Uma vez que a referi no texto anterior, “recupero” agora esta gravação do ano passado. De resto seria desnecessário invocar pretextos para pôr em relevo este disco extraordinário, seguramente o mais notável e surpreendente registo de sinfonias de Mozart em anos recentes.
René Jacobs, como bem sabemos, foi cantor, um contra-tenor superlativamente admirável. A sua dedicação à direcção foi de par com o progressivo afastamento de cena como cantor. Não se tratou apenas de um facto ser paralelo ao outro. “Diriger c’est chanter” disse ele, e a sua actividade concentrou-se na direcção de óperas e oratórias, com algumas gravações, de Monteverdi, Cavalli, Caldara ou Alessandro Scarlatti que são das mais belas de toda a discografia do barroco. Depois veio também Mozart, em particular um admirável Così Fan Tutte que nos deu a ouvir, como nunca antes, as relações intricadas das linhas de canto e das madeiras. Mas abordar o repertório estritamente sinfónico é uma outra história.
Certo que essa nova faceta se prenunciava num disco com as Sinfonias nº 91 & 92 “Oxford” de Haydn, mas essas ainda acompanhadas de uma obra vocal, a Scena di Berenice. Este é pois o seu primeiro disco estritamente sinfónico – e que disco!
Ouça-se o primeiro andamento da Sinfonia “Praga”. Tem esse andamento uma eara em Mozart estrutura à la Haydn, com uma introdução Adagio ao Allegro. Ora, logo no ataque inicial afirma-se nesse Adagio um tom marcadamente teatral, qual Abertura do Don Giovanni. Com uma energia e mesmo um furore de excepção, com uma mestria esplendorosa dos contrastes, Jacobs e os Freiburger tornam esta interpretação da Sinfonia nº38 numa das magníficas da discografia.
Equiparáveis qualidades reencontram-se na Sinfonia “Júpiter”, nos transbordantes andamentos extremos, vivace, vivacíssimos mesmo, num caprichoso Andante cantabile, prodigioso no uso do rubato e dos contrastes tímbricos, num Menuetto já sem réstea de salão, qual antecedente directo dos scherzi beethovenianos.
De facto, um disco deveras extraordinário e por certo, em particular, uma das mais portentosas interpretações da Sinfonia nº38 “Praga”.
Podia esperar-se – e, no caso, mesmo temer – que Carminogla desse mostras do seu virtuosismo vertiginoso e sentido exuberante da ornamentação, que o tornaram um intérprete emblemático de Vivaldi, mas que seriam despropositado nos Concertos de Mozart.
Isso não ocorre. É de ter em conta que a gravação ocorreu depois de três anos de trabalho comum. Se há uma espantosa facilidade, muito caracteristicamente italiana, no manejo do arco, e uma sonoridade luminosa, Carmignola, e com ele a direcção de Abbado, dão mostras de uma permanente invenção do fraseado mas também de uma linha ampla. A finura e a elegância do desenho, a sonoridade resplandecente e o subtil recurso a um vibrato muito controlado, tornam o entendimento excepcional, o pico sendo o Rondó do Concerto nº 5. Mesmo que se sinta que na Sinfonia Concertante (que é, repete-se, uma das grandes obras de Mozart), a co-solista Danusha Waskiewicz não está exactamente ao mesmo nível (e a este respeito convém lembrar que na mesma obra, e numa edição que tem também os cinco Concertos para Violino, um Isaac Stern teve como cúmplice um intérprete tão qualificado como Pinchas Zukerman), esta publicação, e esta surpreendente estreia de Abbado à frente de uma formação com “instrumentos de época”, é de facto excepcional.
Contrariamente ao disco dos Concertos, no das Sinfonias a Orchestra Mozart apresenta-se com instrumentos tradicionais, ainda que, seguramente, com cordas de tripa e com alguns instrumentos de sopro também de “época”.
“Cada coisa é o que é”, e por isso não se pode deixar, antes do mais, de notar a concretização. Não fosse o disco de René Jacobs com as mesmas Sinfonias nº 38 e 41, editado no ano passado, e este disco teria de ser citado como o mais notável registo recente de sinfonias mozartianas. Acontece que esse tal outro disco existe, como existem os de Harnoncourt com a Concertgebow. As comparações tornam ainda mais elucidativas algumas menores valias deste disco.
Diga-se que a escolha do programa é inteligentíssima, mostrando que Abbado fez uma funda redescoberta, uma reaprendizagem mesmo, da interpretação mozartiana. Faz todo o sentido incluir a Sinfonia nº 29, por assim dizer a primeira das sinfonias tardias, ou a observação que Abbado faz nas notas que o desenvolvimento do 1º andamento da “Haffner” prenuncia o primeiro tema do andamento final da “Júpiter”.
A variedade incisiva dos ataques é outro clara confirmação que em três anos Abbado e a Orquestra Mozart trabalharam aprofundadamente. No caso do maestro então, ele está literalmente “irreconhecível”, por comparação com todos os seus anteriores registos mozartianos. Tudo isto salientado como é devido, há também a dizer que o escrúpulo filológico que leva nomeadamente à observação de todas as repetições, e que faz em particular que o andamento inicial da Sinfonia “Praga” demore quase 18’, não deixa também de dar azo a que a tensão nem sempre seja constante, de resto nessa sinfonia como na derradeira “Júpiter”, e que haja um insuficiente relevo dos sopros.
