Não foi por certo um “grande cineasta” e era mesmo fácil, demasiado fácil, considerá-lo representante de um academismo com qualquer coisa de serôdio, “cineasta de prestígio” que também foi para espectadores não motivados por atenção crítica. Mas Sidney Pollack (1934-2008) era o caso raro de um realizador, de um “fazedor de filmes”, ciente dos seus limites e dedicado à matéria humana das emoções e dos sentimentos, e desde logo aos actores, e em específico aqueles actores icónicos que designamos por “stars” – começou com Sidney Poitier, e ao segundo filme, This Property Is Condemned/A Flor à Beira do Pântano, encontrava Robert Redford que, numa invulgar associação, protagonizaria sete filmes seus. E uma invulgar associação que de algum modo leva mesmo à consideração específica de Pollack como “cineasta americano”.
Este ex-actor, que em anos mais recentes o voltara a ser esporadicamente (para Woody Allen em Maridos e Mulheres, para Kubrick em Eyes Wide Shut) dirigiu também Burt Lancaster, Robert Mitchum, Nathalie Wood, Jane Fonda, Barbra Streisand, Sally Field, Dustin Hoffman, Meryl Streep, Al Pacino, Harrison Ford, Tom Cruise ou Nicole Kidman – foi aliás Lancaster que lhe sugeriu que passasse de actor a realizador.
Com uma década de atraso, seguiu o caminho dos que chegaram ao cinema vindos da televisão, e os meados dos anos 60, quando se estreou na realização, foram dos tempos mais desérticos em Hollywood. O seu caminho foi aquele, em grande medida impossível, de prosseguir o classicismo e em particular as “ficções liberais”. Quando já havia, em meados dos anos 70, os primeiros sinais da geração dos movie brats, que iria alternar as coordenadas do sistema, Pollack foi, juntamente com Alan J. Pakula, um expoente dessas “ficções liberais” que os tempos, as heranças do Vietname e do Watergate, tornaram em ficções de “paranóia” – e neste sentido, até para além do seu valor intrínseco, Yakusa e Os Três Dias do Condor são por certo dois dos mais filmes mais representativos dos seventies.
Era eminentemente um cineasta urbano, que no entanto fez fora desse meio os seus melhores filmes, Jeremiah Johnson/As Brancas Montanhas da Morte e Out of Africa – este um projecto de risco que, coberto de Óscares, acabou por ser o mais bem sucedido da sua carreira, nos termos de um sistema em que se colocava –, O Cowboy Eléctrico fazendo de algum modo a passagem entre uns e outros filmes.
Sidney Pollack tinha a perfeita noção de que não era um estilista – entenda-se, um autor de um estilo cinematográficop próprio – e que se situava num middle ground ou mainstream revoluto. Desse ponto de vista, o insucesso de Havana (1990), a sua última colaboração com Robert Redford, marcou também o final da sua mais característica produção – e agora, ao reler após 17 anos a conversa que então tivemos, estava ele amargurado pelo insucesso do filme, o que mais surpreende é a sua lucidez perante o capítulo final que Havana necessariamente era, e foi.
Com os seus últimos trabalhos, deixou ainda essa herança das “ficções liberais”, como actor face a George Clooney em Michael Clayton de Tony Gilroy, que produziu. E foi de algum modo ainda um “ícone”, ou melhor, um fazedor de objectos icónicos, que filmou no seu último trabalho como realizador, o seu único documentário, Esboços de Frank Gehry (editado em dvd em Portugal pela Midas).
E eu, que nunca fui grande apreciador do seu cinema, com excepção de Os Três Dias do Condor e sobretudo de Jeremiah Johnson, devo acrescentar que Sidney Pollack me merecia imenso respeito, um realizador afável e franco como poucos de notoriedade.
