Para além de todos os outros aspectos, alguns até eventualmente controversos em termos factuais, há um facto indesmentível na sequência dos dados que o “Público” noticiou: o Eng. Técnico José Sócrates Pinto de Sousa assumiu a autoria destes projectos. E isso é si mesmo um facto estético e cultural medonho, um facto político também.
O homem que reclama a asssinatura destes projectos foi depois, nomeadamente, Secretário de Estado do Ambiente e Ministro do Ambiente com a tutela do ordenamento do território – do ordenamento do território, sublinhe-se bem. É agora Primeiro-Ministro de um governo que no seu arsenal propagandístico inclui o novo-riquismo da mais recente colecção fotográfica encomendada pelo ministro Manuel Pinho, esse exemplo de parolice consumada que é a campanha “Europe’s West Coast”.
Pois, será a “west coast”, mas no “inland”, no interior, como afinal no caos urbanístico de tantas autarquias, não faltam exemplos à revelia dos mais elementares padrões estéticos, arquitectónicos e de qualidade de vida, exemplos como estes de autoria assumida por José Sócrates.
A este respeito, transcrevo um mail do arquitecto Pedro Gadanho:
Um país de patos bravos
Num momento em que Portugal se procura relançar como West Coast, o último pequeno escândalo que envolve o nosso PM é apenas patético. Para além da eventual ilegalidade dos actos praticados, o que aqui se joga é a imagem de uma cultura nacional. Trata-se dessa cultura bacoca e mal-formada que tarda ainda a revogar um Decreto-Lei, o famigerado 73/73, que simplesmente devolverá a competência de projecto àqueles com quem sempre deveria ter estado. Trata-se da cultura que durante algumas gerações premiou a chico-esperteza e a saloiice. Se, num contexto de mudança, os erros de juventude fossem realmente para se corrigir, se esta cultura fosse mesmo para superar, esperar-se-ia que Sócrates aproveitasse esta tragicomédia para fazer o mea culpa e procurar mudar a paisagem. Quando envereda por desculpas esfarrapadas, quando afirma a sua autoria dos projectos agora vindos a lume, o PM esquece o essencial: são aquelas imagens e aqueles crimes estéticos contra a paisagem que é preciso combater. Lançar uma West Coast cujo PM se declara ufano autor de tais projectos é um contra-senso de marketing político.
Pedro Gadanho, arquitecto
Para além das questões específicas que dizem respeito ao exercício da actividade dos arquitectos – o tal malfadado Decreto-Lei 73/73 que abriu a capacidade projectista a outros -, mas que no fundo nos afecta a todos e à paisagem construída do país, importa sublinhar que “são aquelas imagens e aqueles crimes estéticos contra a paisagem que é preciso combater” , e que “lançar uma West Coast cujo PM se declara ufano autor de tais projectos” não é apenas “um contra-senso de marketing político” mas ainda mais soa descaradamente a uma feira de vaidades.
ADENDA – O texto de Pedro Gadanho figura hoje também nas cartas ao director do “Público”.
Quando da apresentação, também no São Luiz, de uma anterior obra de Luís Tinoco, já essa sobre textos de Terry “Monthy Python” Jones, Histórias Fantásticas, que especialmente saudei, tive ocasião de relembrar Zapping, esse brilhante objecto paródico, com uma deslocação rápida de materiais musicais, como se fossemos sintonizando sucessivos postos radiofónicos, nos quais ouvíamos designadamente duas obras que também integravam o programa do concerto em que foi estreada, a Sinfonia nº102 de Haydn e a Sinfonia nº39 de Mozart – é, por assim dizer, uma obra “em situação”. E escrevi então que, apesar de se poder temer um carácter circunstancial, isto é, que supunha uma diferença acrescida entre percepção e compreensão da obra, pois que implica no ouvinte o quadro paródico, Zapping afinal deixara marcas, sendo com Sundance Sequence uma das obras de Tinoco que Histórias Fantásticas evocava.
Já agora também me ocorre que quando da estreia de Zapping escrevi que a obra era brilhantemente representativa de um aspectos mais notórios da condição pós-moderna, as práticas de “paródia” – a serem entendidas não só ou nem tanto no sentido humorístico corrente, mas no de trabalho explícito sobre referências e materiais anteriores.
Há uns tempos atrás, num encontro casual com Luís Tinoco – mas que não por acaso ocorreu quando ambos nos debruçávamos numa discoteca sobre as estantes de jazz –, disse-lhe que tinha acabado de ler no programa do Festival Musica de Estraburgo de 2007 um texto falando de “composição pós-pós-moderna” e que imediatamente me ocorrera também ele.
