Gustav Leonhardt no papel de Johann Sebastian Bach em
“A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach” de Jean-Marie Straub
Quanto Richard Wagner finalmente concretizou o seu projecto dramatúrgico em Bayreuth, uma nova noção de festividade surgiu, e de toda a Europa passaram a aí acorrer os “peregrinos” fazendo Le voyage artistique à Bayreuth, nos termos do título do relato de Albert de Lavignac.
Sem dúvida que os principais festivais têm em princípio possibilidades de excepção – justamente por serem “de excepção”, a regra sendo as temporadas regulares – mas pela sua própria massificação perdem muita desse conceito “cultual” ou ritual de festa e festividade artística; nesse sentido, para ter noção do que são de facto festivais como ambientes “de excepção” à antes que rumar para Avignon ou Edimburgo, festivais predominantemente de teatro, ainda que o segundo, conhecido sobretudo naquela qualidade, seja ainda mais “único” pela sua interdisciplinaridade, teatro, música, dança e cinema.
O “turismo cultural” – porque é disso que agora se trata gera a lógica do “marketing” e a esse respeito nada é mais nesta nossa sociedade hiper-mediatizada do que prenunciar-se um escândalo – e não é que, por exemplo, e exemplo do próprio dia de hoje, já se anuncia que o Don Giovanni encenado por Claus Guth em Salzburgo vai ser um “escândalo”?!
Que nos fiquem registos de festivais é precioso, que eles sejam audiovisuais sobretudo no caso da ópera tem toda a pertinência, mas não se venha travestir de “democratização” certos desses novos meios de difusão, como agora via Internet, que são os da banalização mercantil, longe de qualquer aura.
Acontece que – obsessão minha – ainda acho que a ideia artística e cultural de “peregrinação” é importante. Rilke e as Elegias foram-me razão de ir conhecer Duíno, como Svevo e Cláudio Magris me introduziram a Trieste, como Kafka me suscitou uma percepção de Praga (como a tanto outros Bernardo Soares lhes deu uma “imagem” de Lisboa, e lhes suscitou um desejo), como posso pacientemente entrar no Louvre para depois ir apressadamente contemplar de novo a Vitória de Samotrácia.
Há em Portugal um evento – feliz ou infelizmente não tão divulgado como se justificaria – que justifica esse conceito de “peregrinação”: o concerto, um e único, no programa anual do Festival de Música da Póvoa de Varzim que se realiza na Igreja Românica de São Pedro de Rates.
Este ano, amanhã às 21h45, há razão redobrada para a “peregrinação” e a expectativa: este ano o concerto é um recital de Gustav Leonhart, com 80 anos feitos a 30 de Maio, um músico de quem somos devedores como de muitos poucos, pelo modo como profundamente renovou os princípios interpretativos e a nossa percepção da música barroca, de Bach sobretudo – e se, como disse Nietzsche, “a vida sem música seria um erro”, sem Bach então seria ainda mais desesperançada.
Não há peça de Bach no programa de amanhã, mas Froberger e os mestres da escola cravística francesa, Louis Couperin, D’Anglebert, Gaspard Leroux e Rameau, são um reportório de eleição de um tal mestre.
Nesta era em que rareia a intensidade, hic et nunc, da aura da obra de arte, ir a São Pedro de Rates ouvir Gustav Leonhard, supremo músico e um dos expoentes do espírito europeu, neste ano em que se lhe prestam todas as homenagens, é ainda a possibilidade artística “cultual” de uma peregrinação.
Não haverá outra “coisa” que se me afigure mais manifesta concretização da “perda da aura da obra de arte” que a cena, tão frequente em viagens de comboio, com passageiros a verem nos seus computadores “filmes” – “pós-filmes” ou “rastos de filmes” diria antes.
E se isso se me afigura assim com “filmes”, parece-me haver qualquer coisa de inconcebível na simples ideia de assim se ver também óperas, e óperas em directo. Por reservas de princípio que possa ter com os “live broadcasts” abaixo referidos, ainda assim a difusão ocorre em espaços específicos, diria que locais de recepção artística, como as salas de cinema, ou mesmo, quando se fazem para o espaço público adjacente ao teatro, em locais onde nesse momento se cria o quadro mental e sociológico de uma recepção. Mas “streaming vídeo” de ópera no computador pessoal?!
Sucede que o “inconcebível” ocorre, e hoje é possível ver óperas e concerto em directo na net – de facto, ainda há pouco, questão de curiosidade e informação, “espreitei” o concerto que decorria no Festival de Verbier, na Suíça. Sucede essa possibilidade numa associação da cadeia franco-alemã Arte, www.arte.tv, com esse recente e peculiaríssimo sitio que é www.medici.tv, uma filial da Medici Arts americana, detentora de um vasto catálogo de dvds e programas de arquivo. Assim ocorrem transmissões em “live stream”, ou tem-se acesso na Medici a um considerável acervo de concertos e espectáculos, disponíveis, e descarregáveis para “downloads” como “videos on demand”. E, por exemplo, antes de Verbier agora, houve também transmissões do Festival de Aix-en-Provence. Mas, entretanto, um outro facto, de algum modo altamente simbólico, se anuncia.
Com o Parsifal começou hoje o Festival de Bayreuth. E no próximo domingo, às 15h, o festival dá inicio a uma nova etapa, com o “live stream” de Os Mestres Cantores de Nuremberga em http://live.bayreuther-festspiele.de/live.html, acessível ao preço de 49 euros.
Claro que a escolha não e nada inocente; estes Mestres Cantores, estreados no ano passado, foram a primeira encenação em Bayreuth de Katharina Wagner, a filha mais nova de Wolfgang Wagner, e presumida herdeira única até a um recente volte-face do obstinado patriarca, após a morte em finais do ano passado da sua segunda esposa, e mãe de Katharina, Gudrun: agora propõe uma direcção partilhada entre as duas filhas, Eva e Katharina, em mais outro episódio de uma história familiar e do festival tão conturbada.
Mas deixando agora a saga dos Wagner e retomando o fio dos “live streams”, a acessibilidade por esse modo de um género de obra tão eminentemente cultual como a ópera, e logo com esta difusão com origem no mais cultual dos espaços, Bayreuth, vai de novo repor os discursos sobre a web como meio de partilha e “democratização”.
