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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Cantatas de Bach - II

 

Bach
Cantatas vol. 39
Ich bin ein guter Hirt
Cantatas nº 28, 68, 85, 175, 183
Carolyn Sampson, Robin Blaze, Gerd Türk, Peter Kooij
Bach Collegium Japan, Concerto Palatino, Masaaki Susuki
Sacd Bis

 

 

 

 

 

 

Cantatas vol. 38
Ich habe genung
Cantatas 52, 55, 58, 82
Carolyn Sampson, Peter Kooij, Gerd Türk
Bach Collegium Japan, Masaaki Susuki
Sacd Bis
 
 
A seu tempo, a integral das cantatas litúrgicas de Bach dirigidas por Nikolaus Harnoncourt e Gustav Leonhardt na Telefunken (e recentemente reeeditada numa única caizxa) foi uma ousadia inaudita, o maior projecto da história da produção discográfica. Agora, proliferam os ciclos de integrais.
 
Ouçam-se Gardiner e Koopman, preste-se sobretudo atenção ao mais recente Sigiswald Kuijken, mas é sabido que o ciclo que se tem mostrado consistentemente a mais alto níveis é o Bach que vem do Japão!
 
Estes são os dois mais recentes volumes, ou quase – pois para ser exacto já foi também editado o 40, todavia ainda não disponibilizado no mercado português. E tome-se bem nota na sua identificação ao número, já que, incrivelmente, ou por falta de imaginação no princípio único de apresentar como capa uma foto de Susuki, pois no caso elas são idênticas.
 
O vol. 38 compõe-se de cantatas a solo, Falsche Welte, dir trau ich nicht, BWV 52, para soprano, a célebre Ich habe genung, BWV 82 para baixo, Ich armer Mensch, ich Sündenknecht, BWV 55, para tenor e Ach Gott, wie manches Herzeleid, BWV 58, para soprano e baixo. Um tal programa tem desde logo uma dificuldade, Ich habe genung precisamente, obra indelevelmente marcada pela maravilhosa gravação de Max von Egmond, dirigida por Franz Brüggen, com Brune Haynes no oboé. Peter Kooij é, como é usual, notável, mas está longe, muito longe, de se equiparar. Também o outro cantor que tem vindo a ser peça fundamental do ciclo, o tenor Gerd Türk mostra-se mais ágil que propriamente inspirado na BWV 55. Resta Carolyn Sampson. Ela é absolutamente radiosa na BWV 52, que de resto, logo desde a sinfonia inicial, é a única cantata deste registo em que por inteiro se reconhecem os mais altos valores que têm norteados a integral Suzuki, com o seu sentido da declamação e da articulação, a agilidade rítmica e a fluência. Mas Sampson decepciona também pela falta do fervor pietista na ária “Ich bin vergnügt in meinem Leiden” da BWV 58.
 
De outro nível é o vol. 39 – isto, apesar de neste termos de novo de aturar (pouco, felizmente), esse caso incompreensível que é o do contra-tenor Robin Blaze, exemplo do que a escola britânica pode ter de mais insuportavelmente amaneirado.
 
Estes volume reúne cantatas escritas em 1725, Also hat Gott die Welt geliebt, BWV 68, Er rufet seinen Schafen mit Namen und führet sie hinaus, BWV 175, Gottlob! num geht das Jahr zu Ende, BWV 28 e Sie werden euch in den Bann tun, BWV 183.
 
Exceptue-se pois Blaze, e diga-se que neste disco Suzuki renova a sua capacidade de beleza sonora, o sentido rítmico e a invenção do contínuo, o fervor do coro. Em particular admirável é a cantata inicial, a BWV 68, com um magnífico coral de abertura e a virtuosidade da ária para soprano “Mein gläubiges Herze”.
 
A ter de fazer escolhas nesta integral – que, repito, é daquelas em curso, a que mais persuasivamente se impõe no seu projecto de “integral”-  este vol. 39 é por certo um dos que cabe reter.

 

Schütz sagrado

 

Heinrich Schütz
Excertos dos Salmos de David e Symphoniae Sacrae
Cantus Cölln, Concerto Palatino, Konrad Junghänel
Casa da Música, 14 de Novembro
 
 
Já tive ocasião de explicar que há certas obras, certos concertos, que justificam uma ideia de peregrinação – e este foi também um desses, raros. Se não erro, há mais de 25 anos (!) que não se realizava em Portugal um concerto dedicado a Schütz, o primeiro mestre alemão do barroco, e logo com obras de duas grandes colectâneas, os Salmos de David e as Symphoniae Sacrae, acrescendo a justificada reputação dos intérpretes.
 