Por isso, trago também para aqui os termos desse texto de Antoine Gindt: “Segundo alguns, continua a haver duas filiações musicais na Europa: os herdeiros de Schönberg e portanto de uma vanguarda globalmente atonal, e os prossecutores de uma tradição mais académica na qual orquestração rima com harmonia.. Mas eis que surge, ao lado deste debate vetusto, uma tendência que reclica e reintegra materiais mais heterogéneos da história recente da música: será zona de margens, ‘no music’s land’ ou futuro da composição pós-pós-moderna?”
Curiosamente em contraste com um caso como o de Emmanuel Nunes (por este ser compositor em destaque no mesmo festival), Gindt falava de uma nova geração “para a qual o material também provém de um potencial mais largo de potencialidades já manufacturadas, mais imediata e directamente reconhecíveis, colhidas no banco mundial de sons, um mundo em reciclagem permanente, porque à distância e facilmente disponível. A citação pela colagem e ainda mais a impressão sonora constituem novos utensílios para o compositor”. E falava de autores que recusam a separação estrita entre “high art” e “low art”, de uma geração que adoptou a heterogeneidade colhendo também as influências e heranças do jazz e do rock, compositores como Heiner Goebbels, Fausto Romitelli, Bernhard Lang, François Sarhan e Oscar Bianchi – elenco em que se podem incluír também o notável Bruno Mantovani e, creio bem, Luís Tinoco.
A biografia de um autor, de um qualquer autor, não é a “chave” de interpretação da sua obra, e ainda mais em música. Mas também há dados biográficos que podem ser esclarecedores quando algumas características se tornam manifestas. Cabe assim recordar que para além da sua formação clássica, Luís Tinoco também cresceu no meio do jazz, por via do seu pai, José Luís Tinoco (de resto também um dos notáveis “song-writers” portugueses), e praticou ele mesmo o jazz, como cabe recordar que antes de optar pela composição e a Escola Superior de Música tinha primeiro frequentado a Escola Superior de Teatro e Cinema.
Terry Jones e Luís Tinoco
Evil Machines é de algum modo uma obra eminentemente cinematográfica. Se em Sundance Sequence o “script” era por assim dizer virtual, embora importante à narratividade da obra, agora o gesto foi mesmo o de pôr um texto em música, de o “musicar”. Já escrevi, logo após a estreia da obra, que enquanto Terry Jones se lhe refere mesmo como “ópera”, Tinoco mostra-se mais circunspecto na caracterização, correctamente a meu ver, a designação mais pertinente sendo a que consta do próprio espectáculo, “fantasia musical”.
Uma ópera é (também) estruturalmente organizada pela música. Uma “fantasia musical” como esta, mesmo totalmente cantada, trabalha de modo heterogéneo as sugestões do texto, por exemplo dando-lhe a imediata concretização sonora, por exemplo integrando também a citação parodiada como a de “God Save the King”.
É inegável que os muito fantasistas e delirantes figurinos de Vin Burnhan são o dado mais imediato da realização. Mas a caracterização das personagens e situações são indissociavelmente matéria do libreto e da música.
Tinoco não temeu que Evil Machines se aproximasse do modelo do “musical”, embora de escrita mais complexa – e essa atitude é mérito seu, sinal de uma liberdade criativa em que os compartimentos da “high art” e da “low art” já não são estanques.
Aqui e além reaparece a influência de John Adams – justamente exemplo de uma situação composicional sem essas compartimentações - que tão importante é noutra obra de Tinoco, Round Time (que pode ser ouvida no seu sitío, www.tinocoluis.com), a pulsão jazzistica é recorrente, as invenções tímbricas muitas, a escrita vocal é ágil. Só num momento, “We Have All Monsters”, me parece que o compositor cedeu a uma facilidade de “canção”, porventura também porque esse é um momento de “moralidade”.
Cabe falar ainda também de um notável elenco, quase todo jovem ou relativamente jovem, com o evidente destaque desse talento consumado que é a soprano Ana Quintans, mas também, entre outros, de dois cantores que aqui confirmam serem casos a justificar atenção, o tenor Fernando Guimarães e o barítono João Merino. E há a notar que está patente o trabalho de “coaching”, que é mais que escorreita a pronúncia inglesa deste elenco português.
Mas cabe sobretudo falar de um exemplar trabalho de equipa, do entendimento Terry Jones-Luís Tinoco, dos contributos também da direcção musical de Cesário Costa, à frente da Orquestra Metropolitana de Lisboa, ou do delineamento coreográfico de Paulo Ribeiro, do trabalho de produção que implicou esta aposta do director artístico do São Luiz, Jorge Salavisa, de um espectáculo com um valor tal que a sua “exportação” nada teria de surpreendente.
