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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Teatros, a dança das cadeiras – II

 

Ainda que por motivos distintos, as saídas de Diogo Infante do Maria Matos e de Carlos Fragateiro do D. Maria deixam antever uma dança de cadeiras – e esperemos que algo mais que isso – nesses teatros, e não só.
 
Comecemos pelo Maria Matos: a nomeação de Mark Deputter é uma excelente notícia. Ao longo de anos de trabalho, nas Danças na Cidade e depois no Festival Alkântara, como assessor para dança de Miguel Lobo Antunes no CCB durante cinco anos, mais episodicamente como programador do Teatro Camões a convite da então directora da Companhia Nacional de Bailado, Ana Pereira Caldas, Mark Deputter deu mostras de uma rara integridade. Mas mais, a sua nomeação deixa antever um perfil específico para o Maria Matos,  e é recomendável que os diferentes equipamentos públicos, e no caso os diversos teatros municipais de Lisboa, tenham características definidas e se articulem em vez de se sobreporem. A presumível indicação mais para a dança que o novo director certamente trará ao Maria Matos preenche uma lacuna e será, é de prever, um novo importante dado.
 
Resta então saber, e não é pequeno questão, quem o substituirá na direcção do Alkântara.
 
Outra questão, bem diferente, é que depois de ter começado a “arrumar a casa”, e de facto a liquidar a funesta herança do pior consulado cultural de que há memória, o de Pires de Lima – Vieira de Carvalho, José António Pinto Ribeiro não pode deixar de se ocupar desse híbrido monstruoso que é a OPART EPE – e, de resto, recordo que ele exprimiu reservas sobre a (des)adequação dessa já em meados de Março.
 
Esta próxima temporada do São Carlos, pelas razões que analisei em detalhe aqui, aqui e aqui, está por assim dizer “perdida”, mas é desde já necessário salvaguardar o futuro, na constatação inevitável de que Christoph Dammann não tem competência para o lugar. Mas mais: não só pelas razões abaixo invocadas, a começar pela flagrante violação do programa do governo, é necessário acabar com a OPART e repor de novo autonomamente o São Carlos como, para além do disparate anunciado em São Carlos, há que dizer – e fale-se nisso muito menos – que na CNB reina o desnorte.
 
É preciso pensar desde já para o pós-Dammann no São Carlos, e não tenho a menor das dúvidas que José António Pinto Ribeiro tem a noção de que o director que devia estar em funções em São Carlos é Paolo Pinamonti, director artístico entenda-se (continuo favorável, de resto como expresso no programa de governo e posto em prática agora para o D. Maria, à separação entre a presidência da administração e a direcção artística) como não é difícil perceber nas suas próprias declarações, no “Expresso” de 13-07, que ele já terá trocado impressões com o ex-director – de resto, tão perspicaz quanto despeitado, logo o substituído intendente-geral dos teatros Vieira de Carvalho, veio reagir em carta publicada na semana seguinte.
 
Correndo o risco de estar a fazer uma extrapolação, mas atendendo a todos os dados de que disponho, estou em crer que a perspectiva de um regresso de Pinamonti ao São Carlos pode também depender de um processo que continua por concluir, o do concurso público internacional para a direcção do Serviço de Música da Gulbenkian.
 
Ou, de como isto se calhar anda tudo ligado, quais caixinhas chinesas…

Teatros, a dança das cadeiras - I

 

Tenho a maior consideração por Maria João Brilhante, hoje nomeada em Conselho de Ministros presidente da administração do Teatro Nacional D. Maria, tanto assim que em tempos idos ela foi a primeira pessoa que convidei para crítica de teatro do “Público”, funções que ainda exerceu durante algum tempo, em conjunto com Manuel João Gomes. Maria João Brilhante é certamente uma das pessoas que mais e melhor sabe de teatro em Portugal, e nesse sentido a nomeação é uma boa notícia.
 
Acontece que, segundo o despacho da “Lusa”, o ministro da Cultura, no anúncio do novo conselho de administração do teatro, foi confrontado com as persistentes notícias de que o actor Diogo Infante será o próximo director artístico do teatro. E respondeu José António Pinto Ribeiro que “o ministério não nomeia ninguém para a direcção artística, essa é uma competência do conselho de administração, que se reunirá muito proximamente”. Eis o que seria uma declaração a reter, que não sucedesse que…
 
Como variadas vezes tive ocasião de frisar, o programa do actual governo postula explicitamente a autonomização das direcções dos teatros nacionais e da Companhia Nacional de Bailado das nomeações políticas, a tarefa devendo caber aos conselhos de administração. Como bem, ou infelizmente, se sabe, a política dirigista de Mário Vieira de Carvalho foi exactamente o contrário. O cúmulo do disparate é a nomeação directa pela tutela dos directos artísticos do Teatro Nacional de São Carlos e da Companhia Nacional de Bailado, sendo que por sua vez têm também de responder a outro órgão nomeado pela tutela, o conselho de administração da dita OPART EPE, em que não têm lugar como membros de pleno direito – o que, além da contravenção ao programa do governo, facto suficientemente grave, pode levar ao absurdo do conselho de administração postular para cada uma daquelas duas entidades uma política diferente da entendida pelos directores artísticos.
 
Eu escrevi que havia um mistério na Ajuda, o do desaparecimento do ministro, quando a visibilidade é também uma condição política necessária, e sendo certo que ela se esperaria de José António Ribeiro, que não padece por certo de défice de auto-estima, de acordo com os tão laudatórios perfis dele feitos na imprensa quando da sua nomeação. Demorou tempo, bem mais do que seria compreensível, mas ele começou finalmente a aparecer, a enunciar linhas de acções e a tomar decisões.
 
Seria pois de saudar a sua declaração de que “o ministério não nomeia ninguém para a direcção artística, essa é uma competência do conselho de administração”, se não sucedesse que no caso nada nos faz crer que o processo vá de facto decorrer assim, antes tudo leva a entender, para além do que o próprio foi dizendo e foi sendo sabido, que Diogo Infante será de facto o próximo director artístico do teatro.
 
