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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Cronenberg na ópera

 

 

Ópera e Cinema – I
 
Ao contrário do que se podia ler ontem na imprensa portuguesa, não é em Setembro mas hoje mesmo que estreia no Théâtre du Châtelet em Paris The Fly, a ópera de Howard Shore a partir do filme de David Cronenberg (para o qual, como em vários outros filmes do cineasta canadiano, o mesmo Shore havia composto a música), que ele próprio assim se estreia na encenação. O libreto é de D.B. Hwang, dramaturgo sino-americano, autor de M. Butterfly, caso único de uma peça que esteve na origem também de um filme de Cronenberg.
 
Se a ideia específica da ópera é de Shore, a concretização foi possibilitada por Placido Domingo. O grande tenor, que assim acrescento mais um papel ao seu já enorme catálogo, não é apenas o protagonista – como director da Ópera de Los Angeles, de que é director, co-produtora do espectáculo, deve-se a Domingo a montagem do projecto.
 
Ao contrário do que se poderia supor, em particular nesta matéria da metamorfose de um cientista numa criatura, Cronenberg anuncia que não quis trabalhar com elementos de vídeo e cinema, mas fazer “uma verdadeira experiência de teatro”.
 
Longe indo os tempos em que o canadiano era tão só tido como um “realizador de filmes de terror”, também várias têm sido as possibilidades de trabalho que lhe se têm aberto – e assim Cronenberg chega à ópera logo depois de em Toronto ter organizado uma exposição, "Andy Warhol/Supernova : Stars, Deaths and Disasters, 1962-1964".
 
(Já agora digo eu que uma das mais intrigantes “exposições” que alguma vez vi foi uma dedicada às criaturas e instrumentos dos filmes de Cronenberg – que por fina ironia estava patente no Museu de História Natural de Toronto).
 
 
Diz também Cronenberg que “a ópera é uma tentação do cinema, de que é de alguma maneira o antepassado”. E assim é, de facto, como aqui haverá ocasião de recordar. Mas se a ópera, enquanto modelo de “obra de arte total” inspirou o cinema, a relação hoje inverteu-se, na medida em que por variadas vias é ao cinema que alguns projectos e modos operáticos vão buscar inspiração.
 
Por exemplo, The Fly não é a única ópera inspirada num filme: a Ópera Real da Dinamarca encomendou ao compositor Poul Ruders uma outra, a partir de Dancer in the Dark de Lars von Trier. Já agora, recorde-se que o cineasta dinamarquês chegou a estar indicado para dirigir a nova produção da Tetralogia O Anel do Nibelungo em 2006, em Bayreuth, projecto de que acabou ele por desistir. Mas o que não tem faltado é cineastas chamados à encenação da ópera, e não deixa de ser espantosa a sintomática coincidência de que, depois de amanhã, no Festival de Aix-en-Provence, estreia uma nova produção de Così Fan Tutte de Mozart que marcará também a estreia na encenação de quem é no caso o mais inesperado dos cineastas, Abbas Kiarostami – e, em tudo opostos, Cronenberg e Kiarostami são dois dos maiores cineastas vivos. Acrescente-se ainda que, desde que no final de 2006 o Met iniciou a experiência de transmitir em alta-definição para umas quantas salas de cinema algumas produções suas os exemplos se multiplicam, e de resto essas transmissões directas já chegam inclusive à Europa.
 

Em suma, histórias e reflexões também para os próximos dias, com o toque amargo de nos fazer voltar igualmente a algumas questões do São Carlos. Por ora, The Fly e, de imediato, o senhor que se segue, Abbas Kiarostami