É bem provável que, a existir apenas este disco das sinfonias, a reacção pudesse ainda assim ser mais entusiástica, tal o exemplo de inteligência e de autêntica “re-aprendizagem” por parte de Abbado. Mas não só essa escuta comparativa com Harnoncourt e Jacobs - e este último tanto mais quanto o programa coincide com o segundo disco do presente registo - elucida alguns limites, como sobretudo é o brilhantismo excepcional do disco dos Concertos de Violino que abre campo a que se considere que esta outra interpretação das sinfonias, notável que é, não atinge contudo os mesmos níveis.
Mas que fique bem claro que esse disco dos Concertos de Violino é doravante uma peça a considerar na discografia mozartiana em geral.
Claudio Abbado é um músico de excepção, não apenas pelas suas eminentes qualidades
interpretativas, mas também porque, tendo ainda ocupado os mais altos cargos institucionais, do Scala a Viena e à Filarmónica de Berlim, não se restringiu, contudo, ao repertório e práticas canónicas.
Relembro, entre outros factos, os concertos para os trabalhadores das fábricas que organizou nos anos 70, a fundação da Orquestra de Jovens Gustav Mahler ou a sua dedicação à nova música, em especial a sua relação próxima com Luigi Nono – e é uma memória das mais intensas a estreia de Prometeo la Tragedia dell’Ascolto de Nono, sob a sua direcção em Veneza, em Setembro de 1984 – e acrescento que outra das minhas mais fortes experiências musicais foi o Concerto em sol maior de Ravel, sendo solista Martha Argerich e com os jovens da Mahler, em Agosto de 2002, em Edimburgo, quando Abbado regressou ao pódio após uma doença que o manteve afastado durante dois anos.
Claudio Abbado completou 75 anos no passado dia 26 de Junho. Como vai sendo prática rotineira, a Deutsche Grammophon assinala o evento com algumas reedições e novas edições. Não creio que, no denso panorama das integrais das Sinfonias de Beethoven, aquela que Abbado realizou com os Berliner tenha um relevo de maior. Também quanto à integral dos Concertos para piano do mesmo Beethoven com Maurizio Pollini, haverá a dizer que o pianista tem outras interpretações com mais relevo desses mesmos concertos, uma anterior integral tendo como maestros Karl Böhm e Eugen Jochum – sendo que na longa colaboração e fraternidade de Pollini e Abbado mais há a recordar os Concertos de Brahms e Bartók, ou ainda e talvez sobretudo, a inusitada associação dos Concertos de Schumann e Schönberg.
Mas a DG tinha também anunciado para esta ocasião um dos projectos discográficos mais inesperados do ano: a associação de Abbado com Giuliano Carmignola para os Concertos de Violino de Mozart – o máximo expoente hoje da interpretação da escola violinística barroca italiana e um maestro do repertório sinfónico (e de ópera) dos séculos XIX e XX?!
O encontro tem uma história, não tanto o facto de há 30 anos atrás Carmignola ter integrado os Filarmonici do Scala sob a direcção do outro, mas a fundação de uma nova Orquestra Mozart por Abbado, em Bologna, em 2004 – e Bologna, como se sabe, é uma cidade do itinerário mozartiano, quando o então jovem Wolfgang Amadeus foi aí aluno do Padre Martini.
O caso não é único em rigor. Diferentemente da obstinada reserva às interpretações “de época” de em especial um Pierre Boulez, já um Simon Rattle – o sucessor de Abbado em Berlim – vem de há anos dirigindo também a Orchestra of The Age of Enlightment. Mas Abbado não iniciou uma colaboração com uma formação já existente, de novo fundou uma orquestra, votada especificamente a Mozart.
Os Concertos de Violino não são certamente o que de mais relevante Mozart, mas dois intérpretes em particular, Arthur Grumiaux e sobretudo Isaac Stern, guindaram-nos ao nível de presenças indiscutíveis numa discografia mozatiana.
Sendo publicada também um outro disco duplo, com cinco Sinfonias de Mozart captadas em alguns concertos da Orquestra Mozart, são neste caso uma útil informação as entrevistas com Carmignola e Abbado incluídas nos respectivos livretes. Enquanto o violinista cita Grumiaux e o seu professor Franco Gulli, o maestro fala de Rudolf Serkin e George Szell. Estas últimas referências justificam algumas considerações.
O problema dos concertos gravados por Serkin e Abbado é o próprio maestro, que de modo algum acompanha a linha desse supremo intérprete mozartiano que o pianista foi. Por outro lado, a referência a Szell é muito interessante: mais, a meu ver, que o inevitavelmente sempre citado Bruno Walter, creio que os grandes intérpretes tradicionais das sinfonias de Mozart foram sim Szell e Krips (e o caso muito particular de Fritz Reiner).
