Eis que agora o cinema também é matéria do âmbito de “treinadores de bancada” e dos locutores públicos do “futebolês”. O que lhes não ocorre, no seu facciosismo, é que se alguém está estritamente a traçar uma suposta “via para o cinema português”, e assim a delinear um dirigismo, são eles mesmo, os “call boys” e “cow boys”. Querem sim sexo e padre, sexo, poder e futebol, sexo, poder e polícia, querem O Crime do Padre Amaro, Corrupção e Call Girl? Querem isso, e vêm falar ainda de “dirigismo”?
Mas como supõem que se garante o “apelo público”? Sabem por acaso que A Guerra das Estrelas começou por ser um divertimento quase experimental de George Lucas? Que E.T. foi o “pequeno filme pessoal” de Spielberg? Ou que agora a Dreamworks e a Warner andam confusas temendo por um projecto tão ousado como Sweeney Todd de Tim Burton?
(Sou um confesso admirador de A Guerra das Estrelas, rendi-me extasiado a E.T. logo na sua primeira apresentação pública em Cannes em 1982, Tim Burton é um dos meus autores mais apreciados, que fique tudo devidamente claro; se há pessoas que por facciosismo, e cabotinismo, tenham um discurso de rejeição do que é “sucesso” só por o ser, não faço parte desse lote.)
Conhecem estes articulistas os dados e factos do cinema em Portugal para saber como se fazem “filmes de mais público”? Saberão que realizadores e produtores que eram tido como garantes de “sucesso de público”, como o já citado Leonel Vieira, se depreciaram vertiginosamente? Têm alguma ideia concreta do impacto real das ficções telenovelescas e, mais grave ainda, dos “reality shows”, do impacto do sistema televisivo em geral?
Que há filmes e filmes que têm vindo a ser apoiados e produzidos condenados à insignificância, eis também o que é uma triste realidade que não pode ser iludida – e me leva de há anos à posição “impopular” de achar que há excesso de projectos apoiados e que deveria redifinições urgentes, mas esta é uma posição crítica pessoal. Não postulo linhas de orientação, ao contrário destes eminentes “treinadores de bancada”.
Quem serão afinal esses tal “call boys” que até dão título ao texto de Rui Moreira? Quem são nomeadamente os mencionados “críticos que desprezam tudo o que atrai público”, quem? É que já agora fico curioso por saber pois, pelo contrário, o que me parecem não faltarem é “críticos” com pouco sentido crítico, e alguns mesmo claramente enfeudados a distribuidoras e aos valores do “box office”, e das pipocas.
Que eu tenha sim apercebido, o notório “call boy” desse panfleto rasca, cheio de deturpações e insinuações, é o próprio Rui Moreira.
Mas o discurso do populismo “anti-intelectual” e “anti-críticos” ganhou uma tal dimensão, que até se viu esse artigo subscrito por um crítico literário e blogger de opinião fácil e abundante. Sim, já sabíamos que Eduardo Pitta também é muito “socialaite” e que, supondo-se cosmopolista, não raro cai na parolice. Pode ser que, tão “socialaite”, tenha achado que vir em socorro da Call Girl um “call boy” não apenas de bolsa mas de Palácio da Bolsa, era “chic a valer”. Mas mesmo sabendo como é fácil a tentação do blogger (e falo agora em termos gerais), é ainda assim inquietante de verificar quão longo é o lastro rasteiro do apelo contra um suposto “establishment crítico”, todavia já de si reduzido à insignificância de estrelas e estrelinhas.
Com estes quatro textos se retoma afinal uma reflexão sobre os estados críticos, sobre se “a ‘crítica’ ainda existe?”
Vai sendo cada vez mais frustante de verificar o afunilamento da opinião impressa, a falta de renovação, o auto-centramento e defesa de interesses pessoais mesmo de vários colunistas, e sobretudo a absoluta leviandade de muitos dos argumentos expandidos. Também a este respeito, “Call boys” é um texto tristemente sintomático.
O apoio do Estado às actividades artísticas e culturais é recorrentemente apresentado como um “monstro tenebroso”. Que possam existir riscos é inegável, e volta de quando a quando a ser notório, como agora com o dirigismo em vários aspectos da actual equipa do Ministério da Cultura – e, ao longo dos anos, não tenho cessado de me manifestar quando creio ocorrerem tentativas dirigistas, ou um sistema de promiscuidades que fecha o leque das opções. Mas os muitos “liberais” adeptos da retirada do Estado para funções apenas de preservação patrimonial, “esquecem-se” de uma condição básica do liberalismo: a criação de condições tão alargada quanto possíveis à manifestação pública não só das mais diversas opiniões, como também das mais diversas expressões, incluíndo as de ordem artística.
Que muita coisa seja inepta e mal-fundamentada nas atribuições de apoio por parte do Instituto do Cinema e do Audiovisual e de outros congéneres é inegável. Que daí se deduza a estigmatizaçao de um suposto “dirigismo” consubstancial a essas estruturas, é um salto arbitrário e afinal de natureza ideológica.
Em defesa do colega do “Trio de Ataque” e da sua Call Girl diz Rui Moreira “A.P.V. tem o raro mérito de produzir filmes de que o público gosta e que são sucessos de bilheteira. Paradoxalmente, paga caro essa virtude e é vítima de um sistema perverso de dirigismo, que teve início na Primavera marcelista. Nessa altura, como o regime queria evitar a censura directa, escolhia quem podia filmar através do controlo político dos subsídios, que eram atribuídos pelo Instituto Português do Cinema em função das conveniências e financiados através de uma percentagem das bilheteiras”. As asneiras são tantas que justificam a análise do detalhe.
1) - A que se propósito se pode escrever que “o regime queria evitar a censura directa”? Tinha acaso deixado de haver censura? Por exemplo, não estava proíbido O Mal Amado de Fernando Matos Silva?