Para além de Maria João Brilhante, foram também nomeadas para a administração Maria do Pilar Lourinho, com pelouro financeiro, e Mónica Braz Almeida, com pelouro da produção. Acontece que Mónica Braz Almeida transita do Maria Matos, onde era directora de produção, digamos que “braço direito” de Diogo Infante, o que, além do que o próprio fez saber, mais indicia a próxima nomeação de Infante para a direcção artística.
 
Alguém com o saber de Maria João Brilhante oferece em princípio as garantias de que haverá uma gestão do teatro, com “qualidade, rigor e transparência” (palavras de Pinto Ribeiro). Acontece que o motivo que havia sido dado por Diogo Infante para sair do Maria Matos, o da falta de meios orçamentais, e o seu próprio perfil, também não são os mais indicados. Diogo Infante prepara-se para estrear Cabaret, o que não é seguramente o projecto que mais se coaduna com as restrições orçamentais, óbvias dada a situação da Câmara Municipal de Lisboa, e por consequência também da empresa municipal de equipamentos e gestão cultural, a EGEAC, e os teatros municipais - para haver La Féria, basta o próprio.
 
Mais: o equilíbrio de poderes no D. Maria corre o risco de ser instável (para parafrasear o título português de A Delicate Balance do dramaturgo norte-americano Edward Albee, peça aliás apresentada no Nacional do tempo da outra senhora, de Dª Amélia Rey Colaço), porque é certamente prerrogativa do director artístico encenar, e Infante terá de se limitar nas suas próprias ambições e saber apelar devidamente a outros. Mas mais ainda: não cabe exactamente ao director artístico do Teatro Nacional D. Maria o tipo de mediatização a que Diogo Infante deve grande parte da sua notoriedade, o que de resto agora foi reiterado com um concurso televisivo, “À procura de Sally”, paralelo à montagem de Cabaret.
 
Deste modo, se a saída de Fragateiro era a medida urgente e se a nomeação de Maria João Brilhante é uma boa notícia, o processo está longe de ter tido a correcção necessária.
Pelo próprio Diogo Infante, pelos motivos que invocou em relação ao Maria Matos e que são mau presságio, e pelo facto de ter feito saber que fora convidado para o Nacional. Por José António Pinto Ribeiro, que não pode pretender desconhecer as indicações para o futuro director artístico e que, por todas as razões, devia ter sido ele próprio a dizer a Fragateiro que este estava demitido. Enfim, não se esqueça, last but not the least, pelo próprio Fragateiro, por tudo o que foi a sua política e programação, pelo enorme buraco financeiro em que deixa o teatro, e, insisto, não se esqueça, pelo golpe mediático que tentou, com a entrevista ao “Público” do passado dia 13, outra demonstração da sua pesporrência e tentativa de golpe mediático quando sabia que os dados da sua gestão estavam a ser apurados – manobra que talvez explique o modo expedito como a sua demissão lhe foi comunicada não pelo ministro mas pelo seu chefe de gabinete, mas não a justifica por inteiro.
 
Uma coisa é certa, em nome do “rigor e transparência”: é curial que os factos apurados sobre a gestão de Fragateiro e o enorme buraco financeiro que deixa sejam tornados públicos.

O momento fundador (Leonhardt - III)

 

 

 

 
Em 1979, Gustav Leonhardt apresentou-se pela primeira vez em Portugal, trazido pela Gulbenkian. Na altura, havia um único cravo segundo modelo de época, no Porto, propriedade de Maria de Lurdes Alves. Assim, a 3 de Maio, Leonhardt fez um recital de cravo no Ateneu Comercial do Porto, onde em “peregrinação” o fui ouvir, e no dia seguinte tocou no órgão da Sé de Lisboa. Retomo agora o texto que então publiquei, o que é também um contributo da a história da “música antiga” em Portugal.
 
 
 
E depois de Leonhardt?
 
 
 
“A sua aparência e a forma como se apresenta em palco são severas, mas a maneira como toca define-o como um cripto­-romântico" - nestes termos se referia a Leonhardt há alguns meses o crítico inglês John Duarte; “cripto-romântico" po­derá dar azo a alguma confusão, já que poucos músicos estarão como ele tão afastados (e mesmo em oposição) dos princípios român­ticos de interpretação; mas tam­bém poucos serão tão expressivos, terão uma tão notável capacidade de comunicar ao auditor as reais dimensões duma obra (e dai o uso daquela expressão). Considerar "secas" as interpretações de Leonhardt, como alguns ainda pretendem, não é senão revelador do cabotinismo conservador de quem faz tais apreciações.
 
No Porto, Leonhardt interpretou Suites de Peças de Jacques Duphly e Antoine Forqueray e a trans­crição para cravo da Partita em ré menor de Bach, num instrumento construido por Mendorf em 1975, tendo como modelo um Dulcken de 1745 (o cravo de Martin Skowronek com que Leonhardt tem gravado Bach. foi construído segundo o mesmo modelo); poderá chocar alguns constatar que destas três obras apenas a de Duphly foi originalmente escrita para o instrumento mas que não haja quaisquer dúvidas que a transcrição é, em abstracto, perfeitamente legítima - não conhecemos por exemplo trans­crições que Bach fez das suas próprias obras?
 
Do que duvido é que as Peças de Forqueray sejam das mais in­dicadas para isso - escritas para viola de gamba e baixo continuo, publicadas por Jean-Baptiste Antoine, filho do compositor e tal como ele "virtuose" do ins­trumento (a sua dificuldade era de tal ordem que na edição figuram indicações detalhadas das po­sições) foram esquecidas com o abandono da viola em favor do violoncelo, o que acarretou o eclipse do próprio compositor a quem uma das últimas referências é uma peça de Duphly chamada "La Forqueray",segundoos há­bitos franceses de designação (por exemplo Rameau e Forqueray compuseram cada um peças com o nome do outro, e uma das do segundo tem o nome de "La Portugaise"). No cravo, estas peças (Leonhardt interpretou algumas constantes da Suite V em dó menor) tornaram-se pouco contrastadas pelo carácter lu­thié (utilização constante do abafador) e por se desenvolverem quase exclusivamente nos graves.
 