A evolução interpretativa de Abbado é flagrante nas suas sucessivas gravações das Sinfonias de Mahler, incomparavelmente mais impressionantes as mais recentes. Mas neste caso não se trata de “evolução” mas de uma inequívoca “transfiguração”: estas são interpretações mozartianas como nunca esperámos ouvir de um Abbado, tornando-o próximo do que com formações de instrumentos de época realizou um Frans Brüggen ou, mais recentemente, um René Jacobs, ou do que com todo o seu saber e experiência acumulada o que um Nikolaus Harnoncourt logrou obter de uma orquestra tradicional, a da Concertgebow de Amesterdão, essa, a orquestra, também literalmente “transfigurada” pelo maestro.
Estes dois discos são uma total surpresa, e em particular o dos Concertos de Violino mais a Sinfonia Concertante para violino e viola (esta, uma das grandes obras de Mozart) é excepcional.
O momento de mais intenso trabalho na preparação das secções pelas quais sou responsável no próximo DocLisboa obrigou-me a uma pausa. Acresceu mais outro problema informático.
Ainda assim, tenho vindo a preparar alguns textos e não quereria que outros se atrasassem mais.
Assim, volto já, com um programa incluindo nomeadamente,
- perspectivas mozartianas, a propósito dos dois novos e surpreendentes discos dirigidos por Claudio Abbado,
- Sokurov e Galina Vishenvskaya, ainda,
- alguns recentes concertos de jazz (Sax Summit na Casa da Música, MIchel Portal em Serralves, Cascais Jazz, Jazz em Agosto),
- "La bande des trois R" (Resnais, Rohmer, Rivette),
- dvds de ópera dos principais festivais de verão (Bayreuth, Salzburgo, Aix-en-Provence)
“Dedico este livro a todos quantos a vida não chegou para o relatar. Que eles me perdoem não ter visto tudo, não ter relatado tudo, não me ter apercebido de tudo.”
“Escrever um livro como este é superior às forças de um só homem: Além de quanto eu próprio trouxe do Arquipélago – na minha própria pele, na minha memória, nos ouvidos e nos olhos -, o material para este livro foi-me fornecido por relatos, recodações e cartas de duzenta e vinte e sete pessoas.
Não lhes exprimo aqui o meu reconhecimento pessoal: este é o nosso monumento comum de homenagem a todos os torturados e mortos.”
Alexandre Soljenitsine – O Arquipélago do Gulag
Como escrevi, foi funesta coincidência ter acabado de pôr em linha extractos da entrevista com Sokurov em que o realizador fala nomeadamente de Soljenitsine e do filme que com ele fez, quando soube da morte do escritor. Mas mais: a propósito do seu protagonismo em Alexandra, tinha escrito sobre Galina Vishnevskaya. Ora, Mstislav Rostropovich e Galina Vishenavskaya “passaram para o Ocidente” e foram depois “destituídos” da nacionalidade soviética, justamente por causa da sua solidariedade com Soljenitsine.
Lembro-me de ter lido Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch nos princípios dos anos 70, ainda antes do 25 de Abril, na edição dos Livros de Bolso Europa-América, e um pouco depois O Pavilhão dos Cancerosos editado pela Dom Quixote.
Li-os sabendo já que em era Soljenitsine, que ele era, para usar um termo que só anos depois se consagraria, um “dissidente” – o Prémio Nobel tinha-lhe sido atribuído em 1970, e as circunstâncias que rodearam essa atribuição eram bem conhecidas. Era pois sabido que as obras de Aleksandr Soljenitsine eram “testemunho” da realidade ditatorial da União Soviética. E tais obras confirmaram em mim uma alergia profunda ao lenino-estalinismo.
A crítica do regime soviético, diga-se, começara bem cedo, nos círculos da ultra-esquerda, e já no segundo pós-guerra uma análise sistemática e rigorosa foi empreendida pelo grupo “Socialisme ou Barbárie” (Castoriadis, Lefort, Lyotard), que me foi tão importante. Mas mais ainda: a realidade concentracionária da União Soviética foi analisada desde os anos 20 por Boris Souvarine, houvera depois da II Guerra o testemunho de Victor Kravchencko e O Zero e o Infinito de Arthur Koestler – e, claro, tinha havido o Retour de l’URSS de Gide.
Por importantes que tenham sido essas obras, e foram-no, nenhuma teve o impacto do Arquipélago do Gulag. Um Souvarine, por exemplo, que era ainda vivo quando do lançamento da obra de Soljenitsine em 1974, foi então redescoberto.
È preciso recordar que a União Soviética saíra aureolada da sua resistência e finalmente vitória face à invasão nazi, e que mesmo em círculos da esquerda não-comunista havia não raro uma complacência perante a “Pátria do socialismo” – a posição de um Sarte foi a esse respeito elucidativa, tristemente elucidativa.