Decisivamente marcada pelo novo estilo de monodia italiana e também pela policoralidade venezeniana, Schütz adaptou esses princípios à tradição luterana – com ele começou a linhagem que culminaria em Bach. As suas obras são admiráveis exemplos de retórica musical e de fervor religioso.
 
O Cantus Cölln é conhecido por se compor de uma voz real por parte, isto é, de nas linhas da clivagem na polémica sobre o “Bach choir” lançada por Joshua Rifkin e Andrew Parrot pender para o lado desses, os minimalistas. Casos há em que a opção, pela excelência da realização, se tem revelado pertinente – é o caso da extraordinária gravação da cantata Actus Tragicus de Bach. Mas outros registos há também em que a opção é bastante menos convincente, como os da Missa em si menor de Bach e da Selva morale e spirituale de Monteverdi.
 
Mesmo sendo certo que nas Symphoniae Sacrae estão estipuladas “vozes obrigadas”e “vozes facultativas”, pelo que é uma opção possível restringir-se estritamente às primeiras, porventura possibilitando uma melhor inteligibilidade do texto, o que é fundamental em Schütz, tenho dúvidas que a opção minimal tenha conseguido traduzir a absorção pelo compositor alemão da prática veneziana da policoralidade. Também uma das sopranos foi algo irritante.
 
Mas expostas as reservas, há que dizer que irradiou a extraordinária beleza desta música, intensamente interpretada numa relação de grande conhecimento e familiaridade, com dois momentos mesmo extraordinários: o “Ewigkeit” (eternamente) do Salmo 137 e sobretudo “Saul, Saul, was ver verfolgst du mich”, de resto porventura a mais celebra das Symphoniae Sacrae.
 
Sim, a peregrinação justificava-se e justificou-se.
 
 
 
PS – Para nossa penúria, por decisão arbitrária do mega-senhor do CCB, já perdemos nomeadamente este ano uma Festa da Música dedicada a Schubert. Para o ano, em termos do da importância da proposta, a perda será ainda maior: a “Folle Journée” de Nantes terá como tema “De Schütz a Bach”. Voltarei ao assunto.

 

"É a obra que faz de mim o seu intérprete" (Brendel - I)

 

 

 

 

P - Tem falado e escrito sobre o “carácter” particular de cada obra., de cada “obra-prima”. A sua tarefa como pianista, como intérprete, é então tentar discernir cada “carácter” particular?
 
R - Esse é um dos aspectos mais fascinantes. Sinto-me muito próximo de um actor que assume personalidades, e quando se toca peças tem de se fazer o mesmo, de acordo com que a peça requer. E quando digo que a peça tem um “carácter” é algo de semelhante a olhar para as pessoas, para os amigos. Sabemos que um amigo tem certas qualidades, certas possibilidades, certas potencialidades, e algures dentro desses campos está o seu “carácter”. É o mesmo com uma obra de música. Temos de encontrar o campo em que o “carácter” existe e não ultrapassar esse campo, porque então se fazemos isso desentendemos, descaracterizamos a obra.
 
P - Uma das suas características interpretativas é o rigor intelectual na estrita fidelidade ao que está prescrito na partitura. E no entanto, de cada vez que de novo se aproxima de uma obra, tenta também encontrar as margens de liberdade de uma interpretação.
 
R - Mas dentro dos limites do “carácter” de uma obra existe uma margem de liberdade; talvez 30 por cento. Mas para se estabelecer esse “carácter”, para o ajustar, tem que se estar seguro até certo ponto do que se deve fazer, mas não totalmente: tem de permanecer com algum cepticismo sobre o que já se fez antes, embora não um cepticismo que nos destrua.
 
P - É essa a razão porque gravou várias vezes, nalguns casos até três, os Concertos e Sonatas de Beethoven ou os Concertos e Sonatas de Mozart?
 
R - Bem, uma das razões é que, se mantém uma carreira e se prossegue até a uma idade mais velha, então também se deve desenvolver e não apenas permanecer no ponto em que já se estava. Há alguns músicos de carreira muito precoce e que depois pouco se desenvolvem. Comigo foi diferente: fui-me desenvolvendo gradualmente, com tempo suficiente para pensar as coisas, para as sentir, para estudar, por isso penso que ainda me estou a desenvolver.
 