2) – Quanto a essa de que “o regime (...) escolhia quem podia filmar através do controlo político dos subsídios, que eram atribuídos pelo Instituto Português do Cinema em função das conveniências”, diga-se apenas que, a) a Lei 7/71 foi consequência de um esforço persistente da geração do “cinema novo”, António-Pedro Vasconcelos incluído, e que na Assembleia Nacional do regime, forçado a reconhecer a necessidade de um novo quadro legal, mormente depois do decisivo apoio da Gulbenkian à cooperativa Centro Português de Cinema, quem sobretudo se bateu foram deputados da “ala liberal”; b) houve um único plano de produção antes do 25 de Abril, e nenhum dos autores com projectos aprovados, Manoel de Oliveira, António de Macedo, Manuel Guimarães, Cunha Telles, Artur Ramos, Sá Caetano, Fonseca e Costa e Paulo Rocha, era afecto ao regime, e vários eram mesmo oposicionistas declarados. Como então falar expressamente de “controlo político dos subsídios”? Santa ignorância, mas não ingénua.
Este exercício de falsificação é o pórtico necessário para o “dummy” abrir plenamente o espaço ao discurso e aos ressentimentos do ventríloquo, reconhecíveis a léguas: “Hoje (...), em vez de critérios políticos, o dirigismo exerce-se através de critérios pretensamente estéticos, fomentando o "cinema de autor" de que Oliveira é o paradigma, e impedindo a produção de cinema main stream. É por isso que A.P.V. só conseguiu, até hoje, produzir sete longas metragens e teve de adiar o seu Call Girl, já que no ano passado o subsídio lhe foi negado a pretexto de, imagine-se, ter menos capacidade de comunicação com o público do que a Belle Toujours de Oliveira. Ora, Oliveira merece todo o apoio, mas não pode esgotar os subsídios nem se pode transformar no paradigma do cinema nacional.”
Vamos lá a ver. Se bem me recordo, Call Girl foi de facto inicialmente preterido num concurso do I.C.A., em que foi nomeadamente aprovado Belle Toujours. As coisa não foram exactamente claras, mas também não foram redutíveis só a esses dois projectos. Nesse concreto tipo de concursos há vários factores a ponderar, e estou muito longe de estar seguro que a razão tenha sido a do projecto de Vasconcelos “ter menos capacidade de comunicação com o público do que a Belle Toujours de Oliveira”. De resto, se bem me lembro, foi também então aprovado Julgamento de Leonel Vieira, realizador que ainda há pouco tempo era suposto ser especialista em “sucessos de público”, e filme que, apesar da presença de algumas vedetas televisivas e do apoio da TVI, passou recente e fugazmente, quase sem deixar rasto. Portanto, mesmo que nem tudo tenha sido tão claro quanto desejável nesse concurso (o que aliás foi refutado por um membro do júri, o jornalista e ora provedor do “Público” Joaquim Vieira), é ainda assim redutor extraír a conclusão do texto de Rui Moreira.
Sucede que se justifica contudo essa conclusão ser devidamente ponderada. Tempos houve em que Oliveira era pura e simplesmente rejeitado. Hoje, quase centenário, com o estatuto de ser “O veterano” do cinema mundial, o diapasão mudou de tom, e é exactamente esse: “Oliveira merece todo o apoio, mas não pode esgotar os subsídios nem se pode transformar no paradigma do cinema nacional.”
Há umas semanas atrás, comecei a dedicar-me a tentar perceber o que é esta estranha “joint-venture” do “Público” e de “A Bola” que dá pelo nome de “Sexta”, pois que se já de si é singular e anómala a situação de em Portugal as empresas jornalísticas também se dedicarem agora a gratuitos (este e o “Global”), a associação daquelas duas entidades parece extravagante. Eis que no nº 8 de 14 de Dezembro, que até incluía um artigo sobre Oliveira, se me fez alguma luz (ou deverei dizer “Luz”?) quando, folheando com mais atenção, descobri que havia uma coluna do “jornalista de bola” Luís Francisco – atenção “jornalista de bola”, não de “A Bola”, pois vem do “Público” e é Director-Adjunto do “Sexta”, e “jornalista de bola”, que outra coisa são os bons jornalistas desportivos e de futebol.
Pois Luís Francisco mostra-se versado em cinema. De facto, creio recordar-me que fazia figuração em Tráfico de João Botelho, filme em que o figurante principal, autêntica “guest star” identificada com o S.L.B., com o Benfica, era... Bagão Félix.
E o que escrevia Luís Francisco? “O Cinema Português para lá de Oliveira”. Mostrando o seu amplo conhecimento da matéria logo declarava a abrir: “Manoel de Oliveira estreou esta semana mais um filme [afirmação incorrecta: tinha sim havido a ante-estreia de Cristovão Colombo – O Enigma, que só agora estreia]. Tal como aconteceu com todos os outros que já realizou , este também não me levará às salas para vê-lo” – nunca viu, mas não gosta e tem opinião impressa em jornal sobre a matéria. Continuemos....
Segue o hoje inevitável reconhecimento e elogio, “não posso deixar de ser profundo admirador [note-se bem, “profundo admirador”?] de um homem que se mantém, activo, lúcido e criativo na fronteira dos 100 anos”. E depois vem enfim a jogada: “Mas o cinema português tem de ser muito mais do que Manoel de Oliveira, sob pena de se eternizar no ciclo estafado do filme-de-autor-que-recebe-subsídio-e-faz-um-circuito-de-festivais-onde-recebe-grandes-elogios-e-depois-chega-às-salas-e-só-tem-meia-dúzia-de-espectadores [ufa!]”. Eis, em todo o seu triste esplendor, uma das regras básicas do “futebolês”, como se pode ouvir e lêr naqueles programas de canal aberto que são do que mais lamentável há nas rádios e televisões: o “adepto” tem sempre certezas, aliás sabe de tudo, e já topou a jogada! Treinadores de bancada, em suma, com as certezas da clubite mais facciosa.
Tinha em consideração Rui Moreira, Presidente da Associação Comercial do Porto e colunista do “Público”, como um homem independente, ainda que por vezes com um gosto de afirmação que manifestamente extravasa o âmbito das suas competências. Já que ele vem à colação por razões de cinema e, associadamente, de futebol, direi mesmo que não esqueço a independência que manifestou perante a decisão de Rui Rio em concessionar a privados um equipamento cultural público como o teatro municipal Rivoli – mesmo que um homem das suas responsabilidades podesse ter manifestado essa posição de forma mais audível -, nem mesmo, no que concerne até aos afectos clubistas, que sendo o F.C. Porto um clube tão presidencializado, é um dos poucos que tem feito ouvir uma voz mais distanciada.