Ora, depois de Um Dia na Vida de Ivan Desinovitch e de O Primeiro Círculo, O Arquipélago do Gulag foi a minuciosa revelação do sistema concentracionário em toda a sua dimensão. Dessa vez o impacto foi imenso. Em termos propriamente mediáticos, esse impacto fez-se sentir sobretudo em França, com a publicação de La Cuisinière et le Mangeur d’homme e de Les Maîtres penseurs de André Glucksmann e de La Barbarie à visage humain de Bernard-Henry Levy, dois ex-“maos”, dando origem à equivocamente chamada “nova filosofia”. Com o surgimento da Carta 77 na Checoslovásquia, a divulgação da Carta Aberta ao Partido Operário Polaco de Jacek Kuron e Adam Michinick, os testemunhos de Soljenitsne, Shakarov e Rostropovich, o termo “dissidência” é reconhecido – em Portugal, aliás, Manuel Maria Carrilho organiza um volume, Dissidência e Nova Filosofia, publicado pela Assírio e Alvim em 1979. Como tive ocasião de assinalar há algumas semanas, por ocasião da morte de Bronislaw Geremek, esses foram de algum modo os últimos grandes exemplos de “empenhamento” intelectual.
Não deixa aliás de ser irónico, já que Sartre (apesar de também ter defendido o escritor russo) foi uma das “bêtes noirs” de Soljenitsine, que o russo tenha afinal sido o maior exemplo do intelectual “engagé”, do comprometimento intelectual em sentido sartriano, e mesmo o derradeiro grande exemplo do modelo “profetista” de intelectual. Nesses termos, ninguém se lhe compara mesmo no século XX, Soljenitsine tendo-se erguido à dimensão de um Voltaire ou de Victor Hugo.
“Profeta” é aliás um termo com cabimento a seu respeito. Era o representante de uma tradição russa, substancialmente refractária à modernidade e ao Ocidente; os seus pontos de vista e o seu carácter valeram-lhe aliás, regressado à Rússia, desentendimentos e querelas com grandes expoentes da dissidência, como Andrei Sakharov e Andrei Sinivaski. Ironicamente, este antigo detido do KGB encontrou-se enfim, depois das suas críticas a Gorbatchov e Eltsin, com um antigo oficial do KGB, Vlamidir Putin. Mais grave ainda: alguns dos seus escritos são no mínimo ambíguo em termos de um possível “anti-semitismo”, como antes o anti-cominismo o cegara face a ditaduras como as de Franco e Pinochet.
Mas que fosse só pelo Arquipélago do Gulag (e em qualquer caso foi sobretudo por esse) e Soljenitsine seria em qualquer caso um escritor imenso. É importante aliás notar que se não tinha havido e não houve outra descrição assim do horror e extensão do sistema concentracionário soviético, O Arquipélago do Gulag é também, em termos literários, uma obra monumental, certamente um dos grandes livros do século XX: Este “ensaio de investigação literária” orquestra magistralmente os testemunhos de 227 “zeks” (prisioneiros políticos). Para Soljenitsine a literatura não tinha apenas ou sobretudo que ser da ordem da "beleza", tinha de ser da ordem da "verdade".
Ele foi, como Tolstoi, Doiestevski e Turgueniev (há também Pushkin, que é espúrio referir a propósito de Soljenitsine), um dos gigantes da literatura russa. Se de algum modo quis comparar-se a Tolstoi, o seu grande projecto equivalente ao Guerra e Paz do outro, A Roda Vermelha (em torno da revolução de 1917), em que aliás se confronta explicitamente com Tolstoi e o seu humanismo, será afinal aquele menos consequente literariamente. São antes os demónios de Dostoievski (mesmo que nalgumas descrições de personagens e ambientes paira também a sombra de Turgueniev) que se retomam na sua obra.
“Quando privais alguém de tudo, ele deixa de estar sob o vosso poder. Ele volta a ser inteiramente livre”
"Tenho repetidamente assinalado que as questões de 'gatekeeping', de selecção, legitimação e poder no campo das artes visuais, se processam em Portugal de modo estreitíssimo. Não menos tenho acrescentado que o paradigma dominante, ou, como se queira, a estrutura do poder neste campo específico, tem origem no momento de afirmação dos anos 80, a exposição Depois do Modernismo, e recordado a propósito, não sem amarga ironia, que tendo aquela também tido um objectivo político claro, contra o sistema critico encarnado em José Augusto França, acabou por a prazo produzir um outro crivo apertado e um sistema crítico de poder.
Arte e Artistas Portugueses é a esse respeito um objecto a ser devidamente considerado, já que o facto de um crítico que até é agora assessor cultural do Primeiro-Ministro produza em forma de livro um discurso oficioso sobre a arte em Portugal conduz o estreitamento ao seu grave pico unipolar, e unipessoal, para mais tão duvidoso em termos de escrúpulos éticos e integridade intelectual."
Arte e Artistas Portugueses, livro do crítico e também assessor cultural do Primeiro-Ministro Alexandre Melo, editado por uma instituição oficial, o Instituto Camões, é o objecto da minha coluna O Estado da Arte na Artecapital.
O que sente quando o comparam com Andrei Tarkovski?
Não sinto nada. Tivemos relações boas mas somos pessoas diferentes.
Mas há alguns pontos de semelhanças entre os filmes de um e de outro, por exemplo, no tratamento da cor e do preto e branco.