Sempre aliás guardei a memória de que a conversa ocorrida nesses inícios de 1991 – era a altura da Guerra do Golfo, o que também convém notar – fora diferente de todas as outras que tive ao longo de anos: Pollack não fazia parte do meu “panteão” pessoal, e nisso a entrevista foi de facto diferente, mas intrigava-me e interessava-me quanto a longa relação Pollack/Redford era um facto importante do cinema americano. E, como disso, ele foi um conversador franco, sendo que por causa de um filme que persistiu obstinadamente em defender, os factos da conversa não era até propriamente motivo de cumplicidades imediatas.
Há actores tentados pela realização e Robert Redford foi um dos que fizeram a passagem. Há reaìizadores que antes pensaram ser actores e um deles é Sidney Pollack. O que torna singular a obra deste realizador limitado, ou fazedor de filmes tradicionais como ele próprio diz, é antes do mais a sua continuada colaboração com Robert Redford. Uma colaboração longa mas mais do que uma colaboração, desde logo pelo estatuto que Redford teve como uma das imagens da América e pelo modo como essa imagem e as suas mutações são um eixo condutor nos filmes de Pollack.
Depois de África Minha Pollack dedicou-se sobretudo à produção. Quanto a Redford, é cada vez menos actor, dedicando-se à realização e ao Sundance Institut onde autores podem preparar os seus filmes longe de Hollywood. Voltaram a encontrar-se em Havana. Jack Weil , a personagem de Redford, é um jogador de póquer americano que chega à capital cubana pouco antes do triunfo dos guerrilheiros. Tem uns 54 anos, mais ou menos a idade de Redford, e a de Pollack, e a sua dedicação ao jogo será perturbada pelo conhecimento de uma mulher sueca (Lena Olin) casada com um revolucionário e envolvida em actividades clandestinas.
Poderia ser um filme dos anos 50, e se não o é, num curioso circuito de tempo, é precisamente porque essa imagem de Redford, que vem dos anos 60, que poderia ter algo de kennediano e em que politicamente a América se terá revisto pela última vez quando Jimmy Carter ainda sorria, essa imagem está envelhecida.
Como reage se lhe disser que Havana é um filme antiquado?
SIDNEY POLLACK- Depende. Há pessoas que o dizem no melhor sentido, outras em sentido negativo. Depende. Há pessoas que preferem algo mais contemporâneo, técnicas mais inovadoras, etc. As raízes da minha técnica cinematográfica são muito tradicionais, muito pouco imaginativas em termos de estilo. Não sou um estilista do cinema, porque me preocupo sobretudo com a história e as personagens. Tenho a certeza de que os meus filmes foram fortemente influenciados pelos que vi quando era um jovem estudante; foi no final dos anos 40 e nos anos 50, e eram filmes clássicos americanos. Por isso depende – se se gosta dos meus filmes, diz-se que são tradicionais; se não se gosta, chama-se-lhes antiquados.
O passado está também presente por esse elemento de nostalgia que é muito importante nos seus filmes, como em O Nosso Amor de Ontem [The Way We Were] ou Havana.
Sim, sim. Eu até acho que as personagens que Redford tem vindo a interpretar têm muito em comum, são muito a mesma personagem em todos os filmes, só que vai ficando cada vez mais velha. Havana é uma espécie de fim da estrada.
Há quanto tempo se conhecem?
Há uns 30 anos. Conhecemo-nos em 1960. Éramos ambos actores.
E ele tornou-se o actor que V. não foi, é isso?
Sim.
Será ele então o seu alter-ego nos filmes?
Bom, eu não penso conscientemente nele como um alter-ego, mas ele tornou-se um porta-voz regular das minhas preocupações. Desempenha o papel do americano ambivalente melhor que ninguém, ou seja, o tipo com um aspecto exterior suave e um interior mais perturbado e sombrio. Nesse sentido, ele é uma excelente metáfora para a América.
Se com Havana não tentou fazer um Casablanca,e se não tentou fazer de Redford o seu Bogart, perguntar-lhe mesmo assim se há algum actor clássico americano de que se tivesse recordado.
Eu estava a tentar captar a forma de estar dos anos 50, que foram um momento de viragem, e não apenas para a América. Nos anos 50, havia uma espécie de inocência, de ingenuidade, algo de displicente, que mudou na América, para sempre, a partir dos anos 60. E acho que também no resto do mundo.