As obras de Duphly e Bach, foram assim bem mais claras do estilo de Leonhardt. que po­deremos caracterizar por um toucher extremamente preciso, pela riqueza da articulação, pelo rigor rítmico em que uma pulsação rígida não obsta à prática de descontinuidades e de abandonos retidos mas controlados (criando a sensação de improvisações), pelo carácter arpejado e sobretudo por uma agógica que valoriza a expres­sividade de cada frase preservando a arquitectura fundamental da obra. Talvez que poucas peças possibilitem uma tão clara cons­tatação destas características como a grande Chacone da Partita de Bach. com que terminou (em extra ainda houve outra trans­criação bachiana, a Sarabanda da 3ª Suite para violoncelo) um prodigioso recital.
 
Se no órgão Leonhardt mantém as mesmas características fun­damentais, numa forma porventura menos clara, outro aspecto das suas interpretações é no entanto patente - em oposição às grandes massas sonoras das concepções românticas, Leonhardt segue uma via "linear", clarificadora das diversas "vozes". Mas, no caso concreto do recital na Sé de Lis­boa, é de lamentar que seguindo um estilo de programas que lhe é peculiar. (constituído por peças raramente interpretadas). Leo­nhardt não tenha incluído qual­quer obra de autores para cuja descoberta foi fun­damental, como Frescobaldi,  Froberger e Sweelinck; se assim ouvimos as duas obras de Kerll (com a de Purcell. os pontos altos do recital), dispensaríamos bem outras como a de Eberlin.
 
O êxito obtido, sobretudo a ovação sem precedentes que lhe foi tributada na Sé, terá sido a mais evidente demonstração da neces­sidade de continuar a programar Música Antiga; é particularmente necessário que se resolva a incrível situação de não existir um cravo barroco em Lisboa; é particular­mente necessário (mas para isso o cravo é fundamental) que depois deste marco fundamental que foram os recitais de Leonhardt. possamos ouvir agrupamentos dedicados à música barroca, que têm sido talvez os mais descurados entre nós -se exceptuarmos esses pioneiros (mas cujas concepções em apectos tão fundamentais como o vibrato e a articulação, são hoje criticáveis) que foram a Schola Cantorum Basiliensis e August Weizinger, apenas ouvimos o Collegium Aureum (já depois dos seus tempos áureos com Leonhardt e os Kuijken) e a Musica de Camera de Amesterdão, com Ton Koopman.
 
Aguardemos que os Segréis de Lisboa passem a abordar também esse campo, como foi prenunciado pela sua interpretação da ária da Música do Orfeo de Monteverdi. e é possibilitado pela sua recente obtenção de violinos barrocos, e entretanto aqui fica uma pequena lista de espera: Nikolaus Har­noncourt e o Concentus Musius Wien, Jaap Schröder e o Concerto Amsterdam, o Quadro Amsterdam (Frans Brüggen, Leonhardt, Schroder e Anner Bylsma), Sigis­wald, Wieland e Barthold Kuijken, Trevor Pinnock e The English Concert, Cristopher Hogwood e The Academy of Ancient Music. Para quando?
 
 
Expresso 12-05-79
 
 
 
Como fica claro, a vinda de uma das figuras tutelares dos novos conceitos interpretativos de música barroca tornou-se efectivamente num momento fundador. Na temporada seguinte, e de resto por uma sugestão minha à então subdirectora do Serviço de Música da Fundação Gulbenkian, Maria Fernanda Cidrais (que também me importa evocar pelo seu tão importante contributo de programação), vieram os Kuijken, que interpretaram Trios de Haydn. Logo depois, no início da temporada 80/81 começaram as Jornadas de Música Antiga.
 
Mas para se ter em conta o provincianismo que havia, acrescento que no “Comércio do Porto” foi publicada uma “crítica” dizendo da surpresa por a sala do Ateneu se ter enchido para ouvir um “intérprete desconhecido” (!), e que para mais se dedicava ao cravo, “esse instrumento arqueológico” (!!).

 

Alexandra, a avó e a guerra (Sokurov - I)

 

 

 

 

 

 

 

Alexandra

de Aleksandr Sokurov
com Galina Vishnevskaya
 
Exceptuando o caso a todos os títulos singular de A Arca Russa (o filme de um único plano-sequência de quase 100 minutos no Hermitage), as ficções de Aleksandr Sokurov vêm-se organizando nos últimos 10 anos, em dois grandes ciclos: a chamada “trilogia do poder”, com Moloch, Taurus e O Sol, em torno de concretas e históricas “figuras do mal”, respectivamente Hitler, Lenine e Hirohito, paroxísticamente apresentadas de um modo estetizante e dire-se-ia que “humanizado” (passei os dois primeiros em ciclos da Culturgest, o terceiro foi exibido em Abril na Cinemateca), e o “ciclo familiar” com Mãe e Filho e Pai e Filho.
 
Alexandra poderia de facto intitular-se “avó e neto”, pois é dessa situação que se trata, prosseguindo o “ciclo familiar”. Mas a deslocação para Alexandra não é menos pertinente: nunca no cinema de Sokurov (e apesar da inesquecível Cécile Zervudacki, a “madame Bovary” em Salve e Proteja) houve uma tal presença como a Alexandra de Galina Vishnevskaya.
 