Também há semelhanças com Ingmar Bergman e outros realizadores. O que nos liga, Tarkovski e eu, é a Pátria. Ambos somos russos.
Sente-se um autor “espiritual”?
Sim, é verdade. Era o principal para Tarkovski. Por isso, é difícil fazer filmes como os dele. Mas o mais difícil é saber como estabelecer um contacto através dos filmes.
É importante para si ter, através dos filmes, uma relação com Deus?
A questão de Deus é muito importante, mas não gosto do modo como Deus criou o mundo.
Mas em Mãe e Filho, o filho diz: “A criação é uma coisa maravilhosa.”
Eu sou mais livre do que as personagens do filme. Os realizadores devem ser mais livres do que as personagens.
Como consegue fazer tantos filmes?
Com o trabalho da alma e a ajuda da literatura. O “meu Deus” é a literatura, muito mais que o cinema.
Mas a pintura também é importante?
Em segundo lugar, depois da literatura. A pintura é a base do cinema, a literatura é a base espiritual.
Os seus filmes apresentam-se sempre como matéria sensível: a matéria da terra, da água, etc.
Tento criar nos filmes o meu mundo, não uma abstracção — um mundo real, mas meu. Nos meus filmes não está o mundo que Deus criou mas o que eu criei.
Como trabalha a imagem? Usa filtros, planos de pinturas?
Utilizo lentes especiais e a minha experiência de pintor. O pintor, no seu trabalho, usa diferentes técnicas. Eu, por exemplo, uso vidros pintados como modelos. São coisas muito simples, mas criadas para cada um dos filmes.
Nos seus filmes existe a literatura e a pintura, mas também a música e a importância do trabalho sobre o som.
A música é a alma do realizador, a imagem são as pernas. Quando trabalho penso em criar dois filmes, o da imagem e o da música, que devem ser independentes. Nem sempre o consigo mas tento. O director de som deve criar uma obra independente.
Acha que a música e o som são mais puros, que a imagem já está corrompida por tantos anos da história do cinema?
A música e o som não são totalitários como a imagem. O som é mais abstracto, está mais perto da natureza que a imagem. O som nunca pode ser velho, é sempre novo, e a imagem pode envelhecer.
Então a imagem é totalitária?
A imagem prende os homens e, nesse sentido, é totalitária. Quando um homem ouve, a sua imaginação está livre, e quando vê não está, porque só pode imaginar o que está a ver.
Trabalha em documentário e ficção. Como se relacionam os dois trabalhos?
São a mesma coisa. Às vezes é muito mais difícil fazer um documentário que um filme de ficção. Posso comparar o documentário com uma terapia e o filme de ficção com uma cirurgia. Quando a doença não é muito grave recorro à terapia; quando o é faço cirurgia.
Tem vindo a fazer uma série de filmes documentais que se chamam “Elegias”. A morte parece ser uma questão importante no seu cinema.
O mais importante nos meus filmes é a luta da vida contra a morte. Não tenho prazer em pensar na morte.
No entanto, disse que o objectivo da arte era preparar o homem para a morte.
Sim, é verdade. A arte tem muitos objectivos mas o principal é preparar o homem para a morte. Quando vemos os filmes sobre a morte, quando lemos os livros sobre a morte, estamos a preparar-nos, mas nunca estamos prontos.
Disse que cada vez que entramos numa sala de cinema deixamos nela hora e meia da nossa vida.
O homem não paga por nada um preço tão grande como por ver um filme. Entra na sala e quando sai já gastou uma parte da única vida que tem. É uma hora e meia que nunca voltará a existir na vida do espectador e essa medida deve ser uma responsabilidade para o realizador.
Como foi o seu encontro com Soljenitsine, com quem fez O Nó?
Foi uma grande honra. Não esperava encontrar-me com Soljenitsine porque ele é muito solitário. Mas ele tinha visto os meus filmes e quis conhecer-me. Telefonou-me e perguntou se nos podíamos encontrar. Eu fiquei agitado, disse que não tinha tempo. Mas depois encontramo-nos e falámos longamente. Estivemos de acordo em muitas coisas, noutras não, mas gostei muito do encontro.
Então. ao contrário de Soljenitsine, não se sente um profeta?
Não. Tento simplesmente criar o meu mundo, que não é o do passado, o do futuro, ou o do presente.
Sente-se nacionalista?
Gosto muito da cultura russa e, nesse sentido, posso ser considerado nacionalista. Mas não gosto da vida russa.
Mas também não gosta dos valores do Ocidente.
Adoro a arte ocidental do século XIX, mas dos actuais valores ocidentais não gosto. Gosto da cultura do século XIX, ocidental e russa.
Extractos de uma entrevista no “Público” de 21-07-99
Adenda – Funesta coincidência: tinha acabado de pôr este texto em linha quando soube da morte de Soljenitsine-
Uma coisa é certa, em nome do “rigor e transparência”: é curial que os factos apurados sobre a gestão de Fragateiro e o enorme buraco financeiro que deixa sejam tornados públicos, escrevi.
Nada mais pertinente do que transcrever então o anexo do despacho de dissolução do Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II, com os fundamentos da decisão.