P - Mas com o tempo também se tem vindo a concentrar. Foi um intérprete extraordinário de um compositor como Liszt, que hoje já não toca, mas em anos recentes tem-se concentrado em Mozart, Beethoven…
 
R - E Schubert, Schumann e Haydn. As coisas são o que são. Em parte são razões físicas; tenho que me precaver e estar atento ao que me é possível, sem prejudicar quer o meu estilo, quer as minhas mãos.
 
P - Gosta de acentuar que é parte de uma tradição clássica.
 
R - Sou.
 
P - Voltando sempre à questão central para si do “carácter”. Se a tenta discernir numa obra, supõe-se a si como intérprete da obra ou é a obra que faz de si o intérprete dela?
 
R - A minha ideia é que no fim é a obra que faz de mim o seu intérprete. Há pianistas que tentam impor a sua personalidade à obra - não sou desses. Claro que tenho uma personalidade e que essa também lá está de um modo ou outro, mas não é o principal.
 
P - Mas não é com certeza apenas o humilde servo da obra, há a sua distintiva personalidade de intérprete.
 
R - Tenho a noção de que deve uma fusão das duas coisas, o “carácter” da obra e a minha “personalidade”, mas o que tento é fazer justiça à obra, e não fazer da obra o que ela deveria ser ou o que compositor deveria ter feito com ela, como outros tentam.
 
P - Tomemos por exemplo as Sonatas de Mozart. Costuma citar uma frase de outro grande pianista, Arthur Schnabel, que dizia que elas “eram muito fáceis para as crianças e muito difíceis para os artistas”.
 
R - Precisamente. E essa é uma razão porque não são tocadas mais vezes, porque há artistas que não se arriscam a tocá-las. São subestimadas, comparativamente às obras-primas que são os Concertos. Pensa-se que são obras para crianças. Mas quando nos queremos aproximar delas são obras maravilhosas.
 
P - Não acha que em comparação as Sonatas de Haydn são muito mais subestimadas?
 
R - Não, já não. E mesmo nos meus anos jovens, havia pianistas que achavam as Sonatas de Haydn mais interessantes que as de Mozart.
 
P - Mas você foi justamente um dos intérpretes que nos tornou presentes quão grandes eram as Sonatas de Haydn e mesmo hoje são ainda poucos os pianos de topo que as tocam regularmente.
 
R - Mas há 12 ou 15 delas que são maravilhosas!
 
P - Referiu que se mantém sempre interessado em música nova. Para além da sua grandeza como intérprete, uma das coisas que me tem surpreendido ao longo dos anos, são as vezes que consigo me tenho cruzado em concertos a que assiste. Lembro-me de uma interpretação do “Quator pour la fin des temps” de Messiaen, de um “Pierrot Lunaire” de Schoenberg, sei-o interessado pelos Estudos de Ligeti…
 
R - Muito. Digo a jovens pianistas para os tocarem.
 
P - Portanto, a curiosidade intelectual é parte do seu “carácter”.
 
R - Desculpe mas está a enfatizar o “intelectual”. O intelectual em mim não é primordial. O intelecto sem emoção não tem grande justificação em mim. Não sou um intelectual; uso o meu intelecto, mas antes de mais sou um artista, uma pessoa intuitiva que também pensa.
 
P - É por isso que disse que “o sentir deve ser o alfa e o ómega de um músico”?
 
R - Sim, mas passando pelo filtro do intelecto, tal como pelo filtro das emoções – embora não baste extravasar as emoções, é preciso qualificá-las, transmitir aquelas que sejam verdadeiramente importantes.
 
P - Mas é também um ensaísta, tem reflectido muito sobre música.
 
R - Sim, isso sou, e também nos últimos anos um poeta, o que aliás me sucedeu de surpresa. Agora, há edições de poemas meus em alemão e em inglês e irá ser publicada outra no final do ano em francês e alemão.
 
P - O “nonsense” é muito importante nos seus poemas.
 
R - É. Ambos são, o “sense” e o “nonsense”.
 
P - Por alguns dos seus poemas, suporia que tem um interesse pelo “dadaísmo”.
 
R - Nalguns aspectos sinto-me próximo, sim. Não sou completamente um “dadaísta”, mas parte da minha personalidade reconhece-se nesse sensibilidade.
 