Aos 80 anos passados, a grande soprano estreou-se assim no cinema, ou quase (já lá iremos) e é por ela e em torno dela que Sokurov fez o filme. Mas, simultaneamente, na obra deste cineasta, ficcionista e documentarista, nunca uma ficção esteve tão perto do real: filmado perto de Grosny, Alexandra é também mesmo que lateralmente um filme sobre a guerra da Chechénia e mais em concreto sobre soldados russos e civis chechenos.
 
Dir-se-ia haver aqui uma “dissonância” e de facto ela ocorre no filme: Vishnevskaya consegue ser a mais próxima das avós, uma “babushka”, mas não deixa de ser uma presença grandiosa, como o modelo que Sokurov tinha em mente, Anna Magnani. Dissonância será mas não contradição. Essa presença majestosa não deixa de indiciar um “além” para lá do real imediato, o indício de uma outra possibilidade (de “redenção”?) que sempre existe no cinema de Sokurov. Ao mesmo tempo, a pose de Vishnevskaya “cola” às próprias características de altivez da personagem, ou, mais presumivelmente, as segundas foram elaboradas também em função dessa pose.
 
Uma das coisas que mais me toca e atrai no cinema de Sokurov é que a sua “espiritualidade” é sempre também questão de figuração dos seres e da matéria – e aqui nos deparamos de novo com a terra e o pó, elementos recorrentes do seu cinema, Alexandra parecendo fazendo um raccord com um dos seus primeiros filmes, e dos mais belos, Os Dias do Eclipse, filmado na Ásia Central.
 
Não há cenas de guerra neste filme, e no entanto pouco vezes as realidades de um exército em guerra nos foram tão presentes. Obviamente que, à imagem dos terrenos em que o filme decorre, Alexandra está, o próprio filme, em campo armadilhado, pela própria realidade que evoca. Vi ser censurado a Sokurov colocar-se no “lado russo” da guerra, como se o contrário é que não fosse estranho e implausível. Não se duvida, o filme não permite duvidar, que o realizador considera a Chechénia como terra russa, afirmando não obstante o seu “humanismo”.
 
Se nesta consideração é evidente que há um ponto de vista ideológico no filme, esse é apenas uma das suas camadas, e de modo nenhum a mais premente – e recusá-lo por causa desse ponto de vista é afinal bem mais imediatamente ideológico.
 
Não sei quantos espectadores (e não falo só de Portugal, mas em geral fora da Rússia) reconhecem em Alexandra a figura de Galina Vishnevskaya,. Sendo-me problemático colocar no ponto de vista de um espectador que a não reconheça, ainda assim afigura-se-me difícil que para qualquer um não seja através da extraordinária figura e da extraordinária intérprete que nos aproximamos do filme, que construímos a relação com ele.
 
Tive também a oportunidade, no último DocLisboa, de apresentar o filme anterior de Sokurov, Elegia da Vida* precisamente dedicado ao casal Mstilav Rostropovich-Galina Vishnevskaya. Quem porventura viu esse filme poderá ter constado que ele se inicia do modo mais “oficioso” em torno de Rostropovich (um jantar de aniversário seu, rodeado de Eltsin, de rainhas e esposas de presidentes da república) para depois, à medida que a arte, e a transmissão da arte, se torna na efectiva matéria do filme, se ir deslocando do violoncelista para a mulher, concluindo-se aliás com um extracto do filme-ópera (entretanto também editado em dvd) em que Vishenavskaya interpreta o papel titular da Katerina Ismailova de Chostakovich – donde, facto inédito no cinema de Sokurov, o final de um filme faz já a ponte para o seguinte, e donde o facto de acima ter escrito “ou quase” sobre esta outra estreia interpretativa de Galina Vishnevskaya.
 
Muito claramente, em Alexandra Sokurov nunca se esquece de que está também a filmar uma grande cantora, alguém que por si só própria faz uma remissão a um espaço da arte. Daí esta avó ser tão próxima e também tão altiva e grandiosa. Daí que, uma vez mais no cinema de Sokurov, a possibilidade outra, da “redenção” (recorde-se a extraordinária Pietá invertida de Mãe e Filho, invertida porque com a mãe nos braços do filho), se se quiser, da “metafísica”, ou citando outro célebre russo, do “espiritual em arte”, ser também uma questão física de matérias e rostos – e a galeria de rostos, por si só, faz de Alexandra um filme intensíssimo e inesquecível.
 
 
 
 
 
 
 
* Permitam-me acrescentar que, quando programei a Semana dos Novos Realizadores do Fantasporto, em 1992, apresentei pela primeira vez em Portugal um filme de Sokurov, O Segundo Círculo. Foram dois casos, esse e o de A Brighter Summer Day de Edward Yang, de realizadores que não estando já na primeira ou segunda obras, e não figurando portanto em concurso, se me afiguravam suficientemente importantes, e urgentes de dar a conhecer. Trata-se portanto, com Sokurov, de um caso antigo de afeição.

“Il s’entretient avec les muses” (Leonhardt – II)

 

 

Gustav Leonhardt
Obras de Louis Couperin, Froberger, D’ Anglebert, Rameau
Igreja de São Pedro de Rates, Festival da Póvoa do Varzim, 27 de Julho
 
 
Lembro-me de há anos ter lido numa revista uma caracterização sumária, ou tendencial, entre os dois grandes mestres das novas concepções interpretativas da música barroca: Nikolaus Harnoncourt seria sobretudo um intérprete da acentuação, Gustav Leonhardt da articulação. Nunca deixei de recordar essa caracterização, tanto mais que ao longo dos anos ela me foi parecendo mais pertinente.
 
Leonhardt, o “calvinista”, o “homem do “Norte”, o “severo”, é antes de mais um intérprete da absoluta fidelidade ao texto, mas também da convicção que é necessário para fazer do texto Verbo, isto é, música.
 
A noção de “prazer” é-lhe alheia (e, no entanto…), e o seu jogo digital não tem aquele sentido físico e eminentemente táctil que se encontra nalguns dos cravistas que vieram depois dele, um Ton Koopman ou um Pierre Hantaï, e que às vezes os tornam tão próximos dos pianistas de jazz.
 