E, no entanto, é justamente difícil imaginar acto mais exemplar do que é “a perda da aura da obra de arte na era da sua reprodutibilidade digital”
Como continuar a preservar e fazer descobrir a memória do cinema, como ter o prazer da descoberta e transmitir esse prazer neste momento de imensas acelerações e também, como goste-se ou não é inevitável reconhecer, de depreciação desse espaço ontológico do cinema que é a sala escura?
As questões são muitas, e cruciais, e dizem respeitos não apenas a meios de distribuição, e possíveis outros circuitos de distribuição, como a festivais, cinematecas e instituições programadoras, etc. Como analisar os filmes, geografias e tendências, e tornar públicos os termos e posicionamentos de crítica?
“Como está o cinema?”, é interrogação que supõe também outra, “como está a cinefilia?”. Há instituições imutáveis, por vezes feudos mesmo, como uma certa Cinemateca Portuguesa*. Há outras, que pela sua história são também “instituições”, que se tentam repensar, que se confrontam como situações em que é forçoso repensar.
Muito da história da cinefilia passou pelos “Cahiers du Cinéma”. Mais: o modo dominante da cinefilia tem uma matriz ineludível nos “Cahiers”.
Na sua mais recente fase, os “Cahiers” pertencem ao “Le Monde”, mas estando o grupo desse jornal em reestruturação empresarial, e em redução do número de títulos, o que irá suceder à revista?
O seu actual chefe de redacção, Emmanuel Burdeau, e outro redactor, Thierry Lounas, elaboraram um projecto autónomo. Numa tribuna publicada no “Libération” no passado dia 17, inúmeros antigos e actuais redactores vieram declarar o apoio a esse projecto – e a lista é impressionante de diversidade de gerações e posições, de representantes de diversas “idades dos Cahiers”, como Claude Chabrol, Jean Douchet, Michel Delahaye, Luc Moulett, Jean-André Fieschi, André S. Labarthe, Barbet Schroeder, Jean-Louis Comolli, Jean Narboni, Sylvie Pierre, Bernard Eisenchitz, Louis Skorecki, Jean-Louis Schefer, Jean-Paul Fargier, Jacques Aumont, Jacques Rancière ou Nicole Brenez.
Para além dos aspectos particulares da situação, o que importa reter é o facto de na quase sacrossanta instituição da cinefilia se ousa pensar e dizer, que hoje, na era do digital (“numérique”), os modos e meios têm de ser outros. E por isso é curial ler o texto na íntegra e nele meditar.
Pour des «Cahiers» de plaisir et de combat
Nous sommes des rédacteurs actuels et anciens des Cahiers du cinéma. Nous avons fait les Cahiers hier et nous les faisons aujourd’hui. Nous sommes critiques de cinéma. Nous sommes aussi cinéastes, scénaristes, journalistes, enseignants, philosophes, écrivains… Nous incarnons l’unité et la diversité des Cahiers. Nous sommes attachés à leur passé et nous croyons en leur avenir. C’est pourquoi nous avons décidé de prendre la parole, au moment crucial où ils sont mis en vente par Le Mondeet doivent se réinventer.
Les Cahiers doivent prendre la mesure des nouveaux enjeux du cinéma. A l’heure de la révolution numérique - où c’est le mode même de production, de réalisation et de diffusion qui se trouve bouleversé -, les films ne se font plus et ne sont plus vus de la même manière. Le cinéma n’est d’ailleurs plus seulement dans les films, et il n’est plus seulement dans les salles. S’ils veulent retrouver l’impulsion combative de leurs débuts et se porter à la pointe de ce qu’est aujourd’hui le cinéma, les Cahiers doivent donc accomplir une révolution à la fois éditoriale et économique. Thierry Lounas et Emmanuel Burdeau (actuel rédacteur en chef) ont élaboré un projet de reprise et de relance pour les Cahiers. Leur initiative, soutenue par la majeure partie de la rédaction, est logique, en cela qu’elle émane de la revue et procède d’une longue réflexion sur son histoire et sur sa mission. C’est un projet éditorial, mais c’est aussi un projet d’entreprise. Indissociablement.
Il est clair en effet que les nouveaux enjeux critiques sont inséparables de nouvelles pistes de développement.
Les Cahiers doivent rester ce qu’ils furent toujours, d’abord et avant tout : une revue mensuelle d’actualité et de pensée du cinéma, accompagnant ses aventures, ses promesses et ses risques, vendue en kiosque et attachée à l’éthique du «bien dire» et du «bien décrire».
Mais s’ils veulent élargir leur champ aux supports et aux lieux qui accueillent et transforment le cinéma - DVD, séries télé, art contemporain, littérature, Internet… -, les Cahiers doivent eux-mêmes se diversifier et développer une complémentarité nouvelle entre une revue, un site Internet et un éditeur liés par une vision et des objectifs communs.
S’ils veulent rendre compte de la manière dont Internet modifie en même temps les outils du cinéma et ceux de la critique, la fabrication et la réception des films, ils doivent mettre en ligne des productions sonores et visuelles spécifiques, mais aussi développer sur leur site de nouvelles approches critiques et journalistiques (chroniques en direct, analyses d’images en mouvement, journaux tenus par un cinéaste ou un chef opérateur…).
S’ils veulent jouer un rôle réellement militant à l’égard des films qu’ils défendent - dont beaucoup trouvent de moins en moins accès aux salles -, ils doivent acquérir un nouveau métier et devenir un acteur à part entière de la diffusion, sur Internet, en DVD et en salle.
S’ils veulent affirmer et surtout transmettre leur histoire - et celle du cinéma - à une nouvelle génération de spectateurs, ils doivent valoriser le trésor de leurs archives numériques en France et à l’étranger, éditer des ouvrages anthologiques et publier un dictionnaire du cinéma qui fasse référence.
S’ils veulent étendre leur rayonnement international et en faire bénéficier leurs lecteurs, ils doivent développer leurs éditions en langue étrangère et nouer des collaborations avec des revues du monde entier afin d’écrire - sur le papier et en ligne, en articles et en images - la carte de demain, celle d’un cinéma à nouveau «voyagé».