Isto dito, o tal artigo “Call Boys” (“Público” de 31-12-07) é mais próprio de um “dummy” com ventríloquo por trás, está factualmente pejado de falsidades históricas, e é um apelo alarve à hostilidade das “massas” contra os “fazedores de opinião” (horrível expressão esta, é certa), categoria em que aliás Rui Moreira se inclui, mas de que se exclui quando o alvo são “os críticos”.
Vamos a ver se nos entendemos: eu não tenho a nada a ver com qualquer espécie de “corporação crítica”, antes pelo contrário, e há muito poucos críticos de cinema portugueses em actividade, dois ou três apenas, com quem ainda me sucede discutir cinema. Acrescento ainda que não só hoje em dia muito poucos filmes portugueses me interessam minimamente, como, ponderados uma série de factores que já não são de gosto pessoal, mas de diversos tipos de impacto, nacional e internacional, tenho mesmo a posição extremamente “impopular” de achar que objectivamente se produzem filmes a mais, ou filmes de nulo rasto a mais.
Não posso ainda deixar de dizer que creio ter suficiente experiência, quer de estruturas de atribuições de apoios, quer de júris de festivais, para saber os casos em que me devo bater pelos meus critérios de apreciação e aqueles em que têm de ser ponderados uma série de factores. E isso também me faz acrescentar que, embora as atribuições de subsídios a filmes por parte do Instituto do Cinema e do Audiovisual seja processo que há anos deixei de seguir atentamente, como parte que é do recorrente psicodrama do “cinema português”, ainda conheço as regras legais e tenho também a noção de que a composição dos júris é muitas vezes inepta.
Todas as ressalvas feitas, não há que ter dúvidas sobre o intento de um artigo como “Call Boys”: propagando o sistema de discurso do “futebolês”, o portista Rui Moreira limitou-se a ser caixa de ressonância propagandística do seu colega benfiquista do “Trio de Ataque” em defesa de quem saíu, António-Pedro Vasconcelos – não sei se, já agora, o sportinguista Rui Oliveira e Costa se encarregará de um estudo de opinião para validar os “argumentos”.
Ora acontece que A.P.V., de que tem Moreira basicamente reproduz o argumentário, é uma espécie de Vasco Pulido Valente do cinema português (relação aliás fundamentada pela proximidade dos dois, V.P.V. tendo mesmo sido o autor do argumento original de um filme do outro, Aqui d’El Rei), isto é, já quase defendeu tudo e o seu contrário, com a particularidade de o fazer muitas vezes com uma virulência malsã e numa lógica do ressentimento. Ainda me lembro de um texto seu que me chocou imenso, de 1980 ou 81, quando A.P.V. era grande defensor de Manoel de Oliveira, mesmo seu produtor; tendo a situação excepcional daquele sido criticada por António de Macedo, cineasta por hoje ele tido como “injusticiado”, logo A.P.V. lhe retorquiu que, como o artigo do outro foi publicado num dia 8, podia ser motivado por ter a renda por pagar – note-se este nível!
Só que agora o inimigo de estimação passou a ser Oliveira, que se estaria nas tintas para o público. Acontece isto, que A.P.V. e tantos outros sonegam: se muita coisa se pode e deve discutir sobre o cinema de Oliveira, e se pode mesmo discutir a cláusula não-escrita pela qual todos os seus projectos são inevitavelmente subsidiados, não se pode é negar que àquele é indiferente sim o número de espectadores, mas não, de modo nenhum, que os seus filmes sejam estreados e assim cheguem ao público – e a Oliveira pesou-lhe muito não ter sido estreado, caso único, Le Soulier de Satin, longo de 4h30.
António-Pedro Vasconcelos foi, já o recordei, o godardiano “atittré” do cinema português. Foi autor de belos filmes, que lamento estarem esquecidos, como Adeus Até ao Meu Regresso, documentário com os soldados da guerra colonial, de facto a primeira-longa feita depois do 25 de Abril, exibida pela RTP no Natal de 1974; do mesmo modo lamento, e inclusive fi-lo saber junto de quem de direito, que quando do centenário do compositor, em 2006, não tivesse voltado a ser apresentado o seu primeiríssimo filme, 27 minutos com Fernando Lopes-Graça. E foi autor de Perdido por cem, Oxalá ou O Lugar do Morto. Depois, lamentavelmente, com o discurso do ressentimento conjugou-se uma decrepitude acentuada de filme para filme.
Mesmo em várias questões em que lhe assistem razões de fundo, ou em que tem experiência suficiente para que posições suas devem ser consideradas no debate, como o manifesto sectarismo na programação de cinema português, melhor dizendo, de realizadores portugueses, da instituição pública designada precisamente Cinemateca Portuguesa, ou da falta de adequação em muitos aspectos de uma política do cinema, Vasconcelos perde as razões que tenha pelos termos do discurso, pelo ressentimento e a “fulanização”.
E o ex-crítico radical, “enfant terrible” como o fora o seu muito amado Truffaut, que como poucos vilependiou tantos e tantos cineastas “mainstream” e mesmo respeitáveis autores, encontrou um novo ódio de estimação: “os críticos”, assim genericamente, que desprezariam “os filmes de que o público gosta”, argumento mais que velho, senil mesmo. Mas é próprio do “futebolês” que de A.P.V. é expoente – afinal ele até publicou um livro de título Porque é que as Mulheres não Gostam de Futebol?, que não é por certo de homenagem a O Desporto Favorito dos Homens de Howard Hawks -, e da sua imbecilização facciosa e militante do discurso, ter que encontrar, mais que um adversário, um “inimigo”. Eis pois a grande guerra, ou o grande campeonato, “A.P.V. vs críticos”.
E se isto sugere o própriamente sujeito do discurso, no caso tornado ventríloquo, que sai da pena do “dummy” Rui Moreira? “Sugiro ao leitor que dedique umas horas a ver Call Girl, um bom filme de entretenimento, na linha dos que A.P.V. sempre realizou. Recomendo-lhe que, se gosta de cinema português, ignore os críticos que invariavelmente desdenham os raros filmes que vale a pena ver e, já agora, que evite aqueles que recebem muitas estrelas da crítica: mais do que os espectadores que conseguem arrebanhar”.