Antipode, Trois Poèmes de l’Orient, Forgotten Places, Sundance Sequence, Invention on Landscape
Eileen Hulse
Lontano, Odaline de la Martinez
CD Lorelt
Luis Tinoco é um dos mais brilhantes e inventivos compositores portugueses. Invention on Landscape, uma das obras incluídas neste disco, é particularmente sintomática, de modo explícito, de uma sua característica distintiva: Tinoco é um construtor de paisagens musicais. O seu pensamento é fundamentalmente harmónico, delineando subtis curvas de mobilidade e texturas, mas também com uma forte noção concreta do “som”, dessas texturas que compõem as paisagens no tempo, e com um sentido narrativo muito particular.
De resto, atentando ainda aos títulos, poderá notar-se que não é só Invention on Landscape, mas também Antipode e Forgotten Places, mesmo Trois Poèmes de l’Orient sobre poemas de Pessanha (embora esta se me afigure a obra menos convincente do presente conjunto), que têm essa noção evocativa de espaços e paisagens – espaços imaginários de paisagens musicalmente construídas.
Músico também de formação jazzística, Tinoco tem igualmente uma notável sentido da pulsão e é plausível que essa marca de formação seja vectorial ao seu notório pendor por instrumentos de palheta, clarinetes e saxofones.
Se há marcadamente nele um pensamento harmónico, não é em sentido estático, mas no dessas curvas de mobilidades e texturas, com as quais se prendem o sentido não só da pulsão como também da narratividade. Uma obra como Sundance Sequence, que tem um autêntico “script” (a que se deverá atender no sentido evocativo de situações, que não propriamente descritivo), revela também uma ironia muito peculiar, diria mesmo hilariante na utilização paródica de referências, como a harmonização “hollywoodiana” de excertos de Rituel de Boulez ou na reestruturação ao modo da “escola de Darmstadt” de excertos de Ritual de Chick Corea (outro exemplo brilhante desta sua capacidade de trabalhar com originalidade o segundo grau é o uso de materiais da Sinfonia nº102 de Haydn e da Sinfonia nº39 de Mozart em Zapping).
Umas das vantagens de um disco deste como é a de possibilitar um retrato mais próximo do autor. E, nesse sentido, esta reunião de obras, em cuidadadas realizações, não só confirma as razões do interesse que o trabalho composicional de Luís Tinoco vinha suscitando, como configura sem margem para dúvidas uma personalidade de vincadas características próprias.
A edição foi apoiada pela Gulbenkian e pelo Instituto Camões. A recepção crítica é que lamentavelmente foi quase nenhuma. E após uma importação inicial, o cd já nem está em distribuição no mercado português – mas se é lacuna sintomática, também se pode supri-la com facilidade no mercado electrónico.
Retrato de grupo: Jasper Johns, Merce Cunnhingham, John Cage, Carolyn e Earle Brown e Roberr Rauschenberg. É em particular importante ter presente o enorme impacto artístico da actividade dos dois pares masculinos, Cunnhingham-Cage e Johns-Rauschenberg
John Cage e Merce Cunningham começaram a frequentar o Black Mountain College, na Carolina do Norte, em 1948. Foi aí, no ano seguinte, que o jovem pintor Robert Rauschenberg os conheceu, tornando-se um outro membro da “comunidade” que se ia constituíndo, com Morton Feldman e Christian Wolff, o pianista (e ocasional compositor também, para Cunningham) David Tudor, e enfim, Carolyn e Earle Brown, que Cage e Cunningham conheceram em Denver em 1952 e atraíram para Nova Iorque (Carolyn Brown, que foi uma das mais importantes bailarinas de Cunningham, uma das traves da companhia, publicou recentemente uma volumosa memória, Chance and Circunstance - Twenty Years With Cage and Cunningham; Cage aliás relatou, e o testemunho de Christian Wolff confirma, que a chegada de Browne provocou inicialmente um choque com Feldman).
É com este rede constituída, que ocorreu a dupla deflagração sucessiva de Agosto de 1952, que tão considerável impacto cultural iria ter.
A progressiva integração do silêncio no processo composicional alterava por completo as condições de percepção da música, na perspectiva de Cage. Se “o silêncio, em termos gerais, não é uma evidência, a vontade do compositor é-o”,donde decorre que pode ser “vontade do compositor” fazer ouvir “o silêncio”.