E, apesar das expectativas serem as piores, ainda assim fica-se atónito: “inexistência de padrões de elevada exigência, rigor, eficiência e transparência, bem como a falta de idoneidade, capacidade e experiência de gestão”, “bandidaje”, inexistência de contratos, tráfico de Actas, incumprimento das missões estatutárias e “um prejuízo de € 1.947.151”!
Eis pois a fundamentação:
Os factos e as razões de Direito que fundamentam a dissolução do órgão Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II, E.P.E. são os seguintes:
1 – Actas do Conselho de Administração:
- As actas nº1 a 33 do Conselho de Administração (CA) contêm diálogos que nada têm a ver com a gestão da entidade e expressões insultuosas entre os membros do Conselho de Administração, nomeadamente entre o seu Presidente, Prof. Doutor Carlos Fragateiro, e o Vogal, Arquitecto José Manuel Castanheira, ao qual terá levado ao mau funcionamento do órgão e foi fundamento do pedido de demissão do referido Vogal. Factos esses que indiciam fortemente a inexistência de padrões de elevada exigência, rigor, eficiência e transparência, bem como a falta de idoneidade, capacidade e experiência de gestão com sentido de interesse público.
- Há mesmo duas “actas” do CA com o mesmo nº14. Uma dessas tem todas as folhas rubricadas pelos dois vogais e a última folha assinada por estes. A outra, necessariamente posterior, tem todas as folhas rubricadas pelos três elementos do CA, excepto a a última, que está assinada pelo Presidente do CA e um dos dois vogais. A última folha desta acta é mais curta e omite grande parte do texto que dela constava na versão anterior.
- Por deliberação do CA, não datada e em “NOTA”, foi “deliberado”, contra o disposto na lei, que a partir da Acta nº9, as Actas passariam a ser Avulsas, sem que as folhas tenham sido numeradas sequencialmente.
2 – Contratos:
- Das actas do CA não consta que tenha havido qualquer deliberação sobre a celebração do contrato de Cessão da Exploração do Estabelecimento Comercial relativo ao Teatro Villaret, tendo faltado por isso das actas qualquer avaliação e solução para a gestão dos riscos inerentes a esta actividade da entidade naquele espaço.
- Igualmente inexiste qualquer deliberação de aprovação de contrato escrito sobre a exploração dos locais de bar e restauração da entidade. Daí que também sobre esse assunto se desconheça qualquer deliberação do CA, que não terá acompanhado, verificado e controlado a evolução dos negócios da administração.
3 – Relações internacionais:
O Director do Teatro de Madrid sentiu-se obrigado a recorrer à Embaixada de Portugal para que a entidade cumprisse o pagamento que lhe era devido.
O encenador da obra “Longas Férias com Oliveira Salazar” imputa ao comportamento do presidente do CA as “barbaridades que se hacen en ese teatro”, qualificando o ambiente de “bandidaje”.
Observações de idêntico teor foram produzidas pelo presidente do “Teatro Stabile della Sardegna”, pela directora do “Dramma Italiano” e pelo superintendente do “Teatro Nazionale Croato”.
Factos eticamente inaceitáveis no sector de actividade do TNDM II e violadores das boas práticas decorrentes dos usos internacionais.
4 – Objecto:
O CA, apesar de ter um Plano de Actividades superiormente aprovado, não deu plena execução ao objecto do TNDM II, E.P.E., conforme previsto no nº2, do artigo 2º do citado Decreto-Lei nº158/2007:
- A divulgação e valorização dos criadores, nomeadamente nacionais, e suas expressões artísticas, não foram cabalmente prosseguidas. Desse facto não se encontra constância no “Relatório de Gestão e Contas ‘07”;
- A qualificação progressiva dos elementos artísticos e técnicos dos seus quadros e a contribuição activa para o aperfeiçoamento e desenvolvimento do sistema de formação profissional, técnica e artística na área teatral, não foi prosseguido como é expressamente reconhecido pelo CA;
- A colaboração com escolas de ensino superior artístico, nos termos do legalmente exigido, foi escassa como o próprio CA literalmente reconhece;
- Outro tanto tem de dizer-se relativamente à promoção e organização de acções de formação nos diferentes domínios da sua actividade;
- O estímulo à pesquisa, no quadro das novas tecnologias de informação e comunicação, a valorização da dimensão pedagógica indutora do diálogo, a programação de actividades que tenham dado especial atenção aos textos abordados pelo ensino oficial e a preservação e divulgação sistemáticas do património cultural ligado ao TNDM II, E.P.E., não foram alvo da actuação do CA como claramente resulta do Relatório de Gestão e Contas’07.
5 – Resultados financeiros:
Os resultados líquidos do exercício de 2007 decorrentes da gestão financeira levada a cabo pelo CA demonstram um prejuízo no montante de € 968.154. Se a este resultado adicionarmos os custos de produção diferidos de € 978.997, advém um prejuízo de € 1.947.151. De referir que em 2007, o montante da Indemnização Compensatória recebida pelo Teatro Nacional D. Maria II, E.P.E., foi reforçado em € 833.032, face ao registado em 2006.
