“A pior coisa que pode acontecer ao ministro José António Pinto Ribeiro é ser um gestor de clientelas. Aquela que se desejaria de alguém com o seu perfil público, e até do protagonismo político a que por certo não se regateará, é que corte rente com o dirigismo, abre espaço a iniciativas próprias e catalize esforços e parcerias, que saiba também fazer uma cultura da mediação.
O que se passou durante os 34 meses da gestão Pires de Lima/Vieira de Carvalho foi também a negação de uma cultura democrática. O fundador do Fórum Justiça e Liberdade tem a obrigação elementar de ter presente esse dado e tirar as devidas consequências na sua acção política como Ministro da Cultura – que crie instrumentos legais e iniciativas em vez das cadeias de comando do servilismo burocrático.”
Um novo ministro, óbice e possibilidades é o tema da coluna “Estado da Arte” deste mês na artecapital.
O livro foi publicado em 1980. Anuncia-se como volume II de O Anti-Èdipo – Capitalismo e Esquizofrenia, mas de facto excede largamente esse propósito. É em Mille Plateaux que os conceitos de “rizoma” e “desterritorialização” estão elaborados, mas a obra, uma das mais iluminantes e densas do pensamento contemporâneo, está também preenchida de observações estéticas. Em Portugal, e pela Assírio & Alvim, estava publicada a famosa introdução, Rizoma.
Durante anos – e como em nenhum outro caso – fui indagando pela posibilidade (pela necessidade) da sua tradução, foram-se sucedendo-se as conversas com o Manuel Rosa, o editor da Assírio, tentando saber do processo, dos prazos de tradução, do horizonte previsto de publicação. Até que há dias, o Manuel, com aquela sua particular dedicação a cada livro que publica – e este é dos mais arriscados de editar – a primeira coisa que fez mal nos encontrámos foi passar-mo para a mão. Eis agora nas livrarias portuguesas Mil Planaltos.
Sempre me chocou por exemplo o modo como esse livro teoricamente disléxico de tanta nomeada, a “vulgata” da anti-globalização que é o Império de Tonio Negri e Michael Hardt (e Negri tem textos de pensamento político bem mais substanciais), autenticamente “pilha” muito dos quadros conceptuais de Mil Planaltos, algo que, a meu conhecimento (mas posso desconhecer outras referências) apenas Slavoj Zizek notou, mas para no seu entusiasmo marxista pela panfleto objectar contudo ao “deleuzianismo”.
Sem querer de modo algum menorizar Guattari (de quem, nomeadamente, as observações sobre um “nova glaciação” após os entusiasmos militantes se vieram a revelar de extrema pertinância), de resto uma estratégia que foi seguida por vários contraditores, importa-me ainda assim neste momento assinalar outros dois pontos especificamente referentes a Deleuze:
1) A confirmação da extraordinária importância do seu “Post-Scriptum sobre as sociedades de controlo” (“post-scriptum” ao conceito de “sociedades disciplinares” de Foucault) incluído em Conversações (Ed. Fim de Século), quando somos referenciados por cartões ou plelo nosso rasto nas tecnologias electrónicas;
2) De devidamente assinalar que nenhum outro pensamento se tornou tão própriamente “rizomático” no campo estético como o seu, nas mais diversas àreas aliás. Por exemplo na música, já fiz aqui referência a um Bernhard Lang, de quem aliás o Remix recentemente gravou duas peças do ciclo DW, isto é Differenz/Wiederholung, referència explícita a Diferença e Repetição, ou Quad in Memoriam Gilles Deleuze de Pascal Dusapin, título evidentemente beckettiano, mas obra sobretudo referida ao texto de Deleuze sobre esse outro de Beckett, L’Epuisé – e obra que de resto o Remix interpreta a 29 de Março na Casa da Música e a 30 na Gulbenkian.
E muitos outros exemplos se poderiam citar, sem deixar de referir textos como Cinema 1 – A Imagem-Movimento e Cinema 2 - A Imagem-Tempo ou Francis Bacon: Logique de la sensation.
NOTA – Um miserável, que outro nome não tem, na posse de contactos de Manuel Rosa e sabendo de concretos movimentos seus ontem, fez telefonemas vários dando notícia de que ele teria morrido. Foram momentos de consternação para muitos de nós, e eu próprio involutariamente cheguei a aqui mesmo pôr a “notícia”, logo retirada quanto recebi informação desmentindo-a. Felizmente foi mesmo apenas uma vil atoarda, mas ainda assim uma explicação é devida.