Le projet de Thierry Lounas et Emmanuel Burdeau entend donc faire des Cahiers un objet unique, mais présent en plusieurs lieux et sur plusieurs supports avec la même force. Des Cahiers voués au plaisir et au combat critique, au cinéma en train de se faire, à ceux qui le font et aux nouvelles générations qui le découvrent. Des Cahiers directement impliqués dans les défis que pose l’évolution des modes d’accès aux œuvres, établissant un nouveau type de relations et d’échanges avec leurs lecteurs et abonnés.
Bref, des Cahiers contemporains, dans leurs moyens comme dans leurs buts, participant à leur manière à la réinvention du cinéma. Aujourd’hui, nous voulons dire que ce projet est également le nôtre .
* Certamente por lapso uma frase minha “s’est glissée” num texto sobre a Cinemateca Portuguesa no “Ípsilon” de hoje.
Ao contrário do que poderia supor, o “sonho da ópera” existiu bem cedo no cinema – e até desde os primórdios, mudos. Se, diz-se, o sonho de Edison (o “outro inventor” do cinema), premonitório do dvd, era reunir a imagem e o som, e desde logo fazer registos de ópera, o cinema fez apelo a vedetas da ópera, como Geraldine Farrar, e houve adaptações “mudas” de variadas óperas – por exemplo, e exemplo relevante, Robert Wiene, o realizador do Gabinete do Doutor Caligari, dirigiu também uma adaptação cinematográfica do Cavaleiro da Rosa, tendo o próprio compositor, Richard Strauss, feito um arranjo para música de acompanhamento – mas a esse tópico, histórico, da relação ópera-cinema, ainda voltarei.
Também houve, ainda antes da rádio, possibilidade de ouvir ópera à distância, via telefone, e em Portugal registou-se o caso do Rei D. Luís ouvir à distância no Palácio da Ajuda a ópera que decorria em São Carlos – é caso para dizer que a relação Ajuda-São Carlos vem de longe, bem antes das mais recentes vicissitudes em que um ocupante da Ajuda, e intendente-dirigista dos teatros nacionais, o prolixo Mário Vieira de Carvalho, patrocinar a extraordinária ideia de transmitir directamente do São Carlos a estreia da ópera Das Märchen, do seu compositor de estimação, Emmanuel Nunes.
Mas com a desgraça que se tem visto nessas bandas do São Carlos, é caso agora para nos perguntarmos se não estaremos antes ansiosos por ir ao Corte Inglês (o de Lisboa) ou a outro multiplex que tenha salas digitais ver transmissões directas de óperas do Met, de resto com a vantagem suplementar de nas transmissões directas de ópera desse mesmo Met sermos poupado ao nível de comentários que é usual na Antena 2. Afinal, quem sabe se não estará para breve? Desde que haja também patrocinadores…
Vindo da indústria discográfica, o novo intendente do Met, Peter Gelb, tem estado a operar uma verdadeira revolução de meios. Assim, a 30 de Dezembro de 2006, o Met fez a sua primeira transmissão directa para uma rede de salas digitais nos Estados Unidos e no Canadá, com uma Flauta Mágica em versão adaptada e em tradução inglesa, encenada por Julie Taymor, a realizador do filme Across the Universe – são dessa encenação as imagens acima.
A habilidade de Gelb foi também a de conseguir convencer as vedetas e os sindicatos a terem uma visão de futuro, enquanto por outro lado, negociava com a indústria discográfica – isto é, convencer os intérpretes a não solicitarem os aumentos de “cachets” que se poderiam esperar, fazendo-lhe notar que com estes registos em alta definição haveria rendimentos suplementares no futuro, já que a curto prazo se seguiria a edição em dvd. Por exemplo, o Evgueni Onegin com Renée Fleming e Dmitri Hvorostovsky “chegou-nos” tão “cedo” porque havia sido assim teledifundido. E falo em dvds, mas há também o novo e florescente mercado do “vídeo on demand”.
Confesso que, apesar de tudo, esta ideia da ópera, um espectáculo de sensações e emoções tão directas, ser à distância, me continua a suscitar alguma reserva – mas é um facto que a emoção do directo não deixa de passar na transmissão tecnicamente mediada. Acrescento, já agora, que um dos momentos mais emotivos de ópera que me sucederam em anos recentes ocorreu com a “Ópera ao Largo” que Paolo Pinamonti pôs em prática com o projecto do Anel do Nibelungo encenado por Graham Vick, e em concreto quando, na última récita do Ouro do Reno, os cantores, como que saídos do ecrã, vieram agradecer também ao público que tinha assistido à ópera no Largo de São Carlos.
Acrescento um outro receio, citando textualmente um título de um crítico do “New York Times”, Daniel J. Wakin: “The Multiplex as Opera House: Will They Serve Popcorn?”.
Mas o facto é que é vai havendo cada vez mais transmissões de ópera em alta definição, não só do Met, como também da ópera de San Francisco, que transmitiu nomeadamente Appomattox de Philip Glass – imagem abaixo.
São mais de 400 as salas de cinema dos Estados Unidos e Canadá onde ocorrem estas transmissões, e sendo outro dos objectivos de Gelb renovar o público de ópera, é de notar que a audiência já ultrapassou um milhão.
Curiosamente – mas talvez não sendo assim tão surpreendente – quem não aprecia muito a nova modalidade são os distribuidores de cinema, face a um novo e inesperado “rival” no seu próprio terreno.
Entretanto, o âmbito expandiu-se – desde o início que houve também transmissão para a Grã-Bretanha, a que se vieram acrescentar a Austrália, Nova Zelândia, Alemanha, Holanda, Dinamarca e, desde Abril, também a França. E entretanto, como se a tendência fosse inevitável, também a Royal Opera House de Londres e o Scala de Milão se põem em campo.
A sério, a sério mesmo: será que num futuro próximo passaremos a “Ir à ópera” por exemplo ao Corte Inglês em vez de ao São Carlos, para mais em decrepitude?
