio José Júlio Lopes, e o CESEM, o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa – e que, provavelmente, foi mais uma manifestação “para si mesmos”, entrópica, dos senhores musicólogos “cesemianos”, dado a acrescentar, na repartição das competências, à tendência ao desaparecimentos de críticas na imprensa.
É pois tempo de falar concretamente de obras novas, de Evil Machines, mas também de recordar alguns percursos recentes.
Brecht achava que a ópera era “culinária”. Adorno escreveu que “sobre nenhuma outra arte são mais pertinentes as considerações de Benjamin sobre o declínio da aura [da obra de arte]”, a vanguarda promulgou durante décadas a morte da ópera e o então seu profeta, Pierre Boulez, proclamou mesmo, numa célebre entrevista ao “Spiegel” em 1967, que era preciso “incendiar os teatros de ópera” - propósitos que até foram retidos por zelosos vigilantes, e fizerem mesmo com que ele fosse brevemente detido pela polícia suíça a seguir ao 11 de Setembro de 2001, pois que ficara referenciado como suspeito de “terrorismo”! Mas, entretanto...
Lembro-me de, num colóquio sobre ópera contemporânea - creio ter sido na Ópera da Bastilha, quando aí foram apresentados Os Soldados de Bernd Alois Zimmermann, em inícios de 1994 -, alguém dizer que o simples facto de se saber do interesse do mesmo Pierre Boulez em, afinal, eventualmente compôr uma ópera, era sintomático. Se esse intento ainda se concretizará ou não, ver-se-á, pois Boulez permanece extremamente crítico da instituição que são os teatros de ópera:
“Penso que a renovação da ópera é um fenómeno muito artificial. È uma moda que se aplica a tudo (...). Para mim, trata-se em primeiro lugar da influência de encenadores no domínio da ópera. (...) Isto dito, não estou seguro que esta nova grande paixão pela ópera tenha reconsiderado todos os problemas do género, e nomeadamente a relação palco-fosso-público. Com efeito, assisti a algumas encenações de teatro, por exemplo de Peter Stein ou de Patrice Chéreau, para citar dois nomes muito conhecidos, e constatei que não utilizam o espaço teatral da mesma maneira. Eles criam para uma peça um espaço teatral muito específico. (...) Se eu devesse escrever uma obra de teatro e música – e digamos deste modo, já que o termo ‘ópera’ implica uma conotação tradicional – preferiria organizar un espaço à minha vontade, e não ficar escravo de uma relação imóvel (...). Escapar ao quadro convencional da ópera é tão difícil que a maioria das obras novas não vão ao fundo da sua revolução” (Pierre Boulez, Claude Samuel – “Èclats 2002”, ed, Mémoire du Livre, 2002).
Notar-se-á como nos propósitos de Boulez está mesmo explícita a noção de “revolução” e a desconfiança do “termo ‘ópera’” por implicar “uma conotação tradicional”; isto dito, os problemas de dramaturgia musical que enuncia são de toda a pertinência, mesmo que vá sendo difícil de aceitar que sejam condição obrigatória à renovação do género – “renovação” que não “revolução”. Daí também que esse projecto entretanto acalentado tenha vindo a ser adiado: Boulez pensou numa colaboração com Heiner Müller, e tendo este falecido, encarava a hipótese de trabalhar com Edward Bond – era pelo menos o ponto da situação. Mas tudo ponderado, o facto de se saber do interesse de Pierre Boulez em talvez compôr uma ópera, mesmo que o termo seja outro, não deixa de ser suficientemente sintomático, tão forte foi o rasto da análise adorniana, e bouleziana, da morte da ópera depois do Wozzeck e da Lulu de Alban Berg.
Por certo que a renovação teatral foi decisiva: longe da estagnação, da fossilização mesmo, que houve durante décadas, a ópera, depois de Wieland Wagner, Luchino Visconti e Giorgio Strehler, foi espaço para as mais elaboradas e exaltantes experiências cénicas, devidas a um Patrice Chéreau, um Peter Stein, um Luca Ronconi, um Bob Wilson, um Peter Sellars, etc.