Um dos mais interessantes módulos de programação da Cinemateca Portuguesa (em que alguns ciclos de enorme saliência como o agora dedicado a Jacques Rivette – ontem aberto esplendorosamente com NeTouchez pas la hache – não desmentem também o excesso de conformismo e falta de imaginação, com vários títulos recorrentes e propostas tão privadas de nexo como “Filmes com nome de mulher” ou “Happy Ends”, para já não falar das escolhas em termos de cinema português) é a “História Permanente do Cinema”, pela qual tem sido programador responsável António Rodrigues.
Ao contrário de uma mera reafirmação de um cânone estabelecido, essa programação aos sábados tem permitido voltar a ver ou mesmo muitas vezes a descobrir obras das mais variadas, de indiscutível relevo histórico. E assim ocorre hoje a exibição de Nihon no yorn to kiri/ Noite e Nevoeiro no Japão de Nagisa Oshima (1960) –note que “noite e nevoeiro” e não “noite e bruma” como está anunciado, a rima com o filme de Alain Resnais estando bem estabelecida -, filme que em Portugal passou uma única vez, há cerca de 25 anos.
Foram nada menos que oito os filmes de Oshima estreados em Portugal entre 1973 e 1984, entre O Enforcamento e Furyo/Feliz Natal Mr. Lawrence. É certo que depois veio o incomensurável desastre de Max, Mon Amour, rodado em França, que praticamente lhe concluíu a carreira – e Tabu não foi um regresso inspirado. Mas ainda assim é mais que lamentável que um tão grande cineasta – e seguramente com Fassbinder e Pasolini um dos grandes “cineastas do corpo” – tenha sido remetido para um virtual esquecimento, como se só houvesse a recordar, e porque “escandalosos”, O Império dos Sentidos e O Império da Paixão.
Noite e Nevoeiro no Japão foi o quarto filme de Oshima. De facto, já nos dois anteriores, Contos Cruéis da Juventude e O Cemitério do Sol, um cineasta se começara distintamente a afirmar, dentro do quadro de um sistema de produção – eram os filmes para a “juventude” produzidos pela Shochiku, uma das “majors”, o mesmo sucedendo aliás com Shohei Imamura na Nikkatsu.
Mas Noite e Nevoeiro no Japão foi uma deflagração, de algum modo afinal a matriz da “nuberu bagu”, a mais política – talvez com a brasileira também – de todas as “novas vagas” dos anos 60, por certo a mais radical na sua abordagem não só da política como da sexualidade.
Na origem da revolta, política e dos sentidos, estiveram as violentas manifestações desse ano de 1960 contra a renovação o Tratado de Sequrança Nipo-Americano (um tema de novo de actualidade, agora que há sectores da direita do PLD governamental favoráveis ao rearmamento).
No quadro cerimonial e ritual de um casamento (prenúncio do extraordinário Cerimónia Solene de 1971) são duas gerações da esquerda japonesa, a da obediência comunista vinda directamente do pós-guerra e a do nascente esquerdismo, que entram em confronto, num “huis-clos” cerrado, na mestria absoluta dos seus 107’ com apenas 45 planos.
Noite e Nevoeiro no Japão é seguramente um dos grandes filmes políticos e um dos filmes mais marcantes dos anos 60.
Em princípio deveria agora estar no Porto - e teria motivos musicais mais que justificados para isso, o concerto desta noite em Serralves em que John Tilbury interpreta Triadic Memoriesde um dos meus compositores favoritos, Morton Feldman, à intrigante proposta que será a reunião de Cristina Branco e de um dos mais categorizados agrupamentos de música contemporânea, o Ensemble Modern, amanhã na Casa da Música. E, de resto, esse eixo Serralves/Casa da Música é dos mais frequentes das minhas geografias culturais urbanas, como aliás por certo transparece do que vou escrevendo.
A propósito, e de tanto circular nesse eixo, ocorre-me uma memória: a 24-07-06, no mesmíssimo dia em que era publicado o meu texto “O Saque do Rivoli” sobre a privatização anunciada por Rui Rio, pois logo calhou que sucessivamente em Serralves e na Casa da Música avistasse, a prudente distância como se impunha, o edil. Súbito interesse de um homem que se imagina cavaleiro andante contra a “nefanda cultura”?