O “Jazz em Agosto” da Fundação Gulbenkian, na sua 25ª edição, inicia-se no próximo dia 1 de Agosto com a New Jazz Orchestra de Otomo Yoshishide, evocando um dos grandes inovadores do jazz, Eric Dolphy. E no dia seguinte, às 18h30, é apresentado o filme The Last Date, que corresponde, como o homónimo disco, ao último concerto registado de Dolphy, na Holanda, poucas semanas antes da sua morte – um registo que é aliás um dos mais relevantes da sua discografia, incluindo nomeadamente o célebre tema “Epistrophy” de Thelonious Monk.
“Como Bix Beiderbecke, Fats Navarro ou Charlie Christian, Eric Dolphy (Los Angeles, 20-06-28 – Berlim, 29-06-64) foi uma dessas estrelas cadentes aureolados pela desdita da sua breve mas luminosa existência, que em rigor, no seu caso, foi mais restritamente a de cinco anos, desde que se fixou em Nova Iorque até à morte.
Mas a situação de Dolphy é paradoxal e excêntrica a mais de um título. Grande parte da notoriedade vem-lhe do trabalho junto de figuras maiores da história do jazz, Charlie Mingus, Ornette Coleman e John Coltrane, lista suficientemente eloquente, é certo – tanto mais que foram aqueles que abriram o caminho, no caso de Mingus, emblematicamente declararam, no caso de Ornette, e se juntaram, no caso de 'Trane' à ‘new thing/free jazz’, que foram os descobridores maiores de novos horizontes – mas em que o destaque desses pode tornar à primeira vista menos evidente o contributo fundamental que foi o de Dolphy, e que um Mingus e um Coltrane fizeram questão de afirmar.
Como Theolonious Monk, como Duke Ellington, Charlie Parker, Charlie Mingus, John Coltrane ou Ornette Coleman, Eric Dolphy foi um dos ‘jazzmen’ que para além do campo se impuseram como personalidades maiores de toda a música do século XX.”
Extractos de um texto em linha no sítio do Serviço de Música da Gulbenkian, incluindo também uma escolha discográfica, sobre um músico multi-instrumentista (tocava clarinete, clarinete-baixo – de que foi o introdutor no jazz -, flauta e safonone-alto) que foi ao mesmo de uma entrega total ao colectivo e também de facto o primeiro músico de jazz a praticar regularmente o solo absoluto.
O regresso jazzístico de António Pinho Vargas traz com ele outra notícia de relevo: o disco Solo é o primeiro objecto com o selo “David Ferreira – Investidas Editoriais”.
Depois de ter sido durante anos responsável da EMI/Valentim de Carvalho, e depois de ter chegado a sua própria hora de saída, David Ferreira lança-se agora num projecto estritamente pessoal de edição em geral.
Houve – e há ainda – importantes editoras literárias, sobretudo francesas (mas em Itália podem citar-se também os bem conhecido casos da Einaudi e da Feltrinelli) que tomaram o nome directamente dos editores, de um Gaston Gallimard ao recentemente falecido Christian Bourgois.
Mesmo no arquetípico sistema de produção de indústrias culturais, o cinema clássico americano, houve produtores, que não os grandes “moguls” e patrões, que tiveram um importante trabalho no acompanhamento do trabalho de realizadores e de feitura de filmes. Muito da história do jazz devemo-la também a produtores como Norman Granz e Orrin Keepnews (este também recentemente falecido) e até a um engenheiro de som como Rudy van Gelder.
O que ocorre com as megas concentrações editoriais, ou produtivas, nos mais diversos domínios das indústrias culturais, é que as “trocas” e parcerias fazem-se num regime de anonimato, isto é, sem os produtores ou editores que sejam efectivos cúmplices dos autores.
Por mim, enquanto crítico, gosto de me nortear pela definição que foi a de Serge Daney, “le passeur”, e quanto faço programação, como extensão do trabalho crítico, é também nesse sentido de mediar entre autores e obras, por um lado, e segmentos de público que gostaria que tivessem o mesmo prazer da descoberta.
De algum modo, é essa trabalho de “passagem”, com todo o acompanhamento e “acarinhamento” que supõe, que se encontra hoje drasticamente reduzido na escala que atingiram as indústrias culturais – e nas suas economias de escala internas.
Por isso são necessários produtores e editores que tenham também um trabalho de paixão. E que, de resto, podem fidelizar específicos nichos de mercado.
Recentemente Nelson de Matos fundou a sua editora literária, com o seu nome próprio. Agora é a vez de David Ferreira.
Separam-me dele fundas divergências em torno do que foi uma sua causa militante, as quotas de “música portuguesa” nas rádios. Mas por ora é momento de assinalar a (re)entrada em cena em nome pessoal de David Ferreira, com o que isso implica de uma noção de “cumplicidade” artística (e essa é outra noção que me é cara), tal como já materializada neste Solo de António Pinho Vargas.
Para mais, fico expectante de um conceito como “investidas editoriais”, com o que deixa inferido de "artesanato" no "fazer", mais do estritamente uma lógica de produção.
Já o escrevi nas notas ao recente disco com três obras de António Pinho Vargas, mas há algumas considerações que se me afiguram importantes de retomar a propósito deste outro disco que marca o seu regresso ao campo jazzístico após longa ausência.
A personalidade artística de Pinho Vargas é singular por uma dupla presença no campo musical: pianista, compositor e jazzman por um lado, compositor contemporâneo por outro.
A singularidade radicaliza-se tanto mais quanto estas vertentes aparecem inteiramente dissociados: não só Pinho Vargas não se tem mostrado de modo nenhum adepto de qualquer modo de crossover composicional, como também, e apesar do treino como pianista, inclusive académico, não é intérprete das suas próprias composições eruditas.
O que poderia à primeira vista parecer um caso bifacetado, para não dizer mesmo artisticamente de dupla personalidade (e nesse sentido inclusive mais complexo do que a “heteronímia” de que ele próprio fala), tem contudo outras implicações, como uma aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical.
A noção de “pulsão”, ou mesmo de “pulsação” (no que isso supõe mesmo de uma relação imediata com o investimento físico e emotivo e com as interacções) tão importante no jazz, o beat, seja de periodicidades regulares ou irregulares, manifesta-se assim também como fulcral no seu trabalho de compositor contemporâneo. Ocorre assim falar a propósito da sua poética composicional de dispositivos pulsionais bem como, mais latamente, de uma problematização do sentir.