Mas esse jogo digital tem uma capacidade de articulação, de dinâmicas vivas e precisas, de subtis mudanças de tempo, que realizam superlativamente as diversas linhas da polifonia, e sugerem a seu modo uma arte da conversação, mas também de um tempo ora rápido ora, dir-se-ia, em “longue durée” – a especial dimensão, estaria tentado a dizer que a “metafísica” desta arte interpretativa, foi aliás bem patente, neste maravilhoso recital no quadro ímpar da Igreja Românica de São Pedro de Rates, nas sarabandes e chaconnes, na Gaillard (lentement) da Suite em Sol Maior de D’Anglebert, numa extraordinária Toccata 3 de Froberger, e, obviamente, finalizando o concerto em extra, na 25ª das Variações Goldberg de Bach, do entre todos amado Bach, momento prodigioso do jogo dos dois teclados, momento sublime dessa dimensão “metafísica”.
 
Mas, no entretanto, houve Rameau, e Jean-Philippe Rameau é por excelência o compositor de uma “estética do prazer”. Mas a subtileza da arte de Leonhardt é suficientemente flexível e ampla para que, ainda que fosse notório o corte com o restante reportório, precedente no programa do recital, a articulação e o sentido vivo e preciso da dinâmica e dos tempos nos transmitisse todo o requinte de Les tendres plaisirs (et voilá!) ou Entretien des Muses.
 
A música será para Leonhardt um modo de “re-ligação” mas, de modo mais profano, não deixa de ser também uma conversação com as musas. É efectivamente uma arte magistral.

 

Fragateiro exonerado!

Pedro Melim - "Público"

 

 

Desta vez, está confirmado: foi hoje comunicado a Carlos Fragateiro a sua exoneração de Director do Teatro Nacional D. Maria. Lembro que em entrevista dada no passado dia 16 no "Dia D" da SIC Notícias, o ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, tinha dito que existindo agora a solicitação sua um controlador financeiro no Ministério da Cultura, e tendo chegado ao conhecimento desse ministério alguns factos de gestão depois da demissão de outro membro da direcção do teatro (José Manuel Castanheira), se pronunciaria depois de apurados os factos - o que ocorreu hoje.

 

O que não é exactamente boa notícia é a prenunciada ida para o cargo de Diogo Infante. Na sua gestão do Teatro Municipal Maria Matos, o actor, se foi capaz de desenvolver uma actividade contínua - mas não é isso o mínimo exigível? - fê-lo sempre em torno da sua pessoa, como actor e encenador. Dirigir um teatro nacional é coisa bem diferente, exige um projecto, exige uma capacidade de gestão tanto maior quanto Fragateiro deixa o D. Maria em situação  financeira delicada, e por isso a expectativa é reservada.

 

Mas agora é o momento de assinalar o afastamento de quem sempre desenvolveu uma política do pior populismo, longe das missões instituídas por lei ao Teatro Nacional D. Maria.

 

E já agora, é tempo de publicamente reclamar que o ministro da Cultura passe também das palavras aos actos no capítulo OPART, ele que já disse que aquela é uma formulação com que não concorda.

 

É mais que tempo de liquidar mesmo a herança de Mário Vieira de Carvalho, sendo o menor dos incómodos que, por causa disso, e disso ser de facto levado â prática, haja mais uns quantos artigos do distinto professor e iintendente-ideólogo-geral dos teatros nacionais no "Público".

 

Para já, "Fagateiro out", eis o que importa.

 

São Carlos, o disparate anunciado - III

 

“Candida Höfer em Portugal”
 
 
 
Salvaguarde-se que, a abrir a temporada, em Setembro/Outubro, haverá o Siegfried, prosseguindo a encenação da Tetralogia de Wagner por Graham Vick – e, cabe notar, espera-se apenas que, como inicialmente previsto, O Anel se venha de facto a concluir em temporada futura com a representação integral sucessiva da Tetralogia, o que nunca sucedeu em nenhuma das vezes que foi encenada em São Carlos, espera-se, repito, que haja as devidas garantias.
 
Feita a ressalva, o panorama aproxima-se de um desastre generalizado e da maior incúria.
 
Sobre esta próxima temporada paira claramente a sombra do ex-secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho, que de resto, em vários textos no “Público” e uma resposta ao actual ministro no “Expresso”, tem dados mostras suficientes de que não se dá por vencido, antes que continua a ser o ideólogo.
 
Acha ele, achou ele sempre, que em ópera se dá demasiada importância aos cantores?! Pronto, passou-se à prática: salvaguardado o Siegfried, repito, cantores de distinção não os há, excepto Elisabete de Matos em arriscada estreia no papel titular da Salomé.
 
Mas mais: sabe-se como o modelo que o ex-secretário de Estado achou frutífero foi o de Carlos Fragateiro no Teatro da Trindade, nomeando-o mesmo director do Teatro Nacional D. Maria, de resto tendo-se aquele mantido em funções no Trindade, em clara contravenção da exclusividade exigida por lei. Escrevi eu isso mesmo, e demitiu-se em seguida Fragateiro do Trindade, quando aí anunciou umas Bodas de Fígaro encenadas por Maria Emília Correia. Pois a conexão Vieira de Carvalho-Fragateiro-Dammann confirma-se agora com um Don Giovanni encenada pela mesma Maria Emília Correia. Lamento, por toda a consideração que tenho por ela, mas isto é puro disparate, além de revelador das linhas que se cosem.
 
Mas mais: ao senhor Christoph Dammann escapam os requisitos musicais para ser director de um teatro de ópera, e vou dar três exemplos.
 
Ponto 1) O aspecto mais catastrófico da sua gestão da temporada anterior foi a escolha de maestros. Agora já não há sequer a possível desculpa do pouco tempo disponível para escolhas e contratações até porque, satisfeito, Dammann resolve repetir.
 