O filme é inteiramente sustentado em Redford. Para tomar os maiores modelos clássicos, digamos que ele poderia combinar a virilidade de um Clark Gable com o olhar inocente de um Henry Fonda. É uma característica de Redford ou foi V. que tentou combinar esses dois tipos de heróis clássicos americanos?
Sim. Eu queria que ele fosse um herói clássico. Jack Weil não passou nenhum tempo na vida a pensar noutra coisa que não fosse procurar o prazer. É um herói relutante. Há qualquer coisa de clássico nos heróis relutantes americanos, no homem que é empurrado para o acto heróico sem ter nenhuma decência básica. O importante para mim foi não o levar a cometer um acto político, o que seria demasiado fácil. Acaba por ser muito político, porque é ele que salva a personagem politicamente mais importante. Também é ele que traz os barcos para terra. Ironicamente, ele comete dois dos actos políticos mais importantes do filme, mas nenhum deles por razões políticas – e isso é muito americano. Não é por ele estar preocupado com a política, mas aparece e age – o que faz pensar num herói à moda antiga, que ele de facto é.
Quando insiste em que Weil/Redford está a terminar algo, embora não o saiba, acha que ele poderia ser Jeremiah Johnson ou o homem de África Minha, mas cansado da solidão?
Absolutamente. Quando estava a fazer África Minha disse a Redford que a sua personagem podia ser uma combinação do espírito de Jeremiah Johnson com o homem descomprometido de O Nosso Amor de Ontem. Era por isso que ele estava em África: afastava-se da sociedade tanto quanto possível para evitar ter de ser responsável por outras pessoas; encontrou então aquela mulher, a personagem de Meryl Streep, que insistia que, para terem uma relação, ele teria de desistir de uma parte de si próprio, o que ele recusava. Agora há este Jack Weil, menos culto do que o homem de África, mas que é o mesmo, só que velho, Tal como eu, tal como nós ambos.
Redford já era este tipo no primeiro filme que fizemos junto, A Flor à Beira do Pântano; era o homem sem passado, que no fim fica sozinho. E continuámos a seguir esse tipo em As Brancas Montanhas da Morte e os Três Dias do Condor, em O Nosso Amor deOntem e O Cowboy Eléctrico, e só em África Minha me apercebi de que era sempre o meu tipo. Quer dizer, andámos 25 anos a seguir esse tipo, sem o sabermos. Mas agora há algo que terminou para ele – não há Barbra Streisand, Jane Fonda ou Meryl Streep atrás dele, agora é ele que segue uma mulher.
com Catherine Malfitano, Bryn Terfel, Richard Margison
Encenação de Nikolaus Lehnoff
Orquestra da Concertegebow de Amsterdão
Riccardo Chailly
Realização de Misjel Vermeiren
DVD Decca/Universal
Esta é uma Tosca de antologia, uma das grandes realizações da ópera de Puccini e um dos mais exaltantes dvds de ópera!
Em 1992 Catherine Malfitano e Bryn Terfel afrontaram-se numa memorável encenação da Salomé de Strauss – em 92 e depois, que a produção viajou muito a seguir à estreia no Festival de Salzburgo, na que foi então um dos mais exaltantes momentos da minha experiência de espectador. Seis anos depois encontraram-se novamente nesta Tosca, na Ópera dos Países Baixos, em Amesterdão.
A aproximação justifica-se e não só pelos dois cantores, ainda que nestes termos particulares por causa deles. Cinco anos apenas separaram as duas obras: a Tosca é de 1900, a Salomé de Richard Strauss de 1905. Ambas são ópera de um erotismo lascivo e de uma sensualidade inebriante. Ora, esta é uma Tosca em que o choque erótico, ou mesmo descaradamente sexual, é apresentado de modo selvático e em rigor mesmo de bestialidade.