Ora, ainda que de modos de todo diversos, não menos há que falar de dispositivos pulsioniais e de sentir a propósito deste Solo.
É provável que uma tão longa ausência não deixe também de se relacionar com um anseio de reconhecimento e legitimação no campo composicional erudito. Se Pinho Vargas tem certamente a noção de ter também a facilidade composicional, digamos mesmo que estritamente melódica, que fizeram alguns dos seus temas como “Tom Waits” e “Vilas Morenas” tornaram-se bem reconhecidos, os únicos temas “novos” que surgem em Solo, “Funerais” e “Casas de Granito no Minho” são afinal também dos anos 90, da mesma época dos outros. Não há portanto, em rigor, “temas novos”, elementos mais recentes de composição jazzística.
De certa maneira, este regresso (por coincidência simultâneo com um disco com três composições “eruditas”) radicaliza a personalidade bifacetada: há o Pinho Vargas-compositor, que nunca é intérprete das suas obras, e o Pinho Vargas-pianista, que não dá novos sinais de composição, é apenas intérprete, re-inventor de si mesmo.
Pode-se considerar uma tal noção, de “re-inventor de si mesmo”, no sentido em que ele se revisita, de algum modo retoma os seus próprios standards e apenas esses, tanto mais quanto a solo. E é no modo como o faz que há igualmente falar de “uma aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical”, de dispositivos pulsionais e de sentir. Solo é o disco mais livre e luminoso de António Pinho Vargas, dir-se-ia mesmo, no notório princípio do prazer deste sentir, aquele em que ele surge mais “descomplexado”.
“Drôle de chemin” – foi precisa uma tão longa ausência, uma dedicação exclusiva à prática composicional erudita no entretanto, para Pinho Vargas sentir de novo, e nos dar a ouvir, todo o prazer que também tem em ser pianista de jazz, em pelos modos da improvisação jazzística ter essa relação física e pulsional imediata com matérias musicais.
Reencontra-se o toque preciso e cristalino, na linhagem de um Chick Corea. Mas certamente não é fortuito que um outro pianista que Pinho Vargas agora por vezes refere seja Brad Mehldau, que tem também uma aproximação livre e descomplexada dos “standards”, mesmo das “songs”.
Parecerá bizarro que esteja subentendido em Solo um outro título, pelo qual Pinho Vargas queria designar o disco: “Imperfeições” (e assim o cd 1 e o cd 2 têm os subtítulos de “Imperfeições 1” e “Imperfeições 2”). Mas a “imperfeição” é o do próprio rasgo irrepetível de cada momento, da volúpia do sentir e de uma pulsão, da réstea que fica gravada, sem o “reworking” adicional - ou, se se quiser, é axiologicamente do próprio princípio da indeterminação, do único e da sua multiplicidade, na arte do jazz.
Ouça-se a simplicidade contida de “Casa de granito no Minho” ou de “Lindo ramo, verde escuro” como a longa divagação de “Fado Negro”, a energia imediata de “Tom Waits” como a amplitude de meios pianísticos e sonoridades de “General complex”, o “staccato” e os “ostinati” de “Vilas morenas”, “As mãos” ou ainda mais “O Movimento parado das árvores”, ouça-se sobretudo, momento de excepção, o modo como após “Prelude to June (Tabor)”, Pinho Vargas “ataca” propriamente “June”, em euforia de revisitação, de se redescobrir.
E por isso se pode reiterar que Solo é o disco mais livre e luminoso de António Pinho Vargas, o disco de um sentir que é o do princípio do prazer.
A prática cada vez mais corrente de recurso á edição de discos “live” permite-nos com frequência reavivar também momentos privilegiados da memória do espectador. Por definição, é o “live” a base da edição em dvd de óperas, e tanto mais ocorre então o reavivar de memórias, com a possibilidade acrescida de transmitir a outros os dados da memória e do reencontro.
Eis agora editada uma minha muito grata memória, o Tristão e Isolda encenado por Heiner Müller, a última grande recordação que guardo do Festival de Bayreuth.
Para já, a rememoração, com a crítica então publicada.
ISOLDA ENTRE RUÍNAS
À saída, terminada a representação, os comentários incidiam sobretudo na encenação. O tom, em geral de desaprovação, era partilhado por um espectador, que no entanto acrescentava: “mas não pateei”. Não lhe tinha faltado o desejo, percebia-se, mas prudentemente recordou-se que “também o Anel de Chéreau foi tão pateado e agora é considerado um clássico”. Este ano o Festival de Bayreuth é “ohne Ring” sem a tetralogia O Anel do Nibelungo. Para os mais devotos wagnerianos, será sempre a experiência de uma falta. Pior ainda, a nova encenação deste ano de Tristão e Isolda foi confiada a Heiner Müller, no passado de todo alheio a Wagner e até, supremo horror!, terão pensado alguns, vindo de uma Alemanha que foi “de Leste”.
A pateada era previsível, mas, como prudentemente sugeria o tal espectador, tradição de pateadas não falta em Bayreuth, muitas vezes para com produções depois recordadas como marcos da história do festival, caso da tal Tetralogia do centenário, a de Chéreau e de Boulez, objecto de um clamoroso protesto na estreia para vir a ser saudada com uma hora de aplausos quando da despedida, quatro anos volvidos. A inovação provoca resistências, mas na continuidade anual dos festivais gera uma nova tradição.
Era justamente a mesma equipa Chéreau/Boulez, que se esperava para um novo Tristão, os rumores tendo mesmo chegado a apontar para 1991. Afinal foi dois anos mais tarde, o maestro e depois o encenador tendo-se apartado do compromisso que veio a recair em relações próximas, Müller (apontado como autor, com Boulez, de uma ópera a vir) e Barenboim (com o qual Chéreau já trabalhou num Wozzeck e que reencontrará no ano próximo em Salzburgo para o Don Giovanni). (*)
Daniel Barenboim é o elemento da continuidade, já que se estreou em Bayreuth há 12 anos, por coincidência numa situação paralela, um ano “ohne Ring” (terminado o de Chéreau/Boulez) em que a nova produção foi o Tristão (**) que dirigiu, sendo depois responsável musical de um outro Ring, o que no ano passado se completou. Heiner Müller é a novidade, e tanto mais quanto o dramaturgo pouco se tem dedicado à encenação, a não ser dos seus próprios textos, e nunca antes tinha experimentado a ópera. Semi-novidade é o elenco, com alguns dos cantores mais presentes em recentes edições do festival, mas novos vindos a estes papéis como os protagonistas, Siegfried Jerusalem e Waltraud Meier, Tristão e Isolda.