Estes prejuízos evidenciam que os objectivos da entidade não foram cumpridos, que a execução do orçamento não foi devidamente acompanhada e as medidas destinadas a corrigir os desvios não foram aplicadas.
Donde se constata a existência de um desvio substancial entre o orçamento e a respectiva execução bem como a deterioração dos resultados de actividade e da situação patrimonial da entidade, provocadas pelo exercício de funções dos gestores.
6 – Conclusão:
Nestes termos e fundamentos, concluí-se que os factos supra referidos preenchem as previsões das alíneas a), b) e c) do número 1, do artigo 12º, dos Estatutos do Teatro Nacional D. Maria II, E.P.E., aprovados pelo Decreto-lEi nº158/2007, de 27 de Abril, constituindo assim fundamento para a dissolução do órgão ae administração nos termos desse normativo.
Lisboa, Ministério da Cultura, 28 de Julho de 2008
Convirá apenas em especial recordar uma declaração de Carlos Fragateiro à “Visão” de 06-04-06: “Se o Teatro Nacional: fosse só dirigido pelo José Manuel [Castanheira] isto era um desastre nas contas, se fosse só dirigido por mim era um desastre na estética! [risos]”. Riram-se muito, riram: a gestão foi calamitosa em termos quer de “contas” quer de “estética”, para mais com os dois cúmplices aos insultos!
Foi esta a desdita do Teatro Nacional D. Maria II, decorrente do “golpe” superiormente perpetrado pelo comissário-geral Mário Vieira de Carvalho – aguardemos então pelo próximo texto daquele, com a habitual elucidação “hermenêutica”…
Galina Vishnevskaya, a protagonista de Alexandra de Aleksandr Sokurov (uma estreia no cinema com 80 anos passados!) foi uma cantora de excepção.
Como solista do Bolshoi durante duas décadas interpretou uma infinidade de papéis – e inclusive, já depois do exílio, dela e do marido, Mstilav Rospovich, ainda houve uma desnecessária gravação da Tosca.
Mas Vishnevskaya é, de modo ímpar, uma cantora inconfundivelmente russa – o timbre e o vibrato tornam essa característica reconhecível de imediato. Alcançou a notoriedade no dia em que teve a oportunidade de cantar a Tatiana do Evgueni Onegin de Tchaikovski, estreou o papel de Natacha em Guerra e Paz e foi uma incomparável Katerina em qualquer das versões da grande ópera de Chostakovich, Lady Macbeth do Distrito de Mtsenk/Katerina Ismailova. Outras obras que estreou foram a Sinfonia nº 14 de Chostakovich e o War Requiem de Britten, a parte de soprano desta última tendo sido escrita de propósito para ela.
Mas Galina Vishnevskaya foi também uma excepcional intérprete de canções. Por duas vezes a EMI reeditou o sem transcendente recital com canções de Mussorgski, Rimsky-Korsakov e Tchaikovski, nas séries “Great Recordings of the Century” e “Great Artists of the Century” – pois bem, raras vezes as inclusões em séries com esses títulos tiveram uma tal pertinência. É um recital absolutamente extraordinário (tenho-o por um dos mais extraordinários e indispensáveis discos de canto), de uma paleta de matizes assombrosa, mas em particular de expressões inquietas e mesmo arrepiantes, como nas Canções e Danças da Morte (na orquestração de Chostakovich).
Complemento também indispensável é a colectânea de gravações russas suas, em que interpreta, na companhia do marido (que para a acompanhar trocou com frequência o violoncelo pelo piano) canções não só de Mussorgski como também dos dois grandes compositores russos a que o casal esteve estritamente associado, Prokofiev e Chostakovich. E se esses são dois discos indispensáveis, há evidentemente também a reter as suas interpretações de Natacha e Katarina.
Agora, Galina Vishnevskaia torna-se-nos inesquecível, de modo inesperado, também pela sua interpretação de Alexandra. Por mim, há muito que não via em cinema a sumptuosidade de uma tal “presença”.
Além dos discos, houve outro registo que foi muito importante para o dar a conhecer, A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach,filme de Jean-Marie Straub. Interpretar Bach nesse filme foi uma experiência importante na sua vida?
Bem, isso seria exagerado. Estava curioso de saber como se fazem filmes e esse caso foi excepcional, porque a música foi gravada na própria filmagem. Straub viu isso muito bem, é um elemento essencial. Mas nunca me senti como Bach; fui escolhido porque em parte fazia a mesma coisa que Bach, tocava cravo e órgão e dirigia.
Quando decidiu que a música era a sua vocação?
Bah!, isso é uma ideia romântica, mas acho que foi por volta dos 15, 16 anos.oo
Mas há um processo muito concreto de escolher um instrumento.
Acho que foi sobretudo Bach que me atraiu para a música e com Bach veio o cravo e o órgão. Depois vieram todos os outros compositores do tempo de Bach e de antes, e alguns, poucos, de depois. O meu pai era vice-presidente da Sociedade Bach na Holanda e levava-me aos ensaios, quando eu teria uns 9 ou 10 anos, ou a ouvir as Paixões.