O Scarpia de Terfel é o inverso complementar do seu Jokanaan da Salomé: é um “selvagem”, só que no caso um torcionário que usa o poder sem escrúpulos no intento de alcançar o objectivo de posse sexual, enquanto o outro era o objecto do desejo de Salomé.
Lehnoff e os seus colaboradores imaginaram uma dança sexual e mortal – dança de Eros e Tanatos, à maneira do que de modo tão exponencial ocorre na Salomé. Os espaços dos três actos são claustrofóbicos, armadilhos mortais – “todes kammer”, “câmara da morte”, explica mesmo Lehnoff no documentário em extra. De uma turbina sobressai uma hélice, omnipresença ameaçadora, que em vez de sugerir um ventilador e ar mais reforça a angústia.
Neste quadro, o afrontamento de Tosca e Scarpia é a dança mortal dos sentidos, que os que intérpretes conduzem ao paroxismo. A interpretação de Terfel – que se estreava no papel – é absolutamente colossal E se a Tosca de Malfitano não tem a estatura das maiores, Olivero ou Kabaivanska para além do caso à parte de Callas, e é mesmo estridente, a sua passionalidade é de um domínio quase histérico (em que portanto mesmo as estridências não destoam), mais fazendo a tal aproximação à Salomé. Decididamente secundário face a um tal confronto de “monstros” – “monstros sagrados”, o que ainda mais salienta a coerência de leitura da obra – é o Cavaradossi de Margison, que no entanto não decepciona, enquanto raras vezes se poderam assim notar as personagens secundárias de Angelotti e Spoletta, este qual chefe de um bando de vampiros, de “nosferatus”, acólitos do sedento Scarpia – e, tanto mais a propósito, é preciso acrescentar que a realização televisiva é invulgarmente atenta.
Mas há ainda outro protagonista nesta realização magnífica: a superlativa direcção de Chailly à frente de – ponto capital – uma Orquestra da Concertgebow que confere à partitura a sua luxúria sensual. Desde que deixou a direcção do Teatro Comunal de Bologna e rumou para Amesterdão, e mais recentemente para Leipzig, Chailly dirigiu ópera poucas vezes, por razões que aliás ele refere no documentário extra – cada vez que dirige é de um empenhamento estenoante e é difícil encontrar o equilíbrio que busca entre tradição e renovação. Mas se de quase cada vez que o fez atingiu patamares de excelência, desta vez a sua direcção é mesmo magnificente.
Diga-se de novo: esta é uma Tosca de antologia, uma das grandes realizações da ópera de Puccini e um dos mais exaltantes dvds de ópera!
A partir de agora, e como anteriormente fazia em papel impresso de jornal, vou fazer uso também da menção disco recomendado, sinalizados com a forma gráfica de aplausos – só que agora não apenas para discos. É uma forma de destaque, esperando que assim mais passe a corrente, de objectos que me tocaram especialmente mais poderem suscitar o particular interesse de outros.
E, ao centésimo post, o enunciado de um programa de trabalhos para pôr a escrita em dia: reactivada a Letra de Forma, reiniciados os exercícios críticos, é tempo de não só prosseguir uma escrita de actualidade imediata como também de recuperar do tempo de interrupção. Assim, irei não só abordando novos objectos e questões como também outros entretanto passados, e sobre os quais quero ainda deixar considerações em letra de forma. Isso implica, de igual modo, fazer um percurso entre várias das instituições culturais maiores, São Carlos, Gulbenkian, Casa da Música ou Centro Cultural de Belém, tanto mais que se acerca esse tempo próprio de balanço que é o final da temporada. E há não poucas as coisas, de cinema, música, teatro, dança, etc., sobre as quais escrever.
com Elisabete Matos, Ewan Brouwers, Vladimir Vaneev
encenação de Robert Carsen
direcção de Lothar Koenigs
São Carlos, 19 de Maio
A Cavalleria Rusticana de Mascagni é baseada em Giovanni Verga, expoente do verismo literário. Subsequentemente, a que foi também designada por Giovanne scuola italiana ficou conhecida como verismo operático, categorização equívoca, já que, tudo considerado, foram de facto poucos as obras de estética “naturalista”, a citada Cavalleria Rusticana, as duas Bohème, de Puccini e de Leoncavallo, ou Il Tabarro.