Na Clemenza di Tito de Mozart houve aspectos infelizes na encenação de Joaquim Benite (os figurinos de Filipe Faísca, o “parti-pris” do estatismo do coro) mas também outros pertinentes (por exemplo, a opção pela monumentalidade). Lamentável sim, além de uma cantora que confundiu Vittelia com a Santuzza da Cavalleria Rusticana, foi a direcção musical de Johannes Start, totalmente privada da energia mozartiana. Pois o dito Start volta, e de novo para dirigir Mozart, e nada menos que o Don Giovanni.
 
Ponto 2) O senhor Dammann achou interessante retomar uma prática do século XVIII, com um intermezzo bufo interpolado numa opera seria. Esquece-se que os tempos de duração praticados eram muitíssimos mais longos e que, digamos, os “tempos de recepção” também eram outros.
 
Mas, vai daí, em Agrippina, a mais esplêndida ópera do período italiano de Haendel, vai ser interpolado Intermezzo, ópera encomendada a Nuno Côrte-Real, com libreto de José Luís Peixoto. Ora, não só isso obrigará a cortes ainda mais drástico na ópera de Haendel, como este tipo de encomenda de intermezzo só teria sentido se os respectivos autores dominassem os códigos dos géneros operáticos para com eles jogarem – e não há o menor indício que isso suceda com Peixoto e Côrte-Real.
 
Ponto 3) Para mais Agrippina requer quatro ou cinco grandes cantores; nem um só dos anunciados é de relevo. E pior: Dammann tem uma tal noção da interpretação historicamente informada que dispensa um agrupamento com instrumentos de época e põe a obra a ser executada pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, tal como aliás, num concerto, outra obra-prima barroca, o Te Deum de Charpentier.
 
 
 
Além de tudo o mais, há a dizer que a informação do director do teatro se revela escassa e parcial.
 
Anuncia-se finalmente um Estúdio de Ópera no São Carlos. Acho importante, gostaria de saber mais, e é uma das questões, tal como a da nefasta OPART EPE que deixo para próximos textos. Mas nesse espectáculo do Estúdio de Ópera, além do já citado The Telephone de Menotti encenado por Karoline Gruber, a tal que depois de Das Märchen pelos vistos aqui também tomou residência, há Comedy on The Bridge do compositor checo Bohuslav Martinu encenada por Paula Gomes Ribeiro. E a que propósito? Porque se desconsideram, por exemplo, os casos mais prometedores revelados nos dois cursos de encenação de ópera da Gulbenkian? Será porque Gomes Ribeiro integra o CESEM, o Centro de Estudos de Estética e Sociologia da Música do Prof. Vieira de Carvalho?
 
Não sabe o director de teatro das temporadas de outras instituições em Lisboa? Porquê celebrar o centenário de Messiaen com uma interpretação da Turangalîla-Symphonie quando já houve uma no Ciclo de Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian este ano, e não faltam outras grandes obras do autor que era importante dar a ouvir? Porquê aceder ao capricho pessoal do presidente, director-geral e intendente de programação do CCB, António Mega Ferreira, que resolveu achar-se também decisor musical, e fazer de novo um Fidelio de Beethoven em versão de concerto?
 
 
Tudo isto demonstra, além de graves incúrias, desde logo do director Christoph Dammann, esta espécie de “domínios privados” em que transformaram as instituições culturais: são as opções de Mário Vieira de Carvalho ou os “contributos” de Fragateiro e Mega Ferreira. E é um disparate anunciado, e o plano inclinado do vazio de perspectivas no São Carlos.
 
 
(Como disse, deixarei para textos posteriores mais em concreto as questões do Estúdio de Ópera e da OPART)

Chahine, o alexandrino

 

 

Era um dos homens mais extraordinários que conheci, Youssef Chahine (25/01/1926-27/07/2008), egípcio, árabe, cristão, cidadão de Alexandria, do espaço mediterrânico e do mundo, de ascendência libanesa, síria e grega, francófilo, cineasta.
 
Há um ano, em Junho, morria o senegalês Sembesne Ousmane, o iniciador cinematográfico de um continente, a África Negra. “Yousef Chahine” é sintagma que se confunde com “cinema egípcio” e “cinema árabe”, mas sendo isso certo em termos de conhecimento e difusão internacional, há neste caso que ser prudente, até para melhor considerar a singularidade de Chahine.
 
Não só o Egipto é um país de há muito constituído (ao contrário de outros estados árabes) e com uma inequívoca cultura nacional, como também teve uma importante indústria cinematográfica, que durante décadas dominou o mundo árabe – e que agora, decadente, foi substituída pela expansão de “Bollywood”. Youssef Chahine, “Jo” como era conhecido, formou-se também nessa indústria. Se o seu é o nome que ocorre imediatamente, não se pode falar de “cinema egípcio” sem evocar Henry Barakat, Salah Abou Seif, Chahid Abdel Salam (autor de uma solitária obra-prima, raríssimo caso de evocação do Egipto da antiguidade, A Múmia), ou, entre os mais recentes, Yousry Nasrallah, que se formou aliás como assistente de Chahine, para apenas citar alguns.
 
Mas “Jo” Chahine é um caso diferente, por um lado porque formado no cosmopolitismo, por outro lado porque no seu cinema se cristalizou também a história recente do Egipto.
 
Parecerá até mesmo estranho que na sua trajectória se tenham sucedido o realismo de Estação Central, a esplêndida super-produção histórica pan-arabista que é Saladino, a apologia propagandística do nasserismo, da construção da Barragem de Assuão e dos laços egípcio-soviéticos em As Gentes e o Nilo, o lirismo de A Terra, a evocação histórica de Adieu Bonaparte, o amor declarado do melodrama e do musical americano em O Sexto Dia, a veia autobiográfica de Alexandria Porquê?, A Memória, Alexandria, Ainda e Sempre e Alexandria-New York, ou a apologia da tolerância em O Destino – mas em grande parte a sinuosidade dessa trajectória tem a ver com a história egípcia, do nacionalismo árabe de Nasser ao bloqueio subsequente à derrota face a Israel em 1967, e com, mais recentemente, o espectro do integrismo.
 