Ansiedade e geometria
Não por acaso, a pateada seria menor no final que após o Acto II, quando era máxima a desorientação dos espectadores habituados à imagem romântica da noite de amor de Tristão e Isolda. Tão resolutas manifestações a dois terços do caminho traduzem a decepção por não se encontrar o já conhecido, que para se compreender a novidade é necessário esperar pelo fim do trajecto.
O encontro Wagner/Müller era intrigante. O resultado é caracteristicamente “mülleriano”. O autor de A Missão, de Morte na Germânia ou de Quarteto de novo imaginou em cena, por interposto Wagner, as ruínas de uma expectativa, um velho mundo em destroços mas ainda suficientemente opressor para fazer desmoronar a possibilidade de uma outra vida. Dois conceitos são fulcrais ao entendimento de Müller: “angst” e “geometria”.
O mundo em que habitam Tristão e Isolda é fechado, claustrofóbico. O cenário básico de Erich Wonder é um cubo, rigorosamente ordenado no Acto I com o espaço de Isolda delimitado ao nível inferior, no Acto II o encontro dos amantes ocorrendo entre referências militarizadas, com centenas de couraças depositadas, formando quadrados e triângulos. As alterações neste espaço são mínimas, apenas as que decorrem de telas (cada acto abre com um ecrã branco) e da prodigiosa luminotecnia de Manfred Voss, de dominante vermelha no Acto I e azul no II.
Elemento ainda mais intrigante nesta equipa é Yohji Yamamoto. O costureiro japonês desenhou figurinos negros, o carácter marcial e frio pretendido por Müller sendo reforçado por enigmáticas armações que as personagens trazem aos ombros, próteses impostas por uma ordem, das quais Tristão e Isolda se libertam quando, bebido o filtro mágico pela primeira vez, se contemplam em êxtase, instaurando a desordem.
O filtro, justamente. Brangânia mudou-o, dando a beber o filtro do amor em vez do da expiação e morte. A troca determina as subsequentes peripécias dramáticas, diferindo o momento da morte, mas o dado fundamental que Müller retém é o recurso de Isolda a um elemento mágico, de uma outra ordem, e a determinação com a qual ela o compartilha com Tristão. Ela é a figura central, o corpo em “angst”, inquieto, ansioso, que detém o recurso mágico, um instrumento da vingança. A troca dos filtros abrirá afinal a demonstração de que a ânsia amorosa não pode ser consumada naquele mundo e, se modifica as vias da expiação, não deixará de vir a propiciar o triunfo de Isolda, a sua vingança.
A perdição consumada
Paradoxal vingança , pois que sobre Trsitão, que a tinha enganado, Isolda triunfará precisamente porque lhe suscita a paixão, o sofrimento e a expiação.
No Acto III, o domínio de Tristão é um castelo em ruínas. Do cimento das paredes (esse cimento característico na obra de Müller) cai o estuque, os destroços acumulam-se. E é então que Siegfried Jerusalem, tardiamente vindo a Tristão, supera os limites evidenciados no Acto II, convocando todas as suas capacidades, desafiando o corpo que Müller quis prematuramente envelhecido, numa grande cena de sofrimento e delírio. Mas o mais surpreendente é a chegada de Isolda. À imagem tradicional a morte de amor, qual orgasmo “post mortem”, substitui-se majestaticamente uma figura erguida à frente da cena e o enunciado final da perdição: se lhe foi impossível consumar a paixão naquele mundo, Isolda vingou-se trazendo a ruína e redimindo Tristão. É ela, prova então feita, o centro do drama.
Corpo e voz da mais admirável interpretação dos anais de Bayreuth nos últimos anos, a de Kundry no Parsifal, Waltraud Meier corria risco considerável como Isolda, em temerária passagem de “mezzo” a soprano. Nos agudos, ou no balbuciar deles, se ouve o risco, mas a determinação, ansiedade e erotismo da sua presença tornam esplendorosa esta Isolda que consigo arrasta Tristão — o protagonismo sendo aliás reforçado pelos limites do Mark de John Tomlinson e da Brangânia Uta Priew, aos quais se preferirá o Kurwenal de Falk Struckman e em duplo desempenho como Melot e marinheiro, de uma das raras revelações recentes de Bayreuth, Pol Elming.
Na sua presença continuada Daniel Barenboim confirma um equivoco que está a ser sistemático em Bayreuth, na escolha dos directores musicais. No seu Tristão, como no Anel, há acasionais momentos interessantes, sobretudo os mais líricos e os “pianissimi”. Mas Barenboim não domina os grandes arcos wagnerianos e as sonoridades que ele obtém são frequentemente ásperas. O seu mérito, inegável, é o de ter sido “o garante” desta equipa, a ele se tendo reunido de novo o par Jerusalem/Meier (que dirigiu já como “Parsifal” e Kundry , recem-vindo) , Heiner Müller, aquele por quem o escândalo chegou mas que afinal veio trazer a Bayreuth uma inteligência cénica que não se encontra noutras produções.
Mesmo que, talvez por menor experiência, falte ainda a Müller concretizar melhor a proposta, designadamente no trabalho com os actores/cantores, a depuração quase minimal ou as luminosidades do seu trabalho não deixam de invocar o exemplo pioneiro de Wieland Wagner. E se Müller e um Bob Wilson (noutras paragens encenador de Parsifal — para o qual, em Bayreuth, foi vetado pelo maestro James Levine — e do Lohengrin) (***) fossem afinal os prossecutores desse momento de inovação a que, por obra de Wieland Wagner, chamou “nova Bayreuth”?