Depois de tanto se ter proclamado a morte da ópera, difícil vai sendo mesmo saber de um compositor de relevo que não tenha escrito uma ópera, esteja em vias disso ou a tal aspire. Talvez, se não Adorno, o próprio Walter Benjamin pudesse afinal ter constatado, não fosse o seu destino trágico, que a ópera, longe de dissipar a sua aura, afinal resiste, anacrónica, na aceleração vertiginosa da modernidade. E talvez seja disso também sinal que a experiência trágica de Benjamin seja já matéria de ópera, Shadowtimes de Brian Ferneyhough ou, muito recentemente, W de José Júlio Lopes.
Falemos então concretamente de ópera, “hic et nunc”, aqui e agora.
Já tinha aqui referido como os sufrágios críticos nos Estados Unidos se dividem entre No Country For Old Men dos Coen e There Will Be Blood de Paul Thomas Anderson, bem como que, depois se ter distinguido na categoria de “melhor filme independente/experimental” pelos críticos de Los Angeles, Juventude em Marcha de Pedro Costa integrava também a lista da crítica do “New York Times” Manohla Dargis.
Entretanto, na “poll” do indieWIRE, a mais ampla, com 106 críticos votantes, Juventude em Marcha/ Colossal Youth também surge entre os “10 best”, 8ª posição mais exactamente, e votado ainda nas categorias de melhor realizador, actor, actriz secundária, fotografia e argumento.
Sobre essa lista, três notas para notar que, 1) o esplêndido Zodiac de David Fincher se intromete entre There Will Be Blood, nº1, e No Country For Old Men, nº3; 2) a lista confirma o caso singular que foi a redescoberta, 30 anos depois, do magnífico Killer of Sheep de Charles Burnett, verdadeiro ponto de partida do cinema afro-americano como o conhecemos (é difícil imaginar um Spike Lee sem o caminho aberto pelos filmes de Burnett, Killer of Sheep e My Brother’s Wedding), que regressou às salas e saíu da invisibilidade em que estava depois de restaurado no Film and Television Archive da UCLA; 3) assinalar ainda a presença, como o mais cotado dos filmes estrangeiros, de Syndromes and A Century de Apichatong Weerasethakul, um dos mais belos filmes que vi em 2007, e que passou no IndieLisboa.
Já agora, e a propósito dessa terceira nota, digo eu que nessa desporto das listas dos “melhores do ano” me faz confusão como em Portugal, ao contrário do que fazem os norte-americanos (pois, os norte-americanos...), se reduz o leque de opções às estreias comerciais; e então mais digo, e tão só isto, que as minhas escolhas pessoais, escolhas, não listas, incidiram em Cartas de Iwo Jima de Clint Eastwood, Natureza Morta de Jia Zhang-Khe e também Não Quero Dormir Sózinho de Tsai Ming-Liang, que passou no Indie e foi directamente para dvd.
A época das escolhas dos críticos note-americanos encerrou entretanto, como sempre, com a mais prestigiada de todas, a da National Society of Film Critics, anunciada no sábado: There Will Be Blood, melhor filme, realizador e actor, Daniel Daniel Lewis, Julie Christie, melhor actriz em Away From Her, Cate Blanchett, melhor actriz secundária como um dos vários Bob Dylan de I’m Not There, Casey Afleck, actor secundário em O Assassínio de Jesse James, e 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, melhor filme em língua estrangeira.
A propósito, há um divertido (é um dos lados da questão) mas sintomático caso na distribuição portuguesa: é que a regressada Julie Christie, um dos mais inesquecíveis ícones dos “sixties” (oh, Darling!), começa a perfilar-se, no somatório de prémios, e atendendo a várias ponderações, como uma das favoritas para os óscares – e pouco são os “territórios” tão obcecados pelas distinções de Hollywood como Portugal. Pois sucede que Away from Her/ Longe Dela de Sarah Polley também foi directamente para dvd.
Benéfica consequência da greve dos argumentistas: os tão frívolos e desproporcionados Globos de Ouro foram entretanto mesmo cancelados, depois de a Guilda dos Actores se ter solidarizado com a dos Argumentistas.