Nada disso: qual “anfitrião” também, supremo ironia, Rui Rio acompanhava o presidente da Comissão Europeia. Pouco importa agora o facto de esse presidente ser português – o que importa sim é ter sido necessário o presidente da Comissão Europeia estar no Porto e querer deslocar-se a Serralves e à Casa da Música para que Rio enfim, com toda a probabilidade pela única vez, se ter também deslocado a esses dois espaços representativos do que resta de um Porto cosmopolita e culturalmente dinâmico que a sua acção autárquica vem bloqueando e mesmo militantemente desprezando.
Mas se lamento não poder estar agora é também porque de viva presença me gostaria de associar ao movimento pela preservação da traça e das características históricas do Mercado do Bolhão, um dos ícones da cidade.
A democracia representativa funda-se nas instituições electivas mas não se esgota nelas. Os princípios da democracia, o que de mais nobre historicamente houve na ascensão e triunfo da civilidade burguesa, fez-se em primeiro lugar na constituição do espaço público – e isso são também propriamente os espaços.
A sanha de Rui Rio é sempre a mesma, obstinada e autocrática: privatizar os espaços públicos. Foi assim com o Rivoli, teatro municipal reabilitado com fundos públicos cuja missão era destinar-se de modo plural a uma diversidade de públicos e apetências culturais, é agora com o Mercado do Bolhão, para a seguir serem esses dois outros emblemáticos mercados do Bom Sucesso e Ferreira Borges ou o Palácio do Freixo.
Isto enquanto como qualquer autocrata todavia não regateia fundos públicos para as manifestações motorizadas da sua predilecção, o circuito da Boavista ou aquele ribombante “Red Bull Air Race” para o qual até fez implantar um aeródromo no Parque da Cidade!
Porque é uma coisa pública e uma causa pública, aqui se inscreve também o link para a petição contra a demolição anunciada
E pela primeira vez nesta página, que a conjunção dos factos assim o justifica, aqui ficam também as imagens do Mercado do Bolhão – é um filme de Renata Sancho de que muito gosto, e que há anos tive ocasião de defender num júri do Festival de Vila do Conde, e foi a própria realizadora que teve a amabilidade de me de fazer saber da sua disponibilização.
E com o mais recente filme, Ne touchez pas la hache, se inicia agora, às 21h30, a tão longamente aguardada retrospectiva na Cinemateca Portuguesa, que se prolongará até Abril, 31 anos depois daquela ocorrida na Gulbenkian, e que se concluiu com Noroit – ou seja, justamente o momento de crise do projecto da tetralogia “Cenas da Vida Paralela” – e no ano que será o do 80º aniversário de Jacques Rivette.
Este texto podia começar como segue: “A evidência é a marca do génio de Jacques Rivettel. O que é, é.”
Se digo que o “texto podia começar como segue”, em vez de introduzir directamente a citação, estou a instaurar uma hipótese que, ao referir-se a um texto prévio, estabelece a possibilidade de a citação ser pertinente, mas também de não o ser. Para averiguar da pertinência, não basta o axioma “o que é, é”, mas impõe-se um percurso em que a verificação da hipótese genérica se pode subdividir em particulares, umas condicionando as outras, delineando-se como um jogo. Um percurso rivettiano, precisamente.
A citação está truncada. A frase, famosíssima, diz respeito a Howard Hawks e a Monkey Business. Jacques Rivette foi, sim, o seu autor. O texto, publicado nos “Cahiers du Cinéma” de Maio de 1953, foi o segundo de Rivette na revista e a primeira crítica importante à obra de Hawks, autor que em breve iria ser equiparado pelos “jovens turcos” dos “Cahiers” a Hitchcock — a famosa tendência hitchcock-hawksiana. Hoje, o génio de Hawks é uma evidência; alguém teve a clarividência de o ver primeiro. O que era obscuro, ou estava na penumbra, tornou-se visível.
Cabera então recordar o que era, no Rivette/crítico, um regime de evidências (e portanto de visibilidade), que mais tarde o Rivette/cineasta sistematicamente relativizará, contrapondo às claridades as zonas das secretas obscuridades.