Em Alexandria Porquê? (1978) há, nomeadamente, duas histórias de amor, entre um muçulmano e uma judia, entre um soldado britânico e um jovem árabe – eis o que sugere bem não só a enorme coragem de Chahine e a sua estatura ética, como a sua abertura de pensamento em termos de convivência e orientações sexuais. Mais abertamente ainda, Alexandria Ainda e Sempre é o filme do desejo de um realizador, o próprio Chahine, pelo seu actor. Pelo meio, A Memória é um 8 ½, ou mais exactamente, sucedâneo do sucedâneo, um All That Jazz, em Chahine, reencenando a operação de coração a que fora submetido, ao longo da qual vai rememorando factos da sua vida e da história do país.
 
Sucedia-lhe, com efeito, por vezes, essa iconologia sobrecarregada, mesmo o “kitsch”. Mas havia também no seu cinema uma outra face, de leveza, que não deixa de se relacionar com a sua predilecção por dois actores-dançarinos, Fred Astaire e Gene Kelly. Em O Sexto Dia evoca-se O Pirata de Minelli – e no pendor para o musical e o melodrama e até no resvalo para o “kitsch” foi um carácter minelliano que se acentuou no seu cinema ao longo do tempo, contrastando com o realismo lírico de Estação Central e A Terra.
 
O Emigrado, que muito evidentemente era inspirado na história bíblica de José, valeu-lhe uma “fatwa” e o bloqueio da censura, para afinal se tornar, após ter sido permitido, no seu maior êxito nacional, tal como o seu filme de resposta a essas censuras, O Destino, inspirado na vida do filósofo Averrois foi o seu maior êxito internacional.
 
Este cosmopolita detestava acima de tudo os integrismos, Bush e os autocratas árabes, justamente por ser um cosmopolita e um adepto da convivência e das liberdades. Com Oum Kalsoum e Naguib Mahfouz foi um dos grandes nomes da cultura egípcia.
 
E Youssef Chahine foi um dos homens mais extraordinários que conheci.

 

São Carlos, o disparate anunciado - II

 

O “escândalo” associado a uma insistente tendência alemã de encenacão de teatro e opera, tendência que se prenuncia na nova temporada do São Carlos, pode tambem por vezes ser fundado em equívocos. O nome Christof Loy talvez diga pouco aos leitores e melómanos portugueses, mas muitos se recordarão do “escândalo” ocorrido quando o encenador de uma Ariana em Naxos na Royal Opera House de Londres recusou a anunciada protagonista, a soprano americana Deborah Voigt, por a achar digamos que demasiado “volumosa” para os figurinos da personagem. Esse encenador era Christof Loy, o mesmo que é responsavel pelo Fausto de Gounod nesta proxima temporada do Sâo Carlos. Nesse caso até sucede que, como a imprensa mesmo a mais “séria” tende cada vez mais a destacar os acontecimentos que sugerem “escândalo”, a história estava mal contada: tratava-se de uma reposicao e Loy achou, correctamente no plano dos príncipios, que não podia aceitar uma nova intérprete convidada sem ele ter sido consultado, e com características físicas que entendia obrigarem a desfigurar elementos da sua encenacâo. Isto evocado para lembrar quantas vezes o “escândalo” é artificialmente mediatizado, convém entao definir parâmetros estéticos.

 
Ao longo de já muitos anos de crítica, sempre me interessou particularmente a encenação de ópera e recorrentemente fiz notar como como a renovacão do género vem sendo nas ultimas décadas em grande parte fruto do trabalho de alguns encenadores. Várias das minhas mais intensas experiências e emoções estéticas fundaram-se também no trabalho em ópera de encenadores como Giorgio Strehler, Luca Ronconi, Patrice Chéreau, Peter Stein, Luc Bondy, Bob Wilson ou Peter Sellars. Mas o que vem sendo praticados nos teatros alemães, o designado “regietheater”, e que corresponde em opera ao chamado “ekeltheater” (“teatro de nojo”) e à equivoca teorizacao de um “teatro pós-dramático”, interesssa-me muitíssimo pouco, para não dizer, em termos de crítica “parcial, politica e apaixonada”, que tenho antes tendência a ser frontalmente contra.

 
Não me interessa absolutramente nada a “actualização” como imperativo, o desejo de “escândalo”, a prática de arbitrariedades. E Loy mas ainda mais Konwitschny são expoentes desse “regietheater”. Dou um exemplo, para não me ficar em termos genericos que poderão parecer apenas preconceituosos: na encenação de Konwitschny do Don Carlos de Verdi na Opera de Viena (Don Carlos com “s” que era o original francês e mesmo, coisa rarissima, integralmente), na cena do auto de fé, surgia no palco um ecrã com uma apresentadora a anunciar o “evento” enquanto, como ligacão das imagens para a sala, os condenados entravam no átrio do edificio, e folhetos eram distribuídos aos espectadores na plateia, enfim, o género de coisa “modernaça” para fazer a tal “actualizaçãoo” e envolver os espectadores – e exercício disparatado de arbritariedade sim!

 
Acrescento que depois do seu trabalho em Das Märchen de Emmanuel Nunes nada recomendava que Karoline Gruber regresssassse – e é ela que se anuncia para a nova producao da Salomé, bem como para uma das duas óperas dpo novel Estúdio de Ópera, The Telephone de Menotti. Enfim, já apresentada na temporada anterior, retoma-se na proxima A (pequena) Flauta Mágica (mas que desta feita sera cantada em português – talvez alguem se tenha enfim dado conta, não sei, que existe a tradução portuguesa de Maria de Lurdes Martins, apresentada no Trindade em 72), a qual, destinando-se a criancas, é um resumo incorrrecto (não consigo perceber como se pode eliminar Sarastro na cena final, e foi isso que vi em palco), e a qual, de resto, é eticamente abusivo anunciar como “produção da Ópera de Colonia” quando de lá provem apenas o “conceito” da encenação de Eike Eicker, o fundamental sendo o uso de desenhos de estudantes de escolas portuguesas.