P - A sua é a personalidade é a de “um cidadão do mundo”?
 
R - Não me limito a um país, com certeza. Tento ser tão cosmopolita quanto possível, sabendo que tenho certas raízes na Europa Central, no que diz respeito à música e à literatura.
 
P - Sendo certamente um Homem de muitas Qualidades…
 
R - Que tem “O Homem sem Qualidades” [de Musil] como um dos livros favoritos!
 
P - Era esse o ponto!
 
R - Mas as contradições de um homem são importantes.
 
P - Mas não é contradição nenhuma ser um Homem de muitas Qualidades que tem uma preferência pelo “Homem sem Qualidades”!
 
R - Bem, um homem com qualidades e um homem sem qualidades…
 
P - Tocar, escrever – é uma espécie de “vida dupla”?
 
R - É uma “vida dupla”, não é a mesma coisa; há similaridades, mas são coisas diferentes. Até começar a escrever poemas, havia uma forte conexão, porque escrevia sobre música e matérias da minha profissão. Agora são os poemas que me escrevem.
 
 
 
Extractos de uma entrevista no “Público” de 30-04-05
 
 
Na sua digressão de despedida, Alfred Brendel realiza hoje um recital na Gulbenkian, às 19h


 

Casa da Música - IV

 

 

 

Sempre fui defensor do modelo de fundação e de parceria público-privado, como em Serralves, para a Casa da Música – quem porventura tiver presente uma brochura editada pelo “Público” quando da inauguração da Casa em Abril de 2004, poderá constatar ser essa a posição que eu defendia. Entendo isso, por várias razões, nomeadamente por achar fundamental a atração mecenática de capitais para a cultura, uma gestão mais profissionalizada sem os vícios das burocracias estatais e também uma maior autonomia face à tutela política, em que, como tivemos recente exemplo no consulado Pires de Lima / Vieira de Carvalho, afinal ainda ocorrem recorrentemente tentações dirigistas.*
 
Mas a entrega das responsabilidades de gestão directa a alguém vindo do sector privado não deixa de trazer também alguns riscos. Como me dizia recentemente um produtor de indústrias cultural “o problema dos gestores é que pensam nos fins e não nos meios”, ou seja, no caso, que podem não ter devidamente em conta as valias culturais para além da sua tradução imediata em afluências de públicos, ou “box-office”.
 
Instituída a Fundação, foi escolhido como administrador-delegado Nuno Azevedo, o filho mais velho de Belmiro de Azevedo. Que ele tenha optado por um projecto cultural em vez do “universo Sonae” é algo que já diz muito da sua motivação para o cargo. Ao longo destes três anos, tenho sido testemunha do modo como Nuno Azevedo “abraçou a causa”, não sem alguns excessos: se compreendo que tenho dito que “Agora a Casa da Música é um diamante delapidado. Antes, era um diamante em estado bruto”, já me parece demasiado auto-congratulatório e mesmo injusto que, no balanço dos três anos, fundamentalmente tenha assinalado “o facto de termos conseguido inverter a ideia praticamente generalizada de que o projecto da Casa da Música era frágil” (“DN” de 14-04-07).
 
Mas, exemplo do seu empenho, ainda muito recentemente, na “Sábado” da passada semana, Nuno Azevedo usou o Direito de Resposta para detalhadamente e com números concretos contestar uma nota anterior de Pacheco Pereira que tinha dito estranhar “o desperdício” da brochura da programação de 2009 ter sido distribuída com o “Público” – comentário aliás sumamente hipócrita porque Pacheco começava por dizer “Tenho a maior das estimas pela Casa da Música e não me pronuncio sobre o mérito da sua programação, nem sobre o modo como anuncia os seus programas, a não ser quando estranho o desperdício”, sendo que a sua “maior das estimas” é incongruente pois que é inimigo jurado dos investimentos públicos na cultura (e foi o Estado que construiu a Casa da Música), e ninguém o imagina a assistir a um concerto – como a ver um espectáculo ou a ver um filme.
 
Mas por todas estas razões há também que fazer notar que, sendo Nuno Azevedo o administrador-delegado, os laços Casa da Música – Sonae estão em risco de se tornarem em ligações perigosas.
 