O que distingue a escola é a concisão dramática, o canto spinto e di forza, a languidez e a predilecção pelo choque passional e as “emoções fortes”, qual antecipação dos media tablóide, mas ao invés do naturalismo as situações abordadas foram muitas vezes do próprio mundo das artes e representação: os Palhaços de Leoncavallo, a Tosca e a Turandot dePuccini (sim, também a Turandot, porque no fundo está a commedia dell’ arte e das máscaras de Gozzi), a Adriana Lecouvreur de Cilea, esta última e a Tosca sendo mesmo casos em que a prima-donna representa um papel de prima-donna, teatral a Adriana, operática a Floria Tosca.
Apresentou-se agora a Tosca no São Carlos, derradeira produção desta lamentável temporada. Por um lado, o teatro foi aos “saldos”, isto é, buscar à Ópera da Flandres uma encenação de Robert Carsen já com idade considerável, e por outro lado o espectáculo foi gizado como consagração local, finalmente, de uma diva, Elisabete Matos.
Nunca é demais realçar que a produção de óperas é hoje um mercado internacional, com frequente recurso a co-produções e alugueres, que isso o impõe os custos. Mas também não é demais salientar que este sistema se torna mecânico na medida em que muitas vezes, mesmo a maioria, os encenadores não supervisam eles próprios as reposições dos seus trabalhos. Sendo um prolífero encenador, essa ausência é um dado recorrente no caso de Carsen – estava ele ocupado com L’Incoronazione di Poppea, que no passado dia 18 abriu o Festival de Glyndebourne, quando pela segunda vez, depois da Lucia de Lammermoor em 2000, uma encenação sua foi apresentada em São Carlos.
Retrospectivamente, constata-se neste trabalho a predilecção pela mise en abyme que se tornou característica de Carsen. Quando da anterior produção da temporada do São Carlos, uns Contos de Hoffmann que foram verdadeiramente miseráveis, lembrei-me de imediato do esplendor vocal que tinha tido a ocasião de ouvir da vez anterior em que assistira a representações dessa ópera, na Bastilha, com Neil Shicoff e Bryn Terfel; como essa produção, encenada por Carsen, existe em dvd, pode-se verificar como, para entusiasmo sempre do público na Bastilha, a Barcarola é uma típica mise en abyme, no palco estando representada uma plateia.
Se houve um momento em que Carsen logrou notavelmente a reflexividade e duplicação especular da mise en abyme, com o Sonho de uma Noite de Verão de Britten, originalmente apresentado em Aix-en-Provence, e que também existe em dvd, forçoso é dizer que a repetição do processo se tornou estereótipo. É contudo supérfluo tecer uma exegese sobre os trabalhos do encenador a propósito desta Tosca - importa sim questionar a coerência da proposta ora re-apresentada.
Sendo Floria Tosca uma diva, e redobradamente uma personagem teatral, evidente é que a reprodução da representação e a duplicação especular da mise en abyme se justificam. A opção é obstinada neste caso, pois Carsen coloca o Acto I numa plateia, o II em bastidores de fundo do palco e o III no próprio palco, invertido a partir do fundo. O contexto político, tão importante na Tosca, é assim também secundarizado, tornado mesmo irrelevante, o que afinal mais faz sobressair os aspectos soap ou tablóide do enredo; ora, mesmo que se admita a subestimação do carácter de Mario Caravadossi, caso singular de uma personagem de Puccini com características de um herói rissorgimental verdiano, esse contexto político é não obstante fundamental ao grande afrontamento Tosca-Scarpia – que este último seja um chefe de polícia política passa contudo desapercebido nesta produção!