Em rigor, não se trata do “silêncio” enquanto “não som” ou “vazio” – pelo contrário, o estrito silêncio é uma impossibilidade, “There is no such thing as silence. Something is always happening that makes a sound” -, mas do contínuo do todo sonoro que não é objecto de escuta, nos termos em que a música é objecto de escuta.
São estes os pressupostos de 4’33’’,a famosa peça dita “silenciosa”, apresentada pela primeira vez por David Tudor em Woodstock, a 29 de Agosto de 1952, pensada de facto como uma obra musical, com três andamentos – só que os instrumentos presentes em palco não produzem som.
De modo deliberado ou não, 4’33’’ transformava-se também numa acção em palco. Mas a barreira entre participantes e público fora já abolida (ou isso se tentara também) dias antes, a 16 de Agosto, com o Theater Event nº1 no Black Mountain College, o que depois seria referenciado como primeiro “happening”, quando na sequência de Cage, e mesmo directamente dos seus cursos na New School of Social Research em Nova Iorque, no fim da década, surgiu um conjunto de “performers” que se dedicaria a tais práticas, entre os quais Allan Krapow, que cunharia esse termo “happening”.
Cage delineou uma estrutura rítmica, e encarregou-se de uma conferência – com silêncios devidamente previstos. Cada participante ou grupo de participantes tinha um “compartimento”, e uma vez tendo-lhe sido dada a indicação para começar, poderia dispôr como entendesse. M. C. Richards e Charles Olson diziam poemas, Rauschenberg manipulava um gira-disco, David Tudor estava ao piano e Cunningham e alguns dos seus bailarinos circundavam a assistência assim envolvida, com algumas das White Paintings de Rauschenberg (rasas, tanto quanto 4’33’’ o podia também ser) suspensas.
Esse foi o princípio de todos os “combinings” que Cage iria organizar, a apresentação simultânea de várias obras ou acções. Note-se, “combinings”, por um lado, e por outro “combines”, os trabalhos que Rauschenberg iria desenvolver; princípios de combinatória e multiplicidade.
É importante assinalar que se John Cage foi uma influência fundamental ao percurso de Robert Rauschenberg e, por via deste, ao de Jasper Johns (tanto que os dois pintores, com o cineasta de Emilio de Antonio, foram os organizadores do concerto retrospectivo dos 25 anos de actividade do compositor, a 15 de Maio de 1958, no Carnegie Hall), as constelações pictóricas e visuais da “New York School” foram mais complexas, e que nessa complexidade se revela também algo das diferentes personalidades dos compositores.
Compositor de intricadas texturas e de grandes expansões temporais, como outros eram pintores de grandes superfícies, Feldman esteve fundamentalmente ligado ao “expressionismo abstracto”, face ao qual Rauschenberg se vinha colocar em contra-corrente. A maravilhosa Rotkho Chapel, De Kooning ou Piano Piece for Philip Guston são obras de títulos e dedicatórias esclarecedoras, tal como o facto de ter escrito a música para o documentário com Jackson Pollock.
Já Earle Browne, autor de grande formação plástica, colhia fundamentalmente de Pollock e da “action painting” o gesto, mas também nele havia a influência maior dos “mobiles” de Calder. O famoso December 1952, uma das peças de Folio and Four Systems, foi o verdadeiro pradigma das “partituras gráficas” – e de resto, simplesmente olhando para a partitura, é difícil não evocar Calder mas também Mondrian.
Joan La Barbara jogando com John Cage
Prosseguindo o ciclo paralelo à exposição Robert Rauschenberg: Em Viagem 70-76, é hoje a vez de actuar no Auditório de Serralves Joan La Barbara, em concerto que conta também com a participação de dois membros do Drumming, Miguel Bernat e Nuno Aroso.
Compositora, performer e artista sonora, Joan La Barbara é uma prodigiosa exploradora e virtuosa da voz humana. Na sua discografia destacam-se nomeadamente Three Voices For Joan La Barbara que Morton Feldman lhe dedicou e Joan La Barbara Singing Through John Cage
John Cage- Experiences, No. 2 (1948)
Earle Brown - December 1952 (1952)
John Cage - Aria (1958)
John Cage - The Wonderful Widow of Eighteen Springs (1942)
John Cage - Nowth Upon Nacht (1984)
John Cage - 4'33" (1952)
Morton Feldman - Only (1947)
John Cage - 0'00" (4'33", No.2) (1962)
John Cage - A Flower (1950)
John Cage - Music for Three (by One) (1984)
John Cage - Solo for Voice 2 (1960)
John Cage - Solo for Voice 49 (1970) de Song Books
John Cage - Solo for Voice 67 (1970) de Song Books