Não me choca nada que uma grande campanha promocional da Casa seja feita no “Público”, porque, apesar do seu triste declínio, o diário da Sonae.com é ainda de modo claro aquele que tem públicos que mais potencialmente são também os da Casa. Mas já me parece muito questionável que no piso térreo do edifício haja agora uma loja da Optimus e francamente indecoroso que entre os benefícios oferecidos pelo Cartão Amigo Casa da Música se conte “Entradas gratuitas do Continente online em compras superiores a € 75”, como se podia constatar na promoção inserida no “Ípsilon” da semana passada.
 
Por isso, para benefício geral, creio importante uma chamada de atenção.
 
 
 
 
* Também debalde tive esperanças que a constituição de uma tal fundação contribuísse para revitalizar no mesmo sentido, que legalmente é o que tem, a Fundação Centro Cultural de Belém, e acho que não se pode deixar de assinalar uma flagrante discrepância, mais outra, Lisboa-Porto, sendo que na primeira o Estado investe por inteiro ou quase, e na segunda é que faz parcerias e solicita mecenaticamente capitais privados.

 

Memórias da infância presente

 

 
That Night Follows Day
um espectáculo de Tim Etchells e Victoria
Culturgest, 27 de Novembro
 
Este é um espectáculo insólito, inteligentíssimo e brilhante. Tim Etchells, o director da conhecida companhia britânica Forced Entertainement foi convidado pela plataforma Victoria de Gent (Bélgica) a fazer um espectáculo com 16 crianças, entre os 8 e os 14 anos. Não se trata no entanto de teatro infantil, nem de exploração como território infinito de virtualidades, mas destina-se sim a adultos e é como um jogo de espelhos: as crianças devolvem aos adultos os discursos que eles têm para com elas e o modo como com elas se comportam.
 
Quando está em exibição esse grande filme que é Entre les murs/A Turma de Laurent Cantet é deveras interessante notar que uma outra obras participam da lógica de um match: no filme isso ocorre entre o professor e alunos, no espectáculo entre o palco e esse contracampo que é plateia dos adultos: não por acaso a cenografia é a de ginásio, e não por acaso toda a primeira parte do espectáculo (cerca de 30’) é dita em homofonia à boca de cena, frontalmente para os invisíveis adultos, as crianças relatando-lhes (recordando-lhe)  o que eles lhes dizem e fazem.
 
Quando dizem, por exemplo, “Vocês ensinam-nos a escolher bem as palavras”, mais notório é que o processo de aprendizagem, de transmissão de saber, é também processo de dominação, de que aqui se devolve a imagem, no jogo.
 
Jogo, também “play”. Espectáculo à parte, That Night Follows Day não deixa de ter uma reconhecível “marca Forced Entertainement” – e acrescento mesmo, é muitíssimo mais interesssante que os dois espectáculos que a companhia apresentou no Alkantara 2006, The World in Pictures e Exquisite Pain. Pelo jogo, pelo fragmento e a repetição (“vocês…”, “vocês…”) até à possibilidade infindável – como em And On The Thousandth Nigth (Culturgest, 2002) – afinal, sendo que se “tthat night follows day”, também “that day follows night”, e por aí adiante…
 
 
 
 
Próximos espectáculos, dias 28 e 29, às 21h30

 

Van Sant aclamado

 

 

 

 

Harvey Milk, o primeiro homossexual assumido eleito para um cargo político nos Estados Unidos foi assassinado fez agora 30 anos, juntamente com o próprio Mayor de San Francisco, George Moscone, por um seu colega homofóbico do Board of Supervisors da cidade, Dan White. Se já em vida Milk era um ícone, mais ainda o foi depois da morte: Rob Eptsein (também co-autor de The Celluloid Closet) e Richard Schiechen dedicaram-lhe um documentário em 1984, The Times of Harvey Milk, que ganhou o Óscar, e Stewart Wallace compôs uma ópera, Harvey Milk.
 
Mas durante anos e anos falou-se de um biopic e foram sucessivos os realizadores que se declararam interessados em “The Mayor of Castro Street”, como o próprio Milk se declarava, de Oliver Stone a Bryan Singer. Enfim, o filme existe, foi dirigido por Gus van Sant, e estreou ontem nos Estados Unidos, com aplausos quase gerais, aclamações mesmo: “A marvel” clama O. A. Scott no “New York Times, “vibrant alive” escreve Dana Stevens na “Slate”.
 