Impossível, então, não referir outro celebérrimo texto, feito também contra a corrente crítica dominante na altura — a “Lettre sur Rossellini”, em defesa de Viagem em Itália, publicado em 1955, e que implicitamente colocava as evidências como uma questão de fé: “Eis o segredo de Rosselini, que é o de se mover com um liberdade contínua e com umsó e simples movimento no eterno visível: o mundo da incarnação.”
Se Rivette retomava o dogma, não deixa de notar como ele se revela: não num desenrolar previamente determinado de um programa ficcional, mas no movimento, nas esperas, nos acasos. E por isso, esse texto, que não podia ser mais clássico na apologia do cinema como arte da incarnação, é também a grande defesa da “modernidade” de que Viagem em Itália surgia como um exemplo maior.
A modernidade, justamente. Dela, foi Rivette o motor teórico nos “Cahiers” (nomeadamente contra Rohmer, há que relembrar). Os grandes reabilitadores críticos do classicismo do cinema americano haveriam de ser os cineastas da “modernidade”. No caso específico de Rivette (de resto, com Godard, certamente o mais “experimentador” do grupo), a passagem para detrás da câmara foi acompanhada por uma reticência metódica.
“Com tudo o que houve durante os últimos 25 anos, e sobretudo durante os anos 70, a reflexão trazida por pessoas como Barthes ou mesmo aquela a partir de Brecht sobre a impossibilidade do primeiro grau, afigurou-se-me progressivamente impossível fazer filmes como, com todas as devidas distâncias, alguém como Rossellini, com aquele lado imediato, bruto. O facto de saber que o primeiro grau é sempre uma ilusão, que não existe, e que, pois que estamos sempre pelo menos no segundo grau, mais vale então partir daí e servir-se dessa obrigação de partida, jogar com ela, ou em todo o caso não se deixar enganar a fim de não enganar os outros.”
A citação data de 1985 e se reparo cabe fazer é sobre a referência aos anos 70. Efectivamente, Rivette poderia apenas falar do que então eram “os últimos 25 anos”, uma vez que, já no princípio dos anos 60, esta reflexão sobre a ilusão (onde anteriormente se supunha uma evidência) e os diferentes graus da representação está presente na sua prática, quer na crítica, onde dirige a chamada “viragem modernista” dos “Cahiers” (que leva nomeadamente ao diálogo interdisciplinar com personalidades como Barthes e Boulez), quer na realização, com Paris Nous Appartient.
“Será verdadeiramente o filme da nossa geração”, dizia François Truffaut em 1958. Poderia ter sido (“deveria” ter sido?) o primeiro filme da “nouvelle vague”, mas, por atrasos sucessivos, apenas foi estreado em finais de 1961. E se esse lado de experiência geracional não é de desconsiderar, pois que supõe uma aspecto decisivo — a inscrição de um filme no real e num tempo histórico concreto (lá voltaremos) —, cabe sobretudo interrogar se Paris Nous Appartient não é, entre todos os primeiros filmes do grupo vindo dos “Cahiers”, aquele em que há uma mais aguda consciência de uma nova experiência, da “modernidade” cinematográfica.
Gilles Deleuze, que foi grande admirador da obra de Rivette, falava a propósito da “nouvelle vague” da “crise da imagem-acção”, cuja apoteose tinham sido os filmes de Hitchcock, baseada numa continuidade sensomotriz, na experiência pelo espectador do “suspense”, da angústia e dos movimentos. Com a “nouvelle vague”, surge uma “nova consciência intelectual e reflexiva”, da qual, entre vários exemplos, Deleuze desenvolve os dos primeiro e terceiro filmes de Rivette, Paris Nous Appartient e L’Amour Fou.
Em Paris nous Appartient, a primeira longa-metragem de Rivette, um grupo teatral trabalha numa encenação do Péricles de Shakespeare, isto é, o dado da representação é explicitamente introduzido no filme. Trata-se assim de algo em vias de se construir, daquilo que nos anos seguintes viria a ser conhecido como “work in progress”. Este processo em movimento, auto-reflexivo, pressupõe uma distância perante as referências prévias, por vezes mesmo irónica, sendo que no decorrer do filme há uma denegação do título: “Paris n’appartient à personne.” Enfim, as intrigas no seio do grupo fazem acumular os mistérios, o pressentimento de um “complot”.