Mas mais grave são os pormenores supérfluos de ostentação, sobretudo no Acto I, com os alunos surgindo na “plateia” do palco quais artistas infantis nos bastidores, o primarismo da pose de star de Tosca ou a sua apresentação, no final, como madonna no altar em fundo ao Te Deum – o redobramento do teatro e da igreja é uma característica da estética barroca, não do verismo, a menos que neste que se queira sobretudo assinalar o rito sacrificial das heroínas (um dos aspectos mais marcantes das óperas de Puccini), opção que todavia também não é a desta encenação.
O azul forte e berrante do vestido da Tosca, e da tela que Cavaradossi pinta, dão “o tom”: esta é uma Tosca carregada, ainda mais primária e em tantos aspectos desleixada.
Ocorria pois que a Tosca fosse Elisabete Matos, cantora com características que serão tanto mais salientes para o papel quanto lhe ocorre ter já ela própria uma pose de diva. Mas mais: este é um papel para vedetas temperamentais como ela, quais Anna Magnani cantoras – e em 1946, a Magnani foi de resto a vedeta de Avanti a lui tremava tutta Roma, filme que era uma Tosca-anti-fascista (e não operática, mas com Titto Gobbi como herói), feito em jeito de se redimir por uns dos realizadores mais destacados do fascismo, o de Scipione l’Africano, Carmine Gallone.
É por demais absurdo protestar por princípio contra o “vedetismo” em ópera – afinal, não só foi neste género que historicamente se constituiu o star system, com os castrati e prima-donne, como ele supõe o artifício exacerbado de criaturas cantantes, expoentes de uma convenção artificiosa. E, na prática das concretas produções, é evidente que um dos pressupostos de base das escolhas artísticas é o de programar também em função dos atributos de peculiares específicos intérpretes.
As capacidades de Elisabete Matos, e o estatuto de notoriedade que atingiu, mais que justificam que houvesse enfim no São Carlos uma produção gizada em seu torno, que não apenas os Amor Brujo e Cavalleria Rusticana que interpretou nas últimas temporadas – e se se relembrar que em 2003 foi cancelado um Navio Fantasma em que ela devia participar, mais se compreende e justifica a opção.
Todavia, se tem as capacidades vocais e temperamentais, também lhe falta, pelo menos por ora, o canto appassionato e o slancio que o papel exige – e quanto a isso o “Vissi d’arte”, momento culminante da prima-donna, aliás redobrado nesta produção, com as luzes a acenderem-se na sala, foi afinal um anti-climax –, e a sua Tosca é arrebatada mas não isenta de tiques de vulgaridade. Sendo Elisabete Matos uma intérprete trabalhadora e com uma noção inteligente das suas capacidades e do aperfeiçoamento que ainda necessita, a Tosca, sendo já um seu papel de eleição, poderá ganhar mais consistentes contornos no futuro, que não apenas tão imediatamente vistosos. E, de qualquer modo, faltou para a guiar aqui uma mão inspirada, que manifestamente não houve.
Depois de tantos desastres que se foram sucedendo ao longo do presente temporada do São Carlos, poderemos ser tomados por uma sensação de alívio por esta Tosca ao menos ser uma produção aceitável, o que é inegável – mas isso não basta.
Por exemplo, se um dos traços mais tristemente marcantes foi a aflitiva mediocridade repetida de maestros, Lothar Koenigs é de uma outra bitola. Tenho tido a ocasião de o apreciar várias vezes, sobretudo em reportório das primeiras décadas do século XX, por exemplo quando da estreia na Ópera de Lyon da produção do Wozzeck que o São Carlos depois apresentou no CCB, na temporada passada – e tive também a ocasião de dizer que se muito mais apreciei em Lisboa foi fruto, nomeadamente, de uma superior direcção de Eliahu Inbal. Fico que de facto com dúvidas que a Tosca lhe seja obra indicada, porque no seu empenhamento dramático falta ainda assim o sentido claustrofóbico da extrema concisão do Acto II, o apuro do trabalho sobre a gradação das cores instrumentais, o sentido lânguido e da agógica tão particulares a Puccini.