Como Elephant em relação em relação ao massacre de Columbine e Last Days no respeitante ao suicídio de Kurt Cobain, Milk é, como assinala O. A. Scott, “uma crónica de uma morte anunciada”. E o filme é narrado por Milk de além-túmulo, abrindo com material documental, incluindo o anúncio do duplo assassinato pela então membro do Conselho Municipal de San Francisco e ora senadora pela Califórnia, Diane Feinstein. Mas ao contrário desses outros filmes, como aliás também de Gerry e de Paranoid Park, a tensão letal que vem caracterizando as obras de Van Sant num modo narrativo experimental, confronta-se neste caso, ou limita-se deliberadamente, pelo carácter icónico do objecto abordado: havia que “narrar Milk”, como aliás está no título. Daí que, com ironia subtil, Hoberman também diga do trabalho de um gay, Van Sant, sobre outro gay, Milk, que a sua postura é “straight” – em termos narrativos, entenda-se, mais directo, e menos elíptico.
 
Não por acaso o argumentista, Dustin Lance Black, é ele próprio um documentarista, e o filme concentra-se com agudeza na personagem titular, com Milk, interpretado por Sean Penn, presente em quase todas as cenas.
 
Harvey Milk mantinha a sua sexualidade no “closet” em Nova Iorque. Mudou-se para San Francisco e abriu uma loja de fotografia na Castro Street (by the way, o cinema dessa rua, o Castro Theatre, é um dos mais espantoso que conheço, ainda uma dessas grandes catedrais cinematográficas dos anos 20/30, com órgão e tudo). Quando lhe ameaçaram a loja, Milk, em vez de uma resposta individual, tornou-se um activista, em breve um líder de uma comunidade – e Castro Street um centro “gay”.
 
A sua notoriedade cimentou-se na luta contra a Proposition 6, lançada pela ultra-conservadora Anita Bryant, visando impedir professores “gays” de exercerem. A triste actualidade suplementar do filme, e que marcará muito a sua recepção, é que Milk chega no momento em que o histórico voto de 4 de Novembro foi manchada pela adopção na mesma Califórnia da Proposition 8, anulando a deliberação do supremo tribunal estadual de permitir os casamentos homossexuais. Ora, de acordo com as críticas, Milk é afinal também inteiramente dedicado ao princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, no caso independentemente da orientação sexual, e igualdade também na afirmação política dos direitos não obstante essa orientação: “A homossexual with power, that’s scary” ironiza Milk, que obstinadamente se candidatou, duas vezes foi derrotado, à terceira sendo enfim conseguindo..
 
Apesar da oposição do Presidente eleito aos casamentos de homossexuais – mas no seu discurso de vitória, ao falar de todos não deixou de mencionar “gay or straight” –Jim Hoberman declara Milk o primeiro “Obama-iste movie”.
 
Dá para perceber que com a estreia de Milk começou a corrida aos Óscares, no que estes podem ter de minimamente interessante ou sintomático: o modo como a indústria cinematográfica americana se vê a ela própria no contexto mais geral da América.
 
 
PS- Entretanto no IndieWIRE, Rob Epstein diz que o filme de Van Sant – a ficcionalização do que ele abordou como documentário - é “terrific”, e fala da colocação online de The Times of Harvey Milk em (VOD- video on demand) na Amazon.com.


 

Gérard Mortier em Madrid

 

 

 

Breakings news, como se usa dizer: o Teatro Real de Madrid acaba de anunciar a nomeação de Gérard Mortier como director artístico, confirmando rumores que circulavam há semanas.
 
O flamengo, o mais prestigiado director de ópera europeu, mundial mesmo, depois de ter dado brilho ao Théâtre de La Monnaie em Bruxelas (1981-92), e ter sido surpreendentemente escolhido, depois da morte da Herbert von Karajan, para dirigir o Festival de Salzburgo, em anos (1992-2001) que ficaram memoráveis, escandalizaram o público tradicional, mas profundamente renovaram a projecção do evento, completou ontem 65 anos, limite de idade para as funções que desde 2004 exerce na Ópera de Paris, tendo no entanto sido prorrogado excepcionalmente o seu mandato até ao fim da temporada em curso. A surpresa foi que entretanto, em Fevereiro do ano passado, Mortier foi anunciado como próximo director da New York City Opera, a ópera pública da cidade, fazendo os críticos especular sobre o que poderia vir a ser um quadro com Peter Gelb no Met e Mortier na City Opera..
 