“Público”, 11-08-93
(*) Como se sabe, Patrice Chéreau e Pierre Boulez reencontraram-se no ano passado numa produção de Recordações da Casa dos Mortos de Janácek, recentemente editado em video e de que aqui em breve falarei. Também no ano passado, em Dezembro, Patrice Chéreau encenou por fim o Tristão, justamente com direcção de Barenboim, na abertura da temporada do Scala. O Wozzeck de Chéreau/Barenboim, que já havia sido editado em dvd, acaba de ser reeditado, e esperemos que seja também lançado em Portugal.
(**) Essa outra produção de Tristão e Isolda, encenada por Jean-Pierre Ponelle, e com René Kollo e Johanna Meier, foi também editada em dvd, e iguralmente a abordarei em breve
(***) Entretanto Wilson encenou O Anel, co-produção da Ópera de Zurique e do Châtelet.
A propósito do texto anterior, ou, mais exactamente, da publicação de uma réplica, importa-me de novo esclarecer que o caixa de correio existe também para respostas e comentários. Se bem que o Letra de Forma funcione como página pessoal, não menos me é importante estar aberto ao debate e à polémica. Não aceito contudo é a “caixa de comentários”, sendo que como, é facilmente verificável, e é importante sobre isso reflectir também, as ditas caixas são sobretudo povoadas por comentários ou sem qualquer interesse ou dando azo a estados de ressentimento, quando não de insulto, sendo também que quando há comentários que são de facto pertinentes então eles devem estar em situação de leitura imediata – e para “moderar” uma tal caixa não tenho a menor das vocações.
Escrevi em tempos um texto, “Foi você que pediu uma democracia SMS?”, sobre a intrínseca perversidade das sugestões mediáticas de pretensa “democracia participativa” e os “inquéritos feitos” por jornais junto dos seus “leitores” – dos leitores que se dispõe a fazer militantemente a sua opção por meio da Internet, como é óbvio. E esse meu texto data de Novembro de 2002, bem antes portanto da celeuma provocada pela votação no concurso “Grandes Portugueses” – sendo curioso, acrescento, que o mesmo método tenha sido “pacificamente” aceite como metodologia de outro análogo concurso, o das “Novas Sete Maravilhas do Mundo”, que até teve – sim, convém relembrá-lo – o patrocínio do Ministério da Cultura da Profª Pires de Lima, e mesmo um representante destacado em jeito de comissário por esse ministério, nada menos do que um dos bonzos do regime, o Prof. Freitas do Amaral, supondo-se que deveria mesmo ter sido motivo de “orgulho nacional” o facto da apoteose ter tido lugar em Lisboa!
Há evidente que há mutações das sociedades no sentido da chamada “democracia de opinião”, de resto mesmo com importantes consequências políticas, como foi o caso em França da candidatura de Segoléne Royal, que de facto emergiu da net e dessa espécie de página de “myspace” que se designou por “désiresdeavenir”, com a notória consequência dessa mescla de aspirações se ter tornado em termos de projecto política num efectivo nado-morto.
Em termos mais latos, é evidente que essa lógica tendencialmente instantânea da “democracia de opinião” (a tal “democracia sms” e todos os seus correlatos) está a agravar ainda mais a crise patente das democracia representativas, dos laços da representação política e das instâncias de regulação e mediação, mesmo no sentido do que o sociólogo Pierre Rosanvallon designa por Contre-Democracie – e o subtítulo desse livro, “La politique à l’âge de la défiance”, indica uma disseminada atitude não só de “desconfiança” mas de ressentimento e protesto privado de conteúdos concretos, que podendo ainda ter fundas razões, e tem-nas por certo, se traduz, mais do que em qualquer atitude de mudança, numa deslegitimação generalizada de que tão só sobressaem, reforçando o seu poder sensacionalista e a derrota do pensamento e da acção reflectida, as televisões e imprensa ditas “populares” – lógica que é prosseguida na manifestação imediata por meios de sms ou da net.
Há algum tempo atrás, um editoralista do “Le Monde” constatava amargamente que enquanto sempre fora regra deontológica do jornal os textos serem assinados, a edição electrónica estava agora inundada por comentários anónimos ou de identificação da autoria não controlada. E basta ver as caixas de comentarias nas edições electrónicas do “Expresso” e do “Público” para se verificar o tipo de teor altamente maioritário dos comentários.
Não pode ser ignorado que esta é uma das questões mais fundamentais da nova era dos media, concorde-se ou não com a posição extremamente crítica, claramente refractária mesmo, expressa por Andrew Keen em O Culto do Amadorismo (agora editado em Portugal pela Guerra e Paz), tal como não pode ser ignorado o debate em curso nos Estados Unidos sobre se os blogs, no modo mais imediato de simples expressão de opinião, não são causa determinante na rarefacção ou desaparecimento dos espaços de crítica, de opinião fundada e articulada, na imprensa – questão tanto mais importante quanto de facto coloca em causa os fundamentos da noção de espaço público, um dos sustentáculos axiais das sociedades abertas e democráticas.
Já agora, e no que a blogs e caixas de comentários diz respeito, estas são apresentadas (e foi-me reiteradamente exposta tal consideração a propósito do Letra de Forma) como um factor de “animação”, que afinal o é em termos de competitividade e de um uma espécie de correlato de “guerras de audiências”. Claro que não menos tosco é, não tendo comentários, afirmar uma vocação hegemónica publicando contributos, reais ou supostos, como também fotografias indigentes, naquela formulação falaciosa do inevitável Pacheco Pereira, “O Abrupto feito pelos seus leitores”.
Creio efectivamente que estas são questões de ordem comunicacional importante, de mutação do espaço público, mas não queria deixar também de reiterar a minha disponibilidade para a publicação de comentários e réplicas, para o debate e contraposição, e que é também com vista a isso que existe o endereço letradeforma@sapo.pt – e já agora aproveito também para agradecer o conjunto de informações e apreciações que me é enviado, sendo que algumas sugestões ou pedidos terão oportunamente resposta.
A propósito do meu questionamentodas posições de Alain Badiou e de Slavoj Zizek, recebi a seguinte contraposição de Carlos Vidal, crítico e artista plástico, e autor de Sombras Irredutíveis – Arte, Amor, Ciência e Política em Alain Badiou (Vendaval – singular e preciosa editora).