É notório que a ideia do “complot” se cristalizou como uma espécie de marca reconhecível de Rivette, um pouco a contragosto do autor diga-se, que apenas a reconhece para três filmes, todos eles sendo “ensaios, segundo métodos e aproximações completamente diferentes, de pequenas crónicas privadas em relação a dados da actualidade do momento em que se rodava, ou próximos de alguns meses”. Esses filmes, que se estabelecem em cadeia, numa relação de ironia ou distanciamento com o(s) precedente(s), seriam: Paris Nous Appartient, o seu primeiro, de 1958-60, tendo como quadro histórico de referência os dois anos imediatamente anteriores, os do pós-mccarthismo e do pós-Budapeste; Out One, o quarto, de 1970-72, ou do pós-Maio de 1968; e Le Pont du Nord, o nono, de 1980-81, dos finais do giscardismo.
Admitindo que estes filmes constituem uma sequência particular, não será, no entanto, ocasional que constituam uma “marca reconhecível”. Se neles se radica uma matriz rivettiana, os aspectos que aí especialmente se condensam, para além da insinuação do “complot”, são três: a constante bifurcação dos eventos, isto é, o lado eminentemente centrífugo das ficções de Rivette, o primado que nelas tem “o momento”, um e outro aspecto combinando-se numa sucessão lúdica em que “a história”, “as histórias”, vão sendo engendradas e desenvolvidas, perante o olhar do espectador.
“Qu’est-ce que le cinéma, sinon le jeu de l’acteur et l’actrice, du héros et du décor, du verbe e du visage, de la main et de l’objet?”
Esta citação (preservando o original francês pelos múltiplos sentidos, fundamentais na obra rivettiana, de “jeu”) dir-se-ia directamente referida a La Belle Noiseuse, quando perante o espectador vai sendo feito o quadro de Frenhof, para o qual Marianne é modelo. E no entanto, e por incrível que pareça, ela é retirada de uma entrevista a “L’Écran Français” em... 1958, quando Rivette rodava Paris Nous Appartient!
Quando, em 1987, o “Libération” fez a 700 cineastas a pergunta “Porquoi filmez vous?”, Rivette respondeu nestes termos:
“O que, se compreendo o sentido da vossa pergunta, primeiro me ocorre é o que muitas vezes (antes, durante, depois de cada rodagem) me perguntei: Como filmar, com quem, para quem? Mas o porquê da coisa ficou sempre rigorosamente opaco. Pois bem, que fique! E seja então talvez esse ‘ponto cego’ no fundo do olho, sem o qual não veríamos, a que Jean Paulhan fez mais de uma vez referência. Volto à verdadeira questão que, no que me diz respeito, é: Com quem? Então, porque filma? Para poder encontrar os cúmplices necessários e que o nosso trabalho comece, que a nossa reunião de algumas semanas chegue, por vezes, a algo como um filme.”
“Cumplicidade”, conceito capital, mais decisivo que o de “complot”, que aliás abrange. A cumplicidade com os actores, a cumplicidade na equipa. A cumplicidade em que se estabelecem as regras para o jogo. Consequência não menos capital: por paradoxal que pareça em relação a alguém tão reconhecível, enquanto “autor cinematográfico”, o que a Rivette importa não é a afirmação do papel do “criador”, mas o estabelecimento dos laços que permitem um desenrolar do movimento que tomará corpo como filme.
“Mais, le lendemain matin” - mas, ao segundo dia, foi Marianne, aceitando-se na condição de modelo, a ir ter com o pintor Frenhofer, na Belle Noiseuse. “Mais, le lendemain matin” é também um cartão recorrente em Céline et Julie vont en bateau. Todos os dias seguintes havia uma outra hipótese mágica, à maneira de bandas desenhadas, como a Bécassine que Julie espreita, ou de velhos “seriais” cinematográficos, dos de Feuillade nos primórdios a, por exemplo, Os Espiões ou As Aranhas de Fritz Lang, modelo da noção rivettiana do “complot”. Todos os dias, a narrativa toma outras vias, no presente de cada dia.
Transportar o “era uma vez” para o presente, um “presente” como raramente se sente no cinema, eis outro aspecto capital da obra de Rivette, seguindo a construção de uma obra para a tornar precisamente “presente” e não objecto acabado. Seguindo-a, momento a momento.