Ao longo deste ano, todavia, pressentiram-se desentendimentos. O notório interesse de Mortier por ópera contemporânea causava apreensão a membros da administração, e o seu alinhamento em parceria em parceria com Nike Wagner (filha de Wieland) na luta pela sucessão de Bayreuth (que acabou decidida por uma “reconcilação” das duas filhas de Wolfgang Wagner, Eva e Katherina) foi apontado como uma deslealdade. Por fim, os cortes financeiros na City Opera levaram à sua renúncia no passado dia 8.
 
A ida de Mortier para Madrid é mais uma confirmação, particularmente importante, da consolidação do Real entre os teatros europeus, quando tradicionalmente era bem menos prestigiado que o Liceo de Barcelona, e menos inclusive que o São Carlos de Lisboa - mas evitemos fazer comparações sobre o estado actual de um e outro teatro, que as coisas são bem tristes.

 

Messiaen - II, Turangalîla - II

 

 

 

Olivier Messiaen
Turangalîla-Symphonie
Markus Bellheim, Philippe Arrieus
Orquesta Sinfonia Portuguesa; Julia Jones
CCB, 16 de Novembro


É uma coincidência, importante de resto, mas por inteiro se justifica passar à estreia de outro novo director titular, o da Orquestra Sinfónica Portuguesa, Julia Jones, e assim também retomar a sequência das comemorações do centenário do nascimento de Olivier Messiaen.

 

Antes do mais, alguns dados: esta grande obra-prima foi estreada em Portugal a 11 de Novembro de 1967, pela Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, no Tivoli, com intérpretes de referência, as irmãs Yvonne (mulher do compositor) e Jeanne Loriod, direcção de Maurice de Le Roux, em presença do autor. Depois, a obra esteve ausente dos programas 35 anos, até ser de novo interpretada, pela Orquestra de Baden-Baden, direcção de Sylvain Cambreling, a 8 de Abril de 2003 no Europarque de Vila da Feira. De súbito, neste ano do centenário é a inflação: foi feita a 26 de Janeiro, na Casa da Música, pela Orquestra Nacional do Porto, direcção de Michael Zilm, de novo logo três dias depois em Lisboa no Coliseu dos Recreios, no Ciclo de Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian, de novo por Cambreling e Baden-Baden (o texto crítico ficou em falta, mas já segue) e agora pela ONP!

 

Como já tive ocasião de dizer a propósito da temporada do São Carlos, a programação do óbvio revelou neste caso uma notória falta de imaginação, pois foi delineada quando já se sabia das outras duas execuções, e foi mesmo anunciada posteriormente. Sendo que uma outra grande obra para orquestra, Chronochromie, será feita pela ONP na Casa da Música, no próximo dia 12, em vez desta terceira Turangalila bem que antes podia ter sido sim feita a outra grande orquestral do autor, a mais vasta em termos de espaço sonoro, Des Canyons aux étoiles, o que completaria o quadro. Enfim…

 

(Isto dito, também devo acrescentar contudo que o público que acorreu ao CCB para este concerto da ONP foi substancialmente daquele outro que assistiu à interpretação no Ciclo das Grandes Orquestras).

 

Julia Jones começou com um gesto amplo mas, a pouco, os “Bien modéré” foram-se tornando uniformes, e sentiu-se que a maestrina ainda está a “tactear” a relação com a ora “sua” orquestra. O mais surpreendente ocorreu contudo do lado dos solistas: ainda que laureado do Concurso Messiaen, o pianista Markus Bellheim exibiu um nada apropriado “toucher” duro, enquanto por outro lado, se em geral aquilo que à época da criação era o aspecto mais “modernista” da obra, o uso das ondas Martenot, surge agora como o mais datado, o solista, Philippe Arrieus, impôs-se pela sua sensibilidade – e nunca me tinha ouvir, em concerto ou em disco um caso em que ondas Martenot se destacassem mais que o piano.

 

De algum modo, esta execução, apesar dos seus muitos limites, não deixou de ser empolgante – porque a Turangalîla-Symphonie é uma obra tal que, a menos seja um desastre, sempre empolga. Mas houve os tais muitos limites.
 

Pélleas reencontrado

 

 

 

 
 
 
Schönberg
Pelléas und Mélisande
e obras de Adams, Tüur e Saarariaho
Orquestra Nacional do Porto, Christopher König
Casa da Música, 20 de Setembro
 
Depois de durante demasiado tempo ter indo anunciando a sua programação trimestralmente – o que além de irritante para o planeamento dos espectadores era um contrassenso para a própria instituição, pois não permitia ver com clareza as linhas de orientação – a Casa da Música passou desde o ano passado, respeitante a este, a anunciar a sua programação justamente num módulo anual.
 