Houve um momento em que você, e outros implicados no mesmo processo, tiveram a noção de que precisavam de procurar os instrumentos certos, "de época". Quando é que isso se tornou óbvio?
De facto, mais tarde do que deveria. Envergonha-me dizer que as primeiras gravações que fiz, em meados dos anos 50, da Arte da Fuga e das Variações Goldberg foram feitas com maus instrumentos, historicamente de todo inadequados. Foi só no final dos anos 50 que tive a revelação de cravos antigos - "Deus do Céu, isto é que é um cravo!", a maneira como soavam. Em Basileia, estudávamos tudo sobre os ornamentos e temperamentos, tudo muito científico, mas esquecíamo-nos de como soar - muito estranho.
O grande projecto que deu impacto ao movimento foi a gravação integral das Cantatas de Igreja de Bach dirigidas por si e Harnoncourt. Como as cantatas foram escritas para específicas ocasiões litúrgicas, alguma vez pensou que poderiam estar a fazer uma "profanação" dos propósitos?
Não. Claro que, se em Novembro se gravava uma cantata para a Páscoa, se tinha que pensar em termos da Páscoa. Mas, por outro lado, ficámos muito menos constrangidos por não ter que estar ao longo de um ano a gravar todas as cantatas de acordo com as ocasiões do calendário para as quais foram escritas. Agora não: se me pedem para dirigir a Paixão Segundo S. Mateus em Agosto, não - só aceito fazê-la na semana antes da Páscoa. Os discos são diferentes, mas aos concertos as pessoas devem acorrer para compreender o que Bach queria dizer, a sua fé.
E os que não têm essa fé?
Não quero julgar, não posso.
Mas sabe certamente que há muitos auditores que não têm essa fé e, no entanto, são tocados pela música de Bach.
Isso é maravilhoso, mas talvez estejam influenciados pelo que considero a minha fé, e a de Bach, sem se darem conta disso. Há algo, o espírito paira.
Mas então, sendo a sua fé calvinista, não segue estritamente os propósitos de Bach, que era luterano.
Bem, esse ponto é importante. Acredito que há música religiosa que não tem que ser só para os serviços litúrgicos. Nesses também há música, mas não é o único elemento. A música apela aos sentidos, mas num serviço litúrgico, mesmo quando há música, os sentidos devem ser excluídos. Mas, lá está, o espírito religioso pode influir num compositor quando escreve música.
Com as suas convicções calvinistas, como se sente quando de si se diz que é "o Papa" da música antiga. Como se sente?
(Risos) É errado em todos os sentidos. Para os católicos, o Papa encarna o poder do espírito, a verdade da fé, o que é uma coisa que eu não posso compreender. Em música, eu não quero ditar nenhuma ideia, não penso que tenha a verdade. Não penso que os outros devam fazer o mesmo que eu, têm que descobrir o caminho por eles.
Mas claro que tem a noção de que foi um dos pais fundadores.
Não, não tenho nada. Não sou o único.
Eu dizia, um dos...
Bom, está bem.
Tem a noção que o que realizou foi mesmo uma revolução?
Bem, uma revolução é uma coisa muito agressiva, e eu não o sou nada. Nunca foi o
meu objectivo mostrar que os outros estavam errados. Apenas me fascinou olhar para obras antigas, descobrir a teoria em volta, fazendo-o de uma maneira talvez diferente, aquela em que eu acredito, mas nunca me dei conta de nenhuma ideia revolucionária, de todo. Se outras pessoas gostavam do que eu fazia, tanto melhor, mas só isso.
Mas será então um conservador?
Não sei o que isso é. Gosto de conservar as boas coisas e mudar as más.
Não vê o risco de as revoluções devorarem os seus próprios filhos?
Boa questão! Não digo devorar, mas já começa a atingir alguns. Esta música já se tornou tão popular e muitos músicos são atraídos por ela por saberem que está em grande procura. E tocam com instrumentos que não são de época, ou sem o espírito. É que já se pode ganhar a vida tocando barroco. Também há passos em frente - Harnoncourt, dirigindo orquestras modernas, deu pequenos passos, consciente do facto de que o seu próprio conjunto é melhor, porque os instrumentos são apropriados. É um passo de transição. Mas há tantos músicos agora que não têm a experiência e são superficiais. E assim são um pouco devorados os filhos da revolução…
Incomoda-o saber que hoje o barroco está tão na moda?
Bem, também é maravilhoso. Não estou incomodado.
As obras nos seus discos vêm até Scarlatti, os filhos de Bach e num caso o jovem Mozart. É o que está para trás que é o seu mundo?
Em música e em arte, absolutamente sim. Quando se faz da arte o modo de vida, tem que se escolher um campo. E como eu escolhi os instrumentos de tecla (embora também tenha tocado violoncelo), naturalmente que me limitei ao órgão e ao cravo. E quando se faz a escolha, com os instrumentos vem a concentração num dado período, que é suficientemente longo. Para mim, são 200 anos, mas com que variedade, quase impossível de albergar, de Sweelinck a Wilhelm Friedmann Bach! É tanto em arte!
Extractos de uma entrevista no “Público” de 29-03-03