“Ça se sent dans votre film, l’instant est complement royal, il est traité comme le seul”
Isto disse-o Marguerite Duras a Jacques Rivette, numa conversa a propósito de Le Pont du Nord. Enquanto noutros casos de tradução há uma perda, neste há um acréscimo subentendido, porque nos filmes de Rivette “o instante é completamente real”. É no seu primado que se registam as imagens e os sons.
.“O instante é completamente real”, mas, crítico arguto como poucos, Rivette sabe bem que o dado a ver, sendo ainda apresentado como “presente”, não deixa de ser o registo de algo que já foi. Ora, é extraordinário o modo como nos seus filmes coexistem uma percepção do presente e do passado.
O quadro de Frenhofer, “La Belle Noiseuse”, permanecerá um fantasma – Le Chef’Oeuvre inconnu, no texto de Balzac que é ponto de partida - Balzac como em Out One ou agora neste mais recente Ne touchez pas la hache. No absoluto do desejo, estético ou erótico, quer-se ser o mesmo e um outro. “I am Heathcliff”, diz Cathy em O Monte dos Vendavais — “Je suis Roch”, diz Catherine em Hurlevent, a versão de Rivette do romance.
Impossível é evocar o cinema de Rivette sem atender ao que nele há da fantasmático. “Phantoms ladies over Paris” (como num imaginário filme de Jacques Tourneur) é o subtítulo de Céline et Julie vont en bateau. “Cenas da Vida Paralela” era a designação de uma projectada tetralogia de afrontamento da luz e das sombras que se ficou por Duelle e Noroit, mas viria afinal a ter também um tardio outro “episódio” em Histoire de Marie et Julien. Um fantasma evocava Lucia (Inês de Medeiros), no mais belo plano de La Bande des Quatre. Fantasmáticas eram as mãos que se saudavam, no final de Hurlevent. E Julien sonha com Marie, uma “revenante” (de entre os mortos?). Possessão letal, existências fantasmásticas.
Mestre do “jeu”, da duração e da multiciplicidades de narrativas, Jacques Rivette é um cineasta que, como poucos, nos coloca perante a intensidade do “do instante real” e ao mesmo tempo convoca a potência fantasmática do cinema. É um dos máximos cineastas vivos e um dos grandes autores da arte cinematográfica.
“Nada há de especial em não nos orientarmos numa cidade. Mas perdermo-nos numa cidade, como nos perdermos numa floresta, é coisa que precisa de se aprender”. O famoso enunciado é de Walter Benjamin em Infância Berlinense, em que também se pode nomeadamente ler: “Todos os dias a cidade voltava a prometer-me, e todos as noites me ficava a dever o prometido”.
Esses dois extraordinários textos de Benjamin, Infância Berlinense e Rua de SentidoÚnico são contemporâneos de Berlin Alexanderplatz, o grande romance de Alfred Döblin, publicado em 1929. E Benjamin escreveu mesmo um breve mas relevante ensaio, A Crise do Romance, sobre o romance de Döblin, opondo-o à teorização do “romance puro” de Gide. Para o que importa, Berlin Alexanderplatz, como os textos de Benjamin, inscrevem-se numa nova percepção da experiência urbana, na sua fragmentação e também recomposição estética, designadamente com técnicas de montagem já de si tão cinematográficas.
Berlin Alexanderplatz: a história de Franz Biberkopf, pois esse é o título completo, foi recorrentemente aproximada do Ulysses de Joyce e de Manhattan Transfer de John dos Passos – aproximação pela “stream of consciousness” num quadro temporal e/ou urbano preciso. Foi também obra muita discutida enquanto um dos primeiros, senão mesmo o primeiro exemplo de “romance psicanalítico”, mesmo que Döblin tenha sempre negado a influência de Freud. E importa ainda atender que Berlin Alexanderplatz se veio inscrever na estética da “nova objectividade”, um realismo de resto a vários níveis já marcado pela experiência cinematográfica (o que é notório na obra), de que aliás um evidente exemplo é desde logo a própria adaptação cinematográfica do romance, o filme de Phil Jutzi de 1931.
A percepção dos sujeitos e das personagens dilui-se no magma das percepções da experiência urbana – só após mais de 100 páginas ocorre o encontro de Franz com Reinhold a partir do qual há uma linha narrativa e um agenciamento de episódios. Isto, quanto está estabelecido o quadro: tudo se dissolve na cidade, na experiência urbana.