Tanto melhor se deu esse passo, que era imprescindível, mas este conceito de uma instituição musical apresentar a sua programação de acordo com o ano civil, e não o conceito de temporada, também não me parece o mais curial, porque é nesses termos de temporada que assenta o trabalho de formações musicais.
 
Prova do que digo é o facto do concerto do passado dia 20 de Setembro, integrado no ciclo Novas Músicas, ter de facto sido a abertura da temporada da Orquestra Nacional do Porto, e na ocasião a estreia do novo maestro titular, pedra angular que faltava, Christopher König – e é disso que quero falar.
 
König já antes dirigira a ONP, bem como até também o Remix – em Abril, no ciclo Música e Revolução, noutra prova da valia que para a Casa da Música é ter ambos os agrupamentos, os respectivos maestros “trocaram”, König dirigindo o Remix e Peter Rundel a ONP. Mas a responsabilidade de um concerto de estreia como maestro titular é sempre muito particular.
 
“Tough”, dizia-me horas antes König. Foi o contrário da facilidade de facto optar pelo “outro Pélleas”, não o de Debussy, mas o de Schönberg (ou o mais notório dos outros, pois que para o drama de Maeterlinck existem também as músicas de cena de Fauré e Sibelius) e três obras contemporâneas, nenhuma delas de execução acessível, e uma, Lollapallaza de John Adams, mesmo francamente virtuosística – e feita a abrir o concerto com tanto brilho que me ocorreu até a possibilidade de ainda um dia virmos a ouvir essa suprema obra orquestral de Adams que é Eldorado.
 
Mas o importante era mesmo Pélleas e Mélisande, poema sinfónica de grande fôlego, e obra raríssima de se ouvir – para ser preciso, em Portugal, que eu tenha presente e saiba, foi feita uma vez pela então Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional (com o maestro Richard Duffalo), mas na Gulbenkian, a, pasme-se!, 7 de Junho de 1974 (por acaso, as últimas representações do Pélleas et Mélisande de Debussy foram na mesma altura).
 
Pedagógico, König fez primeiro uma introdução, apresentando os motivos e temas dos episódios. Depois, deu provas de um apurado trabalho com os naipes – algo que de resto é do mais importante no labor de um maestro-director -, de sentido das densidades e de fôlego narrativo. Estreia auspiciosa, pois.
 
Como já disse alguém mais próximo do processo, “parece que ele vestiu mesmo a camisola”. Tanto melhor.

 

 
 

Casa da Música - III

 

 
Neste quadro de balanço e perspectivas da Casa da Música não quereria cometer uma omissão, sobre algo que é já em si mesmo uma omissão: a ausência - ou exclusão, não sei -  de Anthony Wittworth Jones, que foi o primeiro director artístico da instituição.
 
Certo, houve muito equívocos, mesmo jogadas e faltas de transparência, na nomeação do britânico pela então Casa da Música/Porto 2001 S.A., conduzindo ao afastamento do projecto de Pedro Burmester. Mas à medida que se integrou e se foi inteirando do processo, o antigo director do Festival de Glyndebourne também compreendeu por ele próprio que, uma vez estatutariamente constituída a entidade responsável pela Casa, fazia todo o sentido que o Conselho de Administração entretanto nomeado optasse por um regresso de Burmester.
 
O que é certo é que em muito pouco tempo, dada a sua vasta rede internacional de contactos, Wittworth-Jones conseguiu trazer à novel Casa a Sinfónica de Londres, Brendel, Gardiner, etc., e assegurou para todos efeitos - ainda que com o elemento de continuidade, António Jorge Pacheco como coordenador de produção - as duas primeiras temporadas.
 
Falou-se na altura que, com Burmester como director artístico, ele pudesse permanecer como consultor. Desconheço as razões porque tal não se concretizou, se incompatibilidades, se limites de ordem financeira (e das questões de gestão da Fundação da Casa da Música falarei também). Certo é que houve momentos em que a programação se ressentiu nitidamente de uma certa ausência de nomes mais prestigiados, de cabeças de cartaz, a que aliás o público também tem direito – e Anthony Wittworth-Jones, que aliás continua a vir com regularidade ao Porto, bem pode ser o ponta de lança de relações nos circuitos musicais internacionais que também cabe à Casa da Música ter.

 

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