O populismo em todas as suas manifestações, do “poujadismo” a diversos discursos “anti-sistema” de que a mais notória expressão em Portugal foi “O Independente”, é isto mesmo: o apelo às “massas”, aos “descamisados”, aos “anónimos”, contra o suposto “establishment” e os intelectuais também, um “establishment crítico” no caso, o qual todavia até está pouco mais que reduzido à insignificância das “estrelas” e “estrelhinhas”.
Se calhar, mais cedo ou mais tarde, tinha mesmo de se produzir uma insalubre mistura directa do “futebolês” e do cinema. O apelo que transpira do panfleto de Rui Moreira, fruto de todo o discurso de “vitimização” e de hostilização que se tornou sistemático em António-Pedro Vasconcelos, nada tem a ver com qualquer análise concreta sobre o estado actual da crítica de cinema em Portugal ou da crítica em geral – é, insisto, um exemplo grave do mais rasca e inflamado populismo, e é nesses termos de gravidade que não pode ser ignorado.
Os ajustamentos dos jornais portugueses aos imperativos do “marketing” para fazer face à tendência de queda têm continuadamente suscitado, entre várias consequências, uma acelerada depreciação da crítica. Sem dúvida que a desvalorização da mediação crítica é mais geral, que há mesmo uma transformação social da função crítica, cada vez menos um exercício fundamentado de mediação e cada vez mais um mero processo de intermediação na cadeia de consumos. Daí que, como agravadamente se verifica na crise ainda mais aguda da imprensa em Portugal, o que o “marketing” dos jornais ainda assim não dispensa são as críticas de pop e de cinema, ou mais exactamente as “estrelinhas” atribuídas pelos críticos de pop e de cinema, que é fundamentalmente isso que tem valor de uso no processo de intermediação na cadeia de consumos.
Falemos então de cinema ou mais exactamente de “filmes”. Se bem que o sistema industrial do cinema americano, do que designamos por “Hollywood”, esteja em agudo estado interrogativo, como os números do “box-office” dos últimos três anos demonstram sem margem para dúvidas, a sua dominação não cessa de se expandir, com um único outro sistema produtivo, o da designada “Bollywood” indiana, a fazer ainda face.
Assim sendo, as entidades reconhecíveis que foram os “cinema nacionais” perderam também o seu relevo quando não foram mesmo condenadas à irrelevância: o “cinema francês” – ainda assim, o único distintitivo que existe a nível europeu – perdeu a maioria da quota do seu mercado nacional, o “cinema italiano”, que tão importante foi, ronda os 20% do mercado e enquanto sistema de produção já não exporta, etc, etc. O caso de Portugal então, é o de uma autêntica colónia americana, aliás com níveis de subserviência de discurso verdadeiramente alucinantes.
Não vale a pena estar agora a insistir ainda na absoluta falta de dimensão do mercado interno para produzir, já não digo sequer uma indústria, mas um fluxo continuado de produção independente de apoios públicos. Certo é que o “cinema português”, os discursos do “cinema português”, são um psicodrama recorrente. E esse é agora um primeiro ponto a atender.
O segundo é a paradoxal situação da dita “crítica de cinema”, sector que pelas razões apontadas ainda é simbolicamente reconhecido, mas se tornou também, no jogo a que ela própria se prestou, um objecto de fustigação, desde logo por parte de jornalistas, note-se - é ler aliás a bloga fácil deles. E sendo o sector crítico com um rasto manifesto no quadro das estrelinhas acaba também por ser afinal aquele em relação ao qual se polariza um larvar populismo anti-intelectual.
Acresce no espaço público um terceiro ponto, em que há já muito tempo venho insistindo: a situação extraordinariamente paroxística de, sendo os filmes de produção portuguesa em geral pouco vistos, ou mesmo muito pouco vistos, todavia haver uma série de cineastas que têm um notório estatuto e presença públicas. As coisas sendo o que são, nesse recorrente psicodrama do cinema português há uma exacerbação de discursos que não é apenas muito pouco saudável (tantos e tão notórios são os “ódios de estimação” entre cineastas, ou mais exactamente entre cineastas acima de uma certa idade, que também é necessário fazer notar haver nos modos de discurso público claras diferenças geracionais), é mesmo exasperante – e falo em concreto de realizadores como António-Pedro Vasconcelos, Fonseca e Costa, Fernando Lopes, João Botelho, João Mário Grilo ou Pedro Costa, independentemente do apreço que por alguns deles e pelos seus filmes eu tenha.
Mas há um factor particular ainda a salientar. É que no caso de dois dos citados, Vasconcelos e Botelho, as suas intervenções são características dessa redução que João Lopes designou por “futebolês”, a terrível contaminação do espaço público pelo discurso do facciosismo clubista, sendo mesmo ambos notórios benfiquistas e comentadores de futebol também.
Entenda-se: não é o futebol nem sequer em abstracto as paixões que suscita que estão em causa – deixemos isso ao complexo de superioridade e ao desejo “big brotheriano” de vigilância do espaço público do hirsuto profeta Pacheco Pereira. Recordo tão só a propósito o que tive ocasião de dizer a propósito de Zidane: un portrait du XXIéme siècle de Douglas Gordon e Philippe Parreno, que “convém não subestimar a inteligência da minoria que ainda gosta de ver cinema nem a da minoria que gosta da arte do futebol sem que seja parasitada por comentários". O que está em causa sim é a dominação dos espaços informativos, a omnipresença de um discurso excedentário e terrivelmente empobrecedor.
Em todo este quadro se calhar, mais cedo ou mais tarde, tinha de se produzir uma insalubre mistura directa do futebol e do cinema. Pois aí está.
Primeiro foi Corrupção, e todo o seu mediático e atribulado processo. Independentemente de se aguardar a estreia também da versão do próprio realizador, João Botelho, é da ordem das evidências que todo o processo do livro Eu, Carolina foi monitorizado pela jornalista - e co-argumentista do filme do marido – Leonor Pinhão, que foi por essa via que o livro foi parar à Dom Quixote e em concreto à sua responsável editorial Tereza Coelho, supostamente votada sim a António Lobo Antunes, com a qual Pinhão trabalhou durante anos na revista “Os Meus Livros”.