Quanto aos restantes intérpretes, que em função das opções de produção não foram escolhas de fundo, há a notar o reluzente timbre do tenor Ewan Browers/Cavaradossi, que contudo (e na récita de dia 21, pelo menos, terminou o “E lucevan le stelle” com um escusado e terrível trilo), e o “erro de casting” que é o Scarpia de Vladimir Vaneev, excelente baixo mas noutro repertório (recorde-se o seu Boris Godounov) e sem as cores mais baritoniais que a tipologia do papel exige.
O facto de esta produção ter sido justificada por Elisabete Matos e não ser tão medíocre quanto as anteriores da temporada não deve pois obliterar que é uma Tosca berrante mas desinspirada.
Está entretanto em linha na artecapital a nova crónica do Estado da Arte, a que atribuo especial relevo, pelos factos que sumaria e a questão que coloca: “Arte do Estado?”
“Num conjunto de artigos sobre ‘Arte e sistema’, em 2003/05, entendi trazer claramente ao debate público a consideração de como um conjunto restrito de mediadores privilegiados se constituíam numa esfera autónoma e num exorbitante poder próprio, uma ‘nomenkultura’. Forçoso é constatar agora que essa situação se agravou com muitos mais directas imbricações em instâncias do poder político executivo.”
Em particular abordo o intervencionismo do Manuel Pinho no domínio artístico, de resto tanto mais notório quanto não há praticamente sinais de ministro da Cultura, e a sua promiscuidade com as iniciativas do BES no campo da fotografia, designadamente de iniciativa de sua mulher, Alexandra Fonseca Pinho.
Não é contudo o único exemplo de um enviesamento de intervenções culturais públicas.
“A objectiva legitimação do sistema instituído de promiscuidades, concretiza-se no facto do assessor para a cultura do primeiro-ministro ser o crítico e programador que por si só representa exponencialmente esse sistema, Alexandre Melo …com o protagonismo descomplexado e sem princípios que há muito exerce, pelo menos desde o ano de 1986 em que fazia a capa desse manifesto social de distinção que foi ‘A Idade da Prata’, um vértice que justifica consideração própria.”, em próxima crónica.
È uma perspectiva sobre uma situação gravosamente inquinada.
O jornal “Público” noticia hoje, com chamada de primeira página, a saída de Rui Vieira Nery do Serviço de Música da Gulbenkian, do qual é ainda director adjunto, tendo sido expectável que viesse a suceder a Luís Pereira Leal, que se reforma.
Gostaria de fazer notar que, logo após ter reactivado esta página, fiz a ligação para a crónica Estado da Arte na artecapital, “Interrogações sobre a Gulbenkian”: “centrada na política expositiva da Fundação e na situação do CAM, a crónica também aborda outras questões da Gulbenkian - horizonte geral, processo de nova direcção no Serviço de Música, novos Programas -, que me convém desde já notar para posteriores comentários”.
Nesse texto, em linha há mais de um mês, escrevo nomeadamente:
“A abrupta declaração pública de extinção pública do Ballet Gulbenkian, em Julho de 2005 foi a confirmação de que melhores dias passaram.
Nessa ocasião, tive de recordar que já três anos antes, precisamente na sequência da eleição de Rui Vilar, havia escrito que com aquela se tinha iniciado 'a contagem decrescente para o fim do Serviço de Música [em que o Ballet se integrava] tal como o conhecemos'. Se olhar para o presente Conselho de Administração, o dado concreto existente, a minha perspectiva para o futuro da Gulbenkian, com base em muito anos de conhecimento da 'casa', é ainda mais reservada para o possível horizonte pós-Vilar: as pressões no sentido de apoio privilegiado a programas educacionais e formativos em vez de iniciativas e estruturas próprias serão, estou em crer, cada vez mais fortes.
De resto as bases nesse sentido de desinvestimento estão criadas, com o Programa Criatividade e Criação Artística e o futuro outro programa de Educação pela Arte – e os respectivos responsáveis, António Pinto Ribeiro e Rui Vieira Nery, são justamente “responsáveis” suficientes para saber o que legitimam (e o que indirectamente deslegitimam).”
