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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Soljenitsine

 

 

“Dedico este livro a todos quantos a vida não chegou para o relatar. Que eles me perdoem não ter visto tudo, não ter relatado tudo, não me ter apercebido de tudo.”
 
“Escrever um livro como este é superior às forças de um só homem: Além de quanto eu próprio trouxe do Arquipélago – na minha própria pele, na minha memória, nos ouvidos e nos olhos -, o material para este livro foi-me fornecido por relatos, recodações e cartas de duzenta e vinte e sete pessoas.
Não lhes exprimo aqui o meu reconhecimento pessoal: este é o nosso monumento comum de homenagem a todos os torturados e mortos.”
 
 
Alexandre Soljenitsine – O Arquipélago do Gulag
 
 
 
Como escrevi, foi funesta coincidência ter acabado de pôr em linha extractos da entrevista com Sokurov em que o realizador fala nomeadamente de Soljenitsine e do filme que com ele fez, quando soube da morte do escritor. Mas mais: a propósito do seu protagonismo em Alexandra, tinha escrito sobre Galina Vishnevskaya. Ora, Mstislav Rostropovich e Galina Vishenavskaya “passaram para o Ocidente” e foram depois “destituídos” da nacionalidade soviética, justamente por causa da sua solidariedade com Soljenitsine.
 
 
 
Lembro-me de ter lido Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch nos princípios dos anos 70, ainda antes do 25 de Abril, na edição dos Livros de Bolso Europa-América, e um pouco depois O Pavilhão dos Cancerosos editado pela Dom Quixote.
 
Li-os sabendo já que em era Soljenitsine, que ele era, para usar um termo que só anos depois se consagraria, um “dissidente” – o Prémio Nobel tinha-lhe sido atribuído em 1970, e as circunstâncias que rodearam essa atribuição eram bem conhecidas. Era pois sabido que as obras de Aleksandr Soljenitsine eram “testemunho” da realidade ditatorial da União Soviética. E tais obras confirmaram em mim uma alergia profunda ao lenino-estalinismo.
 
A crítica do regime soviético, diga-se, começara bem cedo, nos círculos da ultra-esquerda, e já no segundo pós-guerra uma análise sistemática e rigorosa foi empreendida pelo grupo “Socialisme ou Barbárie” (Castoriadis, Lefort, Lyotard), que me foi tão importante. Mas mais ainda: a realidade concentracionária da União Soviética foi analisada desde os anos 20 por Boris Souvarine, houvera depois da II Guerra o testemunho de Victor Kravchencko e O Zero e o Infinito de Arthur Koestler – e, claro, tinha havido o Retour de l’URSS de Gide.
 
Por importantes que tenham sido essas obras, e foram-no, nenhuma teve o impacto do Arquipélago do Gulag. Um Souvarine, por exemplo, que era ainda vivo quando do lançamento da obra de Soljenitsine em 1974, foi então redescoberto.
 
È preciso recordar que a União Soviética saíra aureolada da sua resistência e finalmente vitória face à invasão nazi, e que mesmo em círculos da esquerda não-comunista havia não raro uma complacência perante a “Pátria do socialismo” – a posição de um Sarte foi a esse respeito elucidativa, tristemente elucidativa.
 
Ora, depois de Um Dia na Vida de Ivan Desinovitch e de O Primeiro Círculo, O Arquipélago do Gulag foi a minuciosa revelação do sistema concentracionário em toda a sua dimensão. Dessa vez o impacto foi imenso. Em termos propriamente mediáticos, esse impacto fez-se sentir sobretudo em França, com a publicação de La Cuisinière et le Mangeur d’homme e de Les Maîtres penseurs de André Glucksmann e de La Barbarie à visage humain de Bernard-Henry Levy, dois ex-“maos”, dando origem à equivocamente chamada “nova filosofia”. Com o surgimento da Carta 77 na Checoslovásquia, a divulgação da Carta Aberta ao Partido Operário Polaco de Jacek Kuron e Adam Michinick, os testemunhos de Soljenitsne, Shakarov e Rostropovich, o termo “dissidência” é reconhecido – em Portugal, aliás, Manuel Maria Carrilho organiza um volume, Dissidência e Nova Filosofia, publicado pela Assírio e Alvim em 1979. Como tive ocasião de assinalar há algumas semanas, por ocasião da morte de Bronislaw Geremek, esses foram de algum modo os últimos grandes exemplos de “empenhamento” intelectual.
 
Não deixa aliás de ser irónico, já que Sartre (apesar de também ter defendido o escritor russo) foi uma das “bêtes noirs” de Soljenitsine, que o russo tenha afinal sido o maior exemplo do intelectual “engagé”, do comprometimento intelectual em sentido sartriano, e mesmo o derradeiro grande exemplo do modelo “profetista” de intelectual. Nesses termos, ninguém se lhe compara mesmo no século XX, Soljenitsine tendo-se erguido à dimensão de um Voltaire ou de Victor Hugo.
 
“Profeta” é aliás um termo com cabimento a seu respeito. Era o representante de uma tradição russa, substancialmente refractária à modernidade e ao Ocidente; os seus pontos de vista e o seu carácter valeram-lhe aliás, regressado à Rússia, desentendimentos e querelas com grandes expoentes da dissidência, como Andrei Sakharov e Andrei Sinivaski. Ironicamente, este antigo detido do KGB encontrou-se enfim, depois das suas críticas a Gorbatchov e Eltsin, com um antigo oficial do KGB, Vlamidir Putin. Mais grave ainda: alguns dos seus escritos são no mínimo ambíguo em termos de um possível “anti-semitismo”, como antes o anti-cominismo o cegara face a ditaduras como as de Franco e Pinochet.
 
Mas que fosse só pelo Arquipélago do Gulag (e em qualquer caso foi sobretudo por esse) e Soljenitsine seria em qualquer caso um escritor imenso. É importante aliás notar que se não tinha havido e não houve outra descrição assim do horror e extensão do sistema concentracionário soviético, O Arquipélago do Gulag é também, em termos literários, uma obra monumental, certamente um dos grandes livros do século XX: Este “ensaio de investigação literária” orquestra magistralmente os testemunhos de 227 “zeks” (prisioneiros políticos). Para Soljenitsine a literatura não tinha apenas ou sobretudo que ser da ordem da "beleza", tinha de ser da ordem da "verdade".
 
Ele foi, como Tolstoi, Doiestevski e Turgueniev (há também Pushkin, que é espúrio referir a propósito de Soljenitsine), um dos gigantes da literatura russa. Se de algum modo quis comparar-se a Tolstoi, o seu grande projecto equivalente ao Guerra e Paz do outro, A Roda Vermelha (em torno da revolução de 1917), em que aliás se confronta explicitamente com Tolstoi e o seu humanismo, será afinal aquele menos consequente literariamente. São antes os demónios de Dostoievski (mesmo que nalgumas descrições de personagens e ambientes paira também a sombra de Turgueniev) que se retomam na sua obra.
 
 
“Quando privais alguém de tudo, ele deixa de estar sob o vosso poder. Ele volta a ser inteiramente livre”
 
Alexandre Soljenitsine – O Primeiro Círculo