Será uma ambição tão legítima como qualquer outra que Botelho um dia também quisesse fazer o seu filme para o dito “terceiro anel”, para a claque benfiquista, e sendo ainda de respeitar, até prova em contrário, que mais uma vez ele quis fazer “um filme sobre Portugal” na continuidade de outros anteriores, não menos há que assinalar que o austero Botelho, ideólogo do “cinema português” como espaço de “resistência” aos malefícios do terrível “imperalismo americano”, se deixou alucinar, ele também afinal, pela perspectiva de fazer um filme de “grande público” : “se o livro vendeu 150.00 quero que o meu filme tenha o triplo dos espectadores”, afirmou durante a rodagem ao jornal “patrocinador”, o “Correio da Manhã” – note-se bem, o “Correio da Manhã”, o tablóide, “patrocinador” de um filme do puritano Botelho!
E eis agora, depois da história de alterne, a Call Girl de António-Pedro Vasconcelos, o ex-godardiano “attitré” do cinema português. E com ele, o panfleto rasca do distinto Presidente da Associação Comercial do Porto e colunista do “Público” Rui Moreira, mais prosaicamente comparsa de Vasconcelos no “Trio de Ataque” da RTP-N, outro desses infectos programas de suposto debate de futebol que demonstram bem como o legado do populismo de Emídio Rangel na SIC – matriz destes programas – e do anti-intelectualismo do “Independente” se espalharam duradouramente na imprensa e no espaço público.
Quando em Outubro passado apresentei JLG/JLG : Autoportrait de Décembre no ciclo “Diários e Autoretratos” integrado no DocLisboa, desde logo chamei a atenção para a feliz coincidência propiciada pela apresentação de Scenário du film “Passion” na exposição “Centro Pompidou: Novos Media 1965-2003” no Museu do Chiado. Eis então que as felizes e frutíferas coincidências se sucedem, e de Godard surgiram entretanto editados no mercado português, e entre outros, os dvds de Paixão, Eu vos saúdo Maria e as Histoire(s) du Cinéma, o primeiro pela Universal, os segundos pela Midas.
“Moi, je suis une image”, disse Godard em entrevista aos “Cahiers” (nº316, Outubro de 1980), quando do seu dito “regresso ao cinema” com Sauve qui peut (la vie), depois do período “militante” e do vídeo. O autor que, mais que qualquer outro, sempre pautara a sua obra pelo duplo imperativo da homenagem (a dedicatória à Monogram Pictures de “série b” logo em O Acossado) e da ruptura, e que convocara mesmo um dos mestres maiores, Fritz Lang, para o porventura seu filme máximo dos anos 60, O Desprezo, confrontava-se pois com o sua próprio estatuto icónico.
Assinalada retrospectivamente a devida importância dessa declaração e dessa entrevista (há um texto magnífico de Raymond Bellour incluído em L’Entre-Images, ed. La Différence, 1990), convirá então sobretudo assinalar dois eixos, ou talvez antes três.
O primeiro eixo é uma tendência à auto-exposição e a auto-análise filmíca, apenas com paralelo noutro autor a que curiosamente Godard nunca foi em especial afecto, Orson Welles, o Welles de Filming Othello e de F for Fake, Welles que todavia representa na história do cinema, e na história da recepção pública da arte cinematográfica, uma das figuras por excelência do “demiurgo”, a outra sendo Hitchcock.
As figuras da auto-exposição na obra de Godard desde então são de diverso tipo, incluíndo a derrisão auto-paródica, tão tocante no tão pouco-amado Soigne ta droite, catastrófica no malfadado King Lear, como a declarada auto-exposição nos casos de Scenário du film “Passion” e JLG/JLG : Autoportrait de Décembre (“autoportrait, pas une autobiographie”, esclarece ele, de algum modo num impulso paralelo ao de Roland Barthes por Roland Barthes). Mais genericamente, a enunciação do “Eu” inscreve-se numa explicitação do estatuto do discurso culminando nas Histoire(s) du Cinéma.
Dir-se-á também, segundo eixo, que de “Moi, je suis une image” decorre uma muito particular apropriação do mote de Rimbaud “Je est un Autre”: Godard “é” uma pessoa e um significante, Godard “é” JLG/JLG, “JLG” e “JLG”, Jean-Luc Godard e as “imagens de JLG”, a pessoa de Jean-Luc Godard no seu jogo com o cinema e as imagens “de Godard”.
Insisto: assinalada retrospectivamente a devida importância dessa declaração e dessa entrevista quando de Sauve qui peut (la vie), ganha outra nitidez o passo seguinte, ou melhor, os passos imediatamente seguintes, os de Passion e Scenário du film “Passion”, isto é, de um filme em torno da rodagem de um filme (como O Desprezo) e do singularissimo e extraordinário caso de um ensaio que, ao contrário do que o título Scenário du film “Passion” faz supôr, não foi a apresentação de um projecto mas uma análise posterior – é um filme “aprés” e “d’aprés”.
Mas com Passion e o seu trabalho de estúdio em torno dos “tableaux vivants” a partir de Delacroix, El Greco, Rembrandt, Goya ou Ingres, Godard confrontou-se directamente não apenas com a matéria da “criação artística” mas também com a da iconologia, do “museu imaginário” e da memória da arte. Daí que eu tenha feito a ressalva de que a partir da declaração “Moi, je suis une image” há sobretudo dois eixos que convirá assinalar, ou talvez antes três. O terceiro será então o da iconologia e, a ele associado, o da criação, ou antes, da criação e da Criação.
Em Scenário du film “Passion” Godard confronta-se directamente ainda com um outro quadro, com a imagem de um outro quadro, o “Baco e Ariana” de Tintoretto, como se confronta com a imagem de Hanna Schygulla no seu próprio filme Passion. Repare-se bem como se acerca delas, todavia na impossibilidade da relação fisíca com o “interior” dessas imagens. “Flash-forward” então para Eu vos saúdo Maria e Joseph – a mão de Joseph - que se acerca do ventre de Marie, todavia na impossibilidade fisíca e racional de se abeirar do seu “interior”, no mistério de uma concepção, qual interrogação agnóstica sobre a Criação e a Imaculada Conceição, esta uma iconologia retomada em Passion segundo El Greco.