Caro Augusto
Vejo alguma incerteza ou mesmo inquietação neste teus últimos posts, em torno de Badiou e de Zizek,
e penso que essa inquietação se deve à forte crítica de ambos (apesar de Badiou ser, acho eu, um acaso mais sério) à democracia representativa que tu, de forma coerente, julgarás insuperável (?) (como Sartre achava o marxismo). No fundo o que eu temo em quem pensa a democracia como um modo de organização da vida colectiva que nos abre para várias hipóteses, positivas e negativas, em que a alternância existente nos exige lutas (pluripartidárias) por correcções não destrutivas do edifício global, o que mais me preocupa nesta aceitação passiva da democracia é a falsa escolha ou falsa alternativa que poderia assim ser sistematizada: ou democracia ou totalitarismo (versão simpática de quem não é por nós é contra nós).
Hegel ensinou-nos que há sempre um terceiro elemento. Badiou, sabedor dessa hipótese comporta-se como um sábio hegeliano. Não aceita alternativas binárias. No seu Logiques des Mondes propôs o seu terceiro elemento deste modo: diz-se na democracia que não há senão corpos e linguagens, ao que o filósofo acrescentou – “excepto que há verdades”. Quer dizer, dizer que não há senão corpos e linguagens (que Badiou chama a falsa alternativa do “materialismo democrático”), significa desmobilizarmo-nos perante a “evidência” de que vivemos numa biopolítica ou numa bio-sociedade, em que o corpo e a perecibilidade (ou o corpo optimizado para a produção de que falava Foucault) deve ser protegido como coisa frágil ao que se associa a linguagem e a protecção da livre expressão. Mas Badiou acrescenta que existem verdades ou, se quiseres “acontecimentos”. E chegamos à ultrapassagem de outra falsa alternativa: não há senão democracia e totalitarismo, excepto que há acontecimentos (verdades).
Vamos a uma parte polémica destas considerações, que eu acrescento, que é a de que a história, desde sempre confirma esta realidade do acontecimento. Ora o que é o acontecimento ? Em primeiro lugar ele diz-nos ( e todos concordamos com isso) que nada chegou ao fim nem chega (por isso Badiou cultiva o infinito que retira da matemática de Cantor, como coisa não teológica, mas autoconsistente e construtível). Se nada chegou ao fim tudo pode ainda ser inventado, quer dizer, não se trata de dizer como irá ser a alternativa de vida futura à democracia actual, mas sim que o acontecimento é inevitável (desde Spartacus que a política de emancipação se repete incessantemente). E a pergunta passa a ser: “o que é que construíste de novo ?”
O acontecimento tem três ou quatro premissas: em primeilo lugar, ele irrompe numa situação (que se supunha estável) de forma inédita, sem pré-aviso, sem data e imprevisivelmente. O seu carácter inédito afasta-o de ser entendido pelo conhecimento, que nunca o pode explicar nem pode explicar a razão de ser dessa súbita, inesperada e efémera irrupção de algo que não se sabe o que é, numa situação determinada (um país, uma cidade, uma relação entre duas pessoas, etc). As razões pelas quais ele não pode ser explicado estão no facto do seu ineditismo e num outro pormenor: o acontecimento é constituído por “pedaços” da situação (anterior), logo começa por ser indiscernível. Sendo indiscernível, o acontecimento não se pode confundir com o conceito vanguardista das “rupturas»” (que, aliás, Hal Foster muito desconsidera). Mas perante algo que se move, diremos: algo sucede, não sei o que é, mas a isso sou fiel. Portanto, é o sujeito quem decide da sua fidelidade ou não ao acontecimento que ele não entende, nem tem razão sólida para a ele aderir - trata-se aqui de um processo de liberdade de decisão que em muito ultrapassa a democracia formal, sem dúvida, na minha opinião. Aderindo ao acontecimento, o sujeito adere àquilo que não sabe como vai acabar, tem de se disponibilizar para o imprevisível. É como dizer “avançamos e depois logo se vê”, de novo uma liberdade que nos compensa mais que qualquer representatividade.
De resto, sobre a hipótese comunista diz Badiou no último polémico livro sobre Sarkozy: não conheço outra hipótese de emancipação que não a hipótese comunista. Quer dizer, eu também, ou melhor, nós também não - a não ser que queiramos discutir o conceito de emancipação.
Os acontecimentos de Badiou são conhecidos: Ésquilo, Schoenberg, Galileu, Mao, Lenine, S. Paulo, Maio 68, etc. E eu poderia acrescentar: o 25 de Abril e o PREC. O 25 de Abril é interessantíssimo. A decisão do sujeito do acontecimento - a população de Lisboa - foi a de que o golpe era não dos duros do regime, mas de derrube do mesmo. Isto sem garantias nenhumas até uma certa hora desse dia. Quem está por detrás desse golpe quer libertar ou radicalizar o regime? Na base de nada, a população escolheu e decidiu. O sujeito fiel do acontecimento não espera por explicações nem pelo conhecimento adquirido para decidir - a decisão livre é sempre feita na base de nada. E nenhum destes mecanismos que aqui descrevi são integráveis na democracia, atenção - a escolha verdadeira não deve ser feita entre a grupo-partido A ou B, a verdadeira escolha é a do sujeito do acontecimento, a liberdade só pode ser edificada sem interesses particulares e na base de nada.
Claro que Le Siècle é uma portentosa interpretação do século passado, mas não é o volume que expõe o pensamento, ou melhor, a raíz do pensamento antidemocrático de Badiou. Como sabes, temos de ir ao Être et Événement, I e II (com cerca de vinte anos (!) de permeio um do outro). Aliás, modestamente, acho-os dois dos livros do século XX. Hegeliano, sim, Badiou é-o no volume II citado (mas também maoísta e kierkegardiano). Muito sinteticamente, julgo que em Badiou o “sujeito” tem um papel tão fulcral que é ele mesmo que supera a dicotomia democracia-totalitarismo (ele tem a liberdade de ser injustificadamente “sujeito do acontecimento”).