As cidades do homem e a sua alma, assim se intitula o texto de Fassbinder sobre o romance de Döblin, talvez mesmo o mais importante dos seus textos (incluído na colectânea Os filmes libertam a cabeça), inclusive no modo como se narra no confronto com o romance ao longo dos anos e das leituras. “As cidades do homem e a sua alma” – “as cidades” ou a cidade não sendo um exterior mas um quadro constitutivo da experiência, mesmo o outro pólo sem o qual não existe constituição do sujeito.
Atentemos a alguns elementos da filmografia de Rainer Werner Fassbinder (RWF), desde logo os filmes iniciais. Na primeira longa-metragem, O Amor é Mais Frio que a Morte, há um Franz, interpretado pelo próprio RWF. Em Os Deuses daPeste, há um outro Franz, personagem que a RWF mais que entregou, “passou” a Harry Baer (que certamente não por acaso viria a ser o seu principal colaborador depois em Berlin Alexanderplatz).
No primeiro filme efectivamente maturo de RWF, o quarto, Porque Corre oSenhor R. Amok?, surge pela primeira na montagem a menção de “Franz Walsch”, pseudónimo de RWF, homenagem simultânea, foi dito, ao Franz de Berlin Alexanderplatz e a Raoul Walsh. Mas depois, mais esclarecedor ainda, num filme tão importante em que ele próprio reaparece como protagonista, e expõe uma homossexualidade como a sua, O Direito do Mais Forte À Liberdade, a personagem chama-se mesmo Franz Biberkopf (dito Fox). Enfim, na extraordinária auto-exposição do seu episódio de A Alemanha no Outono, há um momento em que Fassbinder trabalha, enunciando em voz alta, para o gravador registar, cenas de um argumento, e refere a personagem Franz.
“Biberkopf bin ich”, “Bikerkopf sou eu” disse ele, parafraseando o “Bovary, c’est moi” de Flaubert. Fassbinder apoderou-se da personagem, imaginou-se a ele próprio num devir-Biberkopf.
É crucial atender assim que Berlin Alexanderplatz não pode ser encarado como uma série de televisão que RWF teria feito, e lateral à consideração da sua obra. Pelo contrário, Berlin Alexanderplatz foi o ponto que ele erigiu como horizonte do seu percurso, e que por força do projecto produtivo e da duração de 15 horas e meia teve também de ser uma série televisiva, de resto bastante contraditória enquanto tal. Mas que é um filme, “um filme em 13 partes e um epílogo”, ou uma obra de cinema, isso garanto, invocando a minha experiência de espectador.
De resto, importa realçar desde logo que o número de “14 episódios” não é fortuito; há 14 sequências ou estações – estações como as de uma “Via Crucis” – no romance de Döblin. E logo a 1ª parte tem como título “Começa o castigo”, isto é, “o castigo” sacrificial de Franz Biberkopf no momento em que, após a sua libertação da prisão, emerge de novo na deriva tentacular da experiência urbana.
Como é central à obra de Fassbinder, há em Berlin Alexanderplatz uma enorme violência simbólica, inclusive de incrustações físicas, na apresentação dos corpos em confronto. E como lhe é igualmente central, há uma economia de trocas e lógicas de poder entre as personagens que impossibilitam as relações propriamente afectivas – no caso, o contrato pelo qual Reinhold cede a Franz as mulheres de que sucessivamente se vai querendo “desfazer”.
Dito noutros termos, que me parecem axiais à perspectiva de Fassbinder, em Franz há uma impossibilidade não só simbólica como também social de constituir a sua masculinidade, e com isso há também a violência física no seu corpo – a amputação de um braço, por exemplo – e a que sobre outras exerce. Dai também que eventualmente os vértices da obra sejam o do desespero solitário e embriagado de Franz, na parte 4, e, como que em contraponto, o assassinato por Reinhold – esse outro a que Franz se sujeita – de Mieze, aquela que Franz ama e que por ele se prostitui, na parte 12, dois dos momentos mais exasperados de toda a obra de Fassbinder.
Mas não é menos axial que essa impossibilidade, o processo de “castigo” de Franz, implique também a diluição no magma dos fragmentos de experiência urbana e, em consequência, que essa composição fragmentária e o inerente desenho do mosaico da grande cidade pelo princípio lato de montagem (o que já de si é distintivo do romance de Döblin), suponha também uma percepção descentrada e expandida no tempo por parte dos próprios espectadores.