Com Passion se iniciou portanto uma aventura iconológica que se aproximou explicitamente da iconologia católica em Eu vos saúdo Maria (ou a descoberta por um homem de cultura protestante, um criador de imagens, dessa iconologia católica), percurso conducente às Histoire(s) du Cinéma ou mesmo às “histoire(s) de l’art”, atendendo nomeadamente ao transcendente (e entenda-se este termo em todo o seu sentido) The Old Place feito para o MoMA (dvd ECM, distribuído pela Dargil), o que fez Jacques Rancière dizer haver mesmo em Godard uma “religion de l’art”.
Scenário du film “Passion”, esse intento de “voir le passage de l’invisible au visible”, foi afinal também o “número zero” das futuras Histoire(s). Paradoxal e extraordinário projecto: retornar à obra própria já criada, para colocar uma hipótese alterando os termos da lógica factual: .”Si l’invisible était visible qu’est-ce qu’on pourrait voir? Voir un scènario”, num jogo especulativo e auto-especulativo - “começo a pensar que para descrever a realidade é preciso descrever a metáfora”. É um retorno à obra e à criação por parte do próprio demiurgo, do paradoxal demiurgo, não para dizer como fez, mas para estabelecer uma relação, um jogo, “un jeu”, com essa obra feita: “Voir. Et tu te retrouves, et je retrouve, retrouve, recherche.. .je me retrouve devant l’invisible”.
“Visible, invisible”, “je, tu” – “Je est un Autre” nesse jogo entre o visível e o invisível, o que é matéria icónica e o que é da ordem do Mistério, “Je est un Autre”, “L' Autre du Je(u)”.
Extraordinária obra este Scenário du film “Passion”, ponto nodal entre Passion, Je vous Salue Marie, JLG/JLG : Autoportrait de Décembre e as Histoire(s) du Cinéma.
É uma situação peculiar a de estarem simultaneamente patentes em Lisboa duas exposições em instituições diferentes, todavia com a mesma curadora, Christine Van Assche: “Centro Pompidou: Novos Media 1965-2003” no Museu do Chiado (até amanhã) e “Ida e Volta: Ficção e Realidade” no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian.
A expressão “novos media” é sintomática, na sua generalidade, do tipo de tecnologias adoptadas no campo das artes visuais, ao início sobretudo suporte vídeo para registar acções performáticos, como as de Vito Acconci (representado nesta exposição de Beaubourg no Chiado), de resto origem da célebre análise de Rosalind Krauss do “video como arte do narcisismo”.
Para além de práticas percursoras como as de Acconci ou de Bruce Naumann (ainda hoje tão imitado, e quantas vezes tão mal “digerido”), ou das instalações com uso de televisão de Nam June Paik, constitui-se também uma “video arte”, uma poética específica ao uso do suporte, como nos casos particularmente paradigmáticos de Bill Viola e Gary Hill.
Não menos ocorrera entretanto, e já desde os anos 60, toda uma pesquisa, sobretudo no espaço americano, em torno da imagem projectada, deslocando-a dos códigos narrativos vigentes na ordem industrial do cinema, para trabalhar sobretudo sobre as categorias de percepção: foi o caso de alguns trabalhos de Andy Warhol, de todo o extraordinariamente importante percurso de Michael Snow, como do cinema pintado de Stan Brakhage.
O que “grosso modo” ocorre desde os anos 90 é contudo já de uma outra ordem: um trabalho especificamente sobre “a imagem” e frequentemente sobre “a memória das imagens”, que não deixando de prosseguir certas coordenadas provindas do concreto campo das artes visuais e mesmo em particular do espaço pictórico (de um Gerhard Richter, nomeadamente), opera sobretudo numa relação de contaminação entre cinema e imagens projectadas em espaços expositivos.
Quando Pontus Hulten, o sueco que foi o primeiro director do Centro Pompidou, iniciou a colecção, e note-se que foi em 74, ainda antes da abertura do Centro, em 77, havia apenas a vaga definição de “novos media”. Quando hoje se apresenta uma proposta como “Ida e Volta: Ficção e Realidade”, está-se a trabalhar com categorias homólogas às de ficção e documentário no cinema.
Dir-se-ia assim que as exposições se complementam, e que a sua conjução é sinal particularmente sublinhado de como o cinema invade os museus e espaços expositivos, de resto, e provavelmente não por acaso, num momento que é crítico para o cinema, momento de tantas depreciações e mutações, em que o seu espaço constituinte das salas escuras está em declive que tanto mais se irá acentuar com o consumo das imagens em “download”, momento de “ocaso da que foi a grande arte do século XX, de esgotamento da grande arte industrial e de massas com que crescemos e que amámos” (e faço questão de repetir uma afirmação minha feita ao “Ípsilon” de 19-10-07, já que houve quem fizesse questão de a deturpar).
Contudo, cada exposição é o que é – e a de Beaubourg no Chiado e do CAM acabam por ser quase opostas na sua concretização.
Sem discutir agora outra aspectos respeitantes à vocação estatutária do Museu do Chiado, à apresentação pública do seu acervo patrimonial e à assaz peculiar situação do seu director, Pedro Lapa, exercendo funções em “part-time”, uma vez que é também um dos responsáveis de uma fundação privada, sem discutir esses aspectos, e até reconhecendo em abstracto as capacidades e méritos de programador de Lapa, é no entanto bizarra a insistência em apresentar exposições a que as condições do museu são adversas.
Assim, nomeadamente, falta nesta exposição todo um núcleo, o de maior actualidade, na insistência no trabalho sobre o “real”. Assim, no mais importante dos quatro núcleos em que se organiza a percurso, o designado por “Pós-Cinema”, em que estão as três peças capitais da exposição, Scènario du film “Passion” de Jean-Luc Godard, The Third Memory de Pierre Huyghe e Feature Film de Douglas Gordon, apenas de Huyghe é apresentada nas devidas condições, sendo que no caso da de Gordon a importância da obra justificaria, além do mais, que ela fosse apresentada isoladamente.