 
Nada disto é promissor, muito pelo contrário, E sem qualquer chauvinismo, e na recusa de tal, é mesmo inaceitavel esta transformacao do São Carlos em teatro alemao de segunda ou terceira ordem (ainda por cima, com os cantores a menos), o que de resto é um quadro restritivo de perspectivas e cosmopolitimo, e antes um outro modo provinciano, no caso “deslocalizado”. E énesses termos, creio, e nao em si pelo facto do actual director do teatro ser alemão, que importa discutir e mesmo contestar as opções ora vigentes no único teatro nacional de opera português.

 
 

São Carlos, o disparate anunciado - I

 

“Candida Höfer em Portugal”
 
 
 
Enunciar uma perspectiva acentuadamente crítica de uma temporada anunciada pode parecer exercício exorbitante, se não mesmo tendencioso. Se, contudo, eu disser que a próxima Temporada 2008-09 da Gulbenkian confirma níveis de excelência, e seleccionar alguns destaques de ainda mais especial expectativa de excelência (o que farei em breve), o facto será considerado conforme ao que se espera de um crítico. Como tal, e numa mesma ordem de razões, afigura-se-me legítimo e pertinente enunciar as razões pelas quais acho bastante problemático, mesmo lamentável, o horizonte que se desenha para o São Carlos.
 
Devo, é certo, fazer um “mea culpa” por não ter formalizado um balanço da temporada anterior, sendo que é a concreta experiência dessa que mais fundamenta muitas das reservas que enunciarei. Mas, sucedendo isso, também direi que sendo indesmentivelmente ora o São Carlos um caso de posicionamentos antagonistas, de Pinamonti “versus” Dammann, também tive, por exemplo, ocasião de fazer notar que as responsabilidades que já eram assacadas ao novo director, em concreto a desastrosa encenação do Rigoletto, eram ainda de facto uma aposta do anterior.
 
E pois que falo em concreto de Pinamonti e Dammann acrescento – até para enquadrar em devidos termos algo que me importa dizer – que já tive ocasião de recordar reacções havidas justamente quando da nomeação de Pinamonti. Como alguns se lembrarão, logo após a demissão de Manuel Maria Carrilho de ministro da Cultura, o director do São Carlos, Paulo Ferreira de Castro, apresentou também a sua demissão. Quando passado algum tempo o então novo ministro José Estêvão Sasportes anunciou Paolo Pinamonti como director do teatro o ex-ministro Carrilho teve um reflexo despeitado e reaccionário, considerando inconcebível que um estrangeiro viesse dirigir um teatro nacional português. Para além do des-gosto que tal reflexo me suscitou, não pude deixar de sorrir: tal reacção lembrou-me a “indignação” manifestada em França quando o alemão Rolf Liebermann foi convidado para director da Ópera de Paris – e depois, como se sabe, foi ele que a retirou do plano inclinado e lhe deu de novo brilho.
 
Acrescento ainda, e poderia invocar inúmeros exemplos nas minhas tomadas de posição ao longo dos anos, que sou fundamentalmente cosmopolita e alérgico a chauvinismos, e mais ainda em termos de arte em geral e de ópera em particular, sendo até que neste caso da ópera as diversas tradições nacionais só podem ser apreciadas em devidos termos no quadro de um cosmopolitismo genérico.
 
Isto tudo dito, entremos na matéria para desde logo dizer que Christoph Dammann, ex-director da Ópera de Colónia (de onde não saiu propriamente aureolado de prestígio) e (só) agora pleno directo artístico do Teatro Nacional de São Carlos, está a proceder a uma “deslocalizaçãso” de um hegemonismo inaceitável, sendo que das oito produções anunciadas para a nova temporada, três, todas as três “importadas”, provêm de teatros alemães, as óperas de Frankfurt, Leipzig e Colónia, e uma outra, nova, é uma co-produção com um teatro alemão de terceira ou quarta categoria, o de Erfurt.
 
Vamos então a alguns aspectos concretos.
 
Na temporada passada, a quase única produção de total responsabilidade de Dammann foram uns Contos de Hoffmann de Offenbach encenados por Christian van Götz, que foi aliás um dos mais vergonhosos espectáculos de ópera que alguma vez vi – e não é que tenha pouca experiência de desastrados espectáculos de ópera. Ora, na tradição dos teatros alemães, há duas óperas francesas que são presenças recorrentes, de resto porque ambas de inspiração literária alemã: Os Contos de Hoffmann e o Fausto de Gounod. Pois se Os Contos houve na temporada anterior, eis logo que para a próxima se anuncia…o Fausto.
 
Deve dizer-se que Dammann apresenta três encenadores alemães de notoriedade, Christof Loy, Peter Konwitschny e Michael Hampe. Digo desde já que por muitas razões desde logo dispensava o segundo e o terceiro, aliás por motivos opostos.
 
Michael Hampe foi o “encenador de serviço” do Festival de Salzburgo durante os anos finais da “era Karajan”. Depois disso, e por certo com razões de sobras, nunca mais lá o chamaram. Por mim, disse as vezes bastantes que o acho “o mais chato encenador do mundo” para não o repetir agora. Quanto aos outros dois, mas sobretudo Konwitschny, confesso, com indesmentível perversidade, que já antevejo com um sorriso irónico o que poderão vir a ser as reacções em São Carlos, com a crescente “conservadorização” do seu público, às encenações deles, às quais está usualmente aposta a expressão “skandal”, quase que em jeito de imperativo categórico, com tudo o que supõe também de gesto gratuito.

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