“A cidade, o mundo e eu”, exclama Biberkopf logo ao início; as características do romance de Döblin e o modo como perante aquele Fassbinder supôs um devir-Biberkopf como horizonte da sua própria obra, fazem com a experiência da diluição e da percepção urbana implicam também um outro tipo de experiência de espectador – e por isso, e para além de alguns elementos à época (1980/81) muito controvertidos como a escassa visibilidade de algumas cenas, a obra exige algo de diferente de um exercício mais ou menos regular de tele-visão, e assim solicita um acto de espectador que é ir quotidianamente à sala reencontrar e prosseguir as personagens.
Assim sendo, e por muitas dúvidas (muitas mesmo) que eu tenha à figuração alegórica-apocaplítica do Epílogo, Berlin Alexanderplatz não deixa de ser uma experiência de cinema extra/ordinária, e de cinema, sublinho ainda: “mergulhar” num filme, perdermo-nos nele, ao longo de uma visão forçosamente espaçada em vários dias.
Berlin Alexanderplatz estreou no Festival de Veneza de 1980 – na minha memória pessoal também o momento em que conheci Rainer Werner Fassbinder. Logo depois, no entanto, quando da sua exibição televisiva, em episódios semanais, a obra foi violentamente atacada. Mesmo se em parte as reacções negativas tiveram origem na declarada hostilidade das publicações do grupo Axel Springer, contra o qual Fassbinder tinha tomado posição, como muitos outros artistas e intelectuais alemães, não custa admitir que, apesar da opção sistemática por enquadramentos aproximados mais conformes ao “pequeno écrã”, a lógica narrativa centrífuga da obra é de molde a provocar desorientação e irritação num público televisivo formatado por códigos “mainstream”.
(Note-se que uma mesma apologia da banalidade é retomada na mais recente diatribe do prof. Vasco Correia Guedes, vulgo Pulido Valente, justamente contra Berlin Alexanderplatz, na “Atlântico” deste mês, declarando-o representativo de “todos os vicíos do cinema independente”, nomeadamente por ser lento, o que podendo ser de pasmar vindo do argumentista de um filme tão académico e soporífero como Aqui d’El Rey! – ou Lieutenant Lorena na sua versão de série televisiva -, até abre hipóteses de um indirecto elogio).
Todavia é também indiscutível que um dos aspectos capitais da obra, a (magnífica) fotografia extremamente sombria e com tons degradados de Xavier Schwarzenberger, exige a maior definição da projecção cinematográfica e não deixa de colocar problemas ao visionamento num ecrã televisivo.
Há precisamente um ano atrás, no Festival de Berlim, foi apresentada a versão restaurada da obra. Recentemente, com base nesse trabalho restaurado, a Prisvídeo lançou a obra no mercado português, numa caixa de 6 dvds – edição preciosa, completada com dois relevantes complementos de enquadramento histórico, mesmo que ainda assim se possa notar a falta de mais algum aparato crítico, um livrete inclusive, que neste caso seria bem justificado.
Sucede que agora, a partir de hoje, em epílogo ao ciclo integral, a Cinemateca Portuguesa também apresenta Berlin Alexanderplatz .
Continuo firmemente convicto que a projecção em sala é uma condição ontológica do cinema. Não invalida isto as muitas possibilidades de acesso e de revisão fornecidas pelas edições em dvd. Mas mesmo a própria visão em dvd, que é de uma outra ordem (até porque raramente concentrada e na totalidade da sequència temporal) pode ter uma diferente intensidade de aproximação se houver uma memória concreta da experiência em sala.
Para os que não conhecem Berlin Alexanderplatz nos termos em Rainer Werner Fassbinder concretamente concebeu essa peça central da sua obra, “um filme em 13 partes e um epílogo”, é pois tanto mais importante esta oportunidade agora na Cinemateca, para depois sim retornar à edição em dvd, que neste imenso mosaico há por certo tanta coisa para ainda descobrir e a que retornar.
Berlin Alexanderplatz
Cinemateca Portuguesa: segunda 11, partes 1 e 2; terça 12, 3, 4 e 5; quarta 13, 6, 7 e 8; quinta 14, 9, 10 e 11; sexta 15, 12 e 13; sábado 17, epílogo – sempre às 22h.