Ao contrário dos limite das condições expositivos no Chiado, “Ida e Volta: Ficção e Realidade” é afinal dominada pelo assombroso dispositivo cenográfico concebido por Didier Fiúza Faustino: assombroso no seu quadro geral, assombroso nas câmaras particulares concebidas também de acordo especificamente com as características da obra aí apresentada, assombroso na relação que consegue estabelecer, pela primeira no CAM, entre uma exposição temporária e a colecção permanente.
Mas com uma ou outra ressalva, sobretudo Edge of te World de Rodney Graham, “Ida e Volta: Ficção e Realidade” é afinal uma exposição espectacular mas decepcionante. Mais: é mesmo uma exposição que mostra como certas deslocações se podem revelar desastrosas e mesmo atentatórias das obras.
De cada vez que vejo La Jetée de Chris Marker penso sempre que é “o mais belo filme do mundo”. E é um dos filmes que mais vezes vi e que mais vezes vejo. Foi e é também tremendamente influente nestas novas modalidades de “cinema expositivo”. A câmara que para ele concebeu Fiúza Faustino é em particular extraordinária na sua articulação com as características espaciais da obra, e mesmo com as características narrativas, no que estas se aproximam da “science-fiction”. Mas apresentar a obra em videoprojecção é um verdadeiro atentado à sua integridade e à densidade do seu preto e branco – são equívocos, que também os há muitos, desta apropriação do cinema pelos espaços expositivos.
Personalidade central ao “Focus Nórdico” que a Casa da Música irá apresentar ao longo deste ano, o finlandês Magnus Lindberg (n. 1958), será mesmo o “compositor em residência”. Feliz situação, credora de toda de toda o destaque, pois Lindberg é certamente um dos autores mais marcantes da actualidade, um dos que mais importa.
A informação, e sobretudo a circulação das obras demorando, e acrescendo ainda mais o tempo para nos apercebermos da dimensão do impacto, poderemos hoje dizer que, ao correr do tempo, nos podemos ir dando conta da importância crucial de Kraft, obra distinguida na Tribuna Internacional de Jovens Compositores da UNESCO de 1986..
Para um “jovem compositor”, Lindberg (n.1958) já tinha então um curriculum de relevo, tanto mais que já havia sido distinguido na mesma Tribuna, em 1982, com …de Tartuffe, je crois - e restrospectivamente, poderemos hoje considerar que uma outra obra, datada dessa mesmo ano, Action — Situation — Signification, era também suficientemente esclarecedora de uma poética própria.
Da sua narrativa curricular constavam cursos com Franco Donatoni em Siena e com Brian Ferneyhough em Darmstad, além de estudos particulares com Vinko Globokar e Gérard Grisey em Paris, ritos canónicos para um “jovem compositor”, pois. O que nem por sombras se sonhava à época era a importância de uma narrativa particular: o encontro no Conservatório Sibelius de Helsínquia, em 1977, de Magnus Lindberg, Kaija Saariaho, Esa-Pekka Salonen, Jukka-Pekka Saraste (estes dois, hoje bem conhecidos maestros) ou do violoncelista Anssi Kartunen, e a constituição do grupo “Korvart Auki/Ouvidos Abertos”, e do conjunto instrumental Toimi, em reacção ao conservadorismo dominante, que em termos de referências reconhecíveis, podemos associar à “canonização” de Sibelius ou Rautavaara, este aliás professor de composição naquele conservatório.
Mas então, Kraft porquê? Pelas extraordinárias explosões rítmicas e de massas sonoras (a obra destina-se a cinco solistas amplificados e orquestra) que Lindberg sumarizava como “uma combinação do hipercomplexo com o primitivo”, declarando que “só o extremo é interessante”. Era uma música de “energia” claro (“kraft”), de “fricção” também, ou, de como ele escrevia nesses anos, a propósito do material e a sua organização, ocorria um paradoxo que “suscita uma tensão irracional entre a expressão e a estrutura, moldando a música com um carácter nervoso, uma fricção, que não é um obstáculo mas uma fonte da inspiração criadora”.
Kraft era a irrupção de um “brutalismo” complexo, para o qual, se bem que se podessem e possam tecer similitudes com outras “deflagrações” anteriores, exteriores à narrativa unínoca das ortodoxias primeiro seriais e depois “post”-seriais, como Xenakis, Ligeti ou o Penderecki inicial, ou, mais perto no tempo, Rihm, haverá também de atender a uma noção mais lata de envolvimento sonoro, que não deixava de ter analogias com orientações de cenas “rock” alternativas, ou seja, para parafrasear o título de uma posterior obra do finlandês, analogias Related Rocks – e se mesmo que “related”, a música de Magnus Lindberg não é ainda assim da esfera do rock, os seus ouvidos estiveram bem abertos para a energia “punk” dos Clash, na Londres dos anos 70, ou o “rock industrial” e experimental dos aventurosos Einstürzende Neubauten na Berlim dos anos 80, de algum modo dessas vivências sedimentando-se na sua própria música uma noção fundamental, a de pulsação.
“Ouvidos abertos” terá sido uma declaração com uma pragmática própria na situação finlandesa. Mas “ouvidos abertos” é uma proposta mais geral, o entendimento de uma poética mesmo. Daí que Lindberg, por exemplo, tenha sido mesmo um dos que enunciaram uma questão capital, “Porquê evitar?”.
Concretizemos: porquê evitar por princípio, por exemplo, certas situações harmónicas só porque de acordo com os príncipios que se consideram caducos da tonalidade funcional, ocorre o que sucede ser um dó maior? Mas então será a “atonalidade”, mormente como se formulou na série dodecafónica, um outro princípio limitativo? “Ainda me lembro do espírito que reinava no meio musical nos anos 80: era imperativo compôr deste ou daquele modo, com o risco de se ficar encerrado num ‘ghetto’. Ora, a música teve sempre necessidade de novas perspectivas. A tonalidade como a atonalidade eram utilizadas na música funcional. Esse é, para mim, e para a maioria dos meus colegas, um anacronismo com o qual não poderia trabalhar. É, creio, um capítulo encerrado”.