(…)
Assim se vêm arrastando questões como a passagem de testemunho na ‘fundação dentro da fundação’, ou seja, o Serviço de Música, e o futuro do Centro de Arte Moderna.
Quando se tenta uma abordagem da Gulbenkian suponho que é de ter em conta ambas as questões, em vez de perspectivas exclusivamente sectoriais. E por isso permito-me supor também, mesmo que com perspectiva a prazo reservada, que dois anúncios recentes devem ambos ser considerados: a notícia da compra pela Gulbenkian da última parcela do Parque de Santa Gertrudes que lhe faltava e do consequente futuro alargamento do CAM, e o anúncio público de um concurso internacional para apresentação de candidaturas ao cargo de director do Serviço de Música.”
A notícia estava pois dada, quer a do concurso público internacional, de que o anúncio foi publicado no suplemento Emprego do “Expresso” em 16-02, quer das novas funções para que transita Rui Vieira Nery, sendo que julgo saber – e o “Público” não o diz - que o mesmo manterá contudo ligação ao Serviço de Música como consultor para musicologia, área em que o seu saber é inestimável e área em que seria da maior importância a Fundação ter uma acção destacada.
Mas como disse, o processo de nova direcção do Serviço de Música e os novos Programas, sobretudo o primeiro, são aspectos que - além da apreciação que é devida a Luís Pereira Leal - me justificam mais comentários, sendo também que, se no referido Estado da Arte invocava justamente esse exemplo para corrobar a opinião já expandida por Raquel Henriques da Silva de que deveria (igualmente) haver um concurso público internacional para a direcção do Centro de Arte Moderna, não menos acho que a decisão de concurso que a Gulbenkian tomou – ao fim de uma prolongada indefinição por parte da administradora com o pelouro, Teresa Gouveia – é um precedente importante, que a partir de agora deverá mesmo ser tido em conta noutras instituições (ou na nossa avaliação pública delas), incluindo como é óbvio noutras instituições musicais portuguesas.
Não, não são “os blogs” que leio, que esses, mais ou menos (ir)regularmente, são bem mais em número. São sim os sítios ou blogs que frequento e que têm informações úteis ou matérias afins à vocação desta página. E com isso concretizo enfim uma virtualidade que tinha presente desde o início, a desse mais mundo que o espaço digital também propicia.
Há ligações americanas, britânicas, francesas, espanholas e portuguesas. As matérias são as dos fundamentos da tecnocultura, caso do indispensável Transnets, às músicas, artes visuais, cinema e literatura, daquele que creio ser um fundamental blog de música, The Rest Is Noise, do crítico do “New Yorker” Alex Ross (que no ano passado publicou um livro fascinante com o mesmo título, de que aliás – grata notícia – a Casa das Letras lançará a edição portuguesa ainda este ano) ao Sítio do Jazz de Manuel Jorge Veloso, da informação quotidiana americana do Arts Journal Daily e do Muse Arts aos blogs do “Guardian” e do “Le Monde”, do Critical Mass da associação de críticos literários americanos e da Republique des Livres de Pierre Assouline à Ler ou às Ciberescritas de Isabel Coutinho, etc. – que irá havendo ocasião de lhes fazer referências.
Desde já, algumas notas à atenção de cinéfilos:
1) No passado dia 1 de Maio, recebi um mail de Jonathan Rosenbaum, que se reformou da imprensa escrita, anunciando o lançamento da sua página – e poder lê-lo agora assim muito mais regularmente é um prazer renovado, no exercício da inteligência crítica;
2) O blog de Bertrand Tavernier, alojado no sítio da SCAD (a sociedade de autores francesa) não diz respeito ao realizador mas ao cinéfilo, e com acuidade ímpar ele vai falando das edições em dvd;
3) Na preparação do seu novo filme, o Pedro Almodóvar também tem um blog;
4) Enquanto decorrer agora o Festival de Cannes mantenho a ligação às páginas específicas do “Libération”.