Em lugar de funcionalidades ou princípios apriorísticos, a música de Magnus Linbderg revela-se de extraordinária “organicidade”, nas suas torrentes rítmicas e harmónicas, que lhe suscitam uma pulsão vital e uma energia muito próprias, de enorme impacto sensorial na escuta, bem distinta e reconhecível. A extraordinária Aura – In memoriam Witold Lutoslawski de 1993-94, a meu ver uma das portentosas obras musicais dos últimos anos, é particularmente esclarecedora da poética de Lindberg e a da sua tendência às grandes massas e à grande forma – uma “meta-forma-sonata”, foi dito, um modo de enunciação de uma narratividade não-funcional, pensando a música também nos seus encadeamentos temporais, horizontais, e não apenas na verticalidade, como fundamentalmente decorreu e decorre das ortodoxias seriais e pós-seriais. É, se quisermos, uma concepção dinâmica decorrente dos próprios quadros harmónicos, mas não deixando estes restritamente flutuantes e magmáticos.
Há na música de Magnus Lindberg uma dimensão sensorial imediata, física, longe das concepções teoricistas dessas ortodoxias pós-seriais, que de modo nenhum exclui a elaboração formal, mas também de modo nenhum renega um princípio do prazer.
Hoje às 19h30, a Orquestra Nacional do Porto, dirigida por Martin André, abre o “Focus Nórdico”, com um programa constituído por obras de quatro “clássicos”, Alfvén, Grieg, Nielsen e Sibelius (Finlândia) e, com o próprio compositor como solista, o Concerto para Piano de Lindberg, obra dos inícios dos anos 90, marcado pelo influxo das pesquisas no IRCAM e da escola espectral.
É interessante aliás notar, pelo que que revela de diferenciador em relação aos preceitos da “vanguarda”, serial e pós-serial, que ao longo desta residência se ouvirão o Concertopara Piano, oConcerto para Violoncelo e o muito recente Concerto para Violino (do catálogo do autor constam ainda um Concerto para Clarinete e um Concerto para Orquestra ). Mas o evento maior que há desde já que assinalar será outro programa da ONP (também com o grande violoncelista Truls Mork) com essa obra de génio que é Aura, a 23 de Fevereiro. Ouvidos bem abertos, pois...
Entenda-se este elenco como um horizonte de expectativas, aliás substancialmente só para a primeira metade do ano. São filmes, retrospectivas e programas que aguardo com especial interesse, pela oportunidade de conhecer ou rever, nalguns casos também eventos para os quais desde já suponho que se justifica uma chamada de atenção.
Ensaios e documentários numa proposta de introdução à cada vez mais fértil e insistente reflexão cinematográfica sobre a própria História do Cinema, programada por Ricardo Matos Cabos. Não faltam os Morceaux choisies das Histoire(s) du Cinéma de Godard, mas o destaque é seguramente o conjunto de filmes do alemão Hartmut Bitomsky.
Jacques Rivette – Cinemateca, Fevereiro/Março
“La Religieuse”
“Il était temps”, exclamou o mestre de cerimónias da sessão de encerramento do Festival de Cannes de 1991, Fredéric Mitterand, quando foi anunciado o Grande Prémio do Júri para La Belle Noiseuse. Era também mais que tempo de haver uma integral de Rivette, tanto mais que em Portugal houve um desfasamento: uma integral na Gulbenkian em 77, e depois estreias regulares desde O Bando das Quatro em 89, sendo que muitos dos que têm vindo a seguir recentemente a obra deste grande cineasta (um dos maiores) não tiveram oportunidade de conhecer os filmes dos anos 60/70, como La Religeuse, que à época foi alvo de polémica interdição em França, e um razoável sucesso em Portugal depois do 25 de Abril.
Mikio Naruse – Cinemateca, Março/Abril
“Nuvens Flutuantes”
E “enfim” também! O dito “quarto grande do cinema japonês”, ao lado de Mizoguchi, Ozu, e Kurosawa, de facto entre Migozuchi, enquanto sensibilissimo retratista, outro grande “cineasta de mulheres”, e Ozu, pela aparente lisura das superfícies. É autor nomeadamente de dois filmes sublimes, Nuvens Flutuantes e Quando uma Mulher Sobe as Escadas.
Anos 60 – Cinemateca , Maio/Junho/Julho e Setembro
“Os Amores de uma Loura” de Milos Forman
A mega-retrospectiva do ano, regresso outra vez à década prodigiosa dos “novos cinemas”, só que com um panorama bem mais lato, não cingido à presença recorrente da “nouvelle vague” francesa, e abrindo até para possíveis contrapontos mais comerciais. Será ocasião, espera-se, para propôr de novo também a visão de algumas das mais significativas obras dos “novos cinemas” de leste, nomeadamente polaco e checo (Milos Forman e outros), ou do “cinema do degelo” krutscheviano, em que o diamante foi no entanto proíbido, o maravilhoso A Felicidade de Ássia de Andrei Konchalovski.
Autobiografias/Autoficções – Culturgest, Maio
“My Ain Folk” de Bill Douglas
Fique antes de mais claro que estra proposta é de minha responsabilidade, prosseguindo num eixo de recriação ficional o trabalho em torno da enunciação do “Eu” em cinema, na sequência do ciclo retrospectivo sobre “Diários e Autoretratos” no último DocLisboa. A incidência é em quatro autores, dos que mais insistentemente tomaram a vivência pessoal como matéria do seu cinema, Bill Douglas, Terence Davies, Marta Mészàros e Chantal Akerman. Além do mais, acho especialmente importante descobrir a “Trilogia de Bill Douglas”.
Jonas Mekas – Cinemateca, Junho
Evidentemente, o grande mestre da “autobiografia” cinematográfica, mesmo o autor que deu corpo a essa vertente. Mas, mais latamente, Jonas Mekas, personalidade das mais importantes da arte cinematográfica, é por excelência um “homem da câmara da filmar”, prodigioso compilador da história de cenas sociais e culturais ao longo de décadas, aquele que deu um outro e radical sentido à noção de “cinema pessoal”.
E, como não podia deixar de ser, os encontros obrigatórios,