Dias de luto para a música afro-americana: depois de Odetta e de Eartha Kitt, é agora um dos grandes trompetistas modernos que desapareceu, Freddie Hubbard.
Nascido em Indianapolis, o primeiro músico de relevo com quem tocou foi o guitarrista Wes Montgomery. Em 1958 mudou-se para Nova Iorque e rapidamente os seus dotes de invenção melódica e de virtuosidade fizeram com que fosse notado, tocando nomeadamente ao lado de Sonny Rollins. Em breve, em 1961, integrava também esse arsenal de talentos que foram os Jazz Messengers de Art Blakey, participando nomeadamente em dois dos álbuns mais importantes do grupo, Mosaic e Buhaina’s Delight – outro dos músicos de então era Wayne Shorter.
Embora a sua matriz fosse basicamente hard-bopper tendo Clifford Brown como grande referência, sucedeu-lhe – e não certamente por acaso – o facto extraordinário de participar em três dos mais seminais discos da história do jazz, Free Jazz de Ornette Coleman (1960), Out to Lunch de Eric Dolphy (1964) e Ascension de John Coltrane (1965). Ainda assim nunca foi propriamente um “vanguardista”, embora Dolphy tenha sido para ele uma outra influência marcante – de resto participaram ambos outro álbum importante, The Blues and the Abstract Truth de Oliver Nelson; Hubbard também comparticipou das novas tendências modais designadamente em dois célebres discos, Maiden Voyage de Herbie Hancock e Speak No Evil de Wayne Shorter.
Em 1966 formou o seu próprio grupo, que teve a sua maior hora de glória em 1970 com dois registos imprescindíveis, Red Clay (com o saxofonista Joe Henderson, Hancock, o guitarrista George Benson, o contrabaixista Ron Carter e o baterista Lenny White) e Straight Life (os mesmos, à excepção de White, substituído por Jack DeJohnette), próximos da então quase inexorável influência do quinteto de Miles Davis (e com esse compartilhando Carter e DeJohnette), sem ser todavia epigonal. Logo depois, teve o seu maior sucesso, e obteve o Grammy, com First Light, um disco com um conjunto de cordas, trompas e sopros de madeira, com arranjos de Don Sebasky.
Depois dos flirt com o “jazz-rock” e a “fusão”, tentando seguir os percursos de Hancock e de Shorter, sem alcançar idêntica celebridade, haveria em 1977 a reunião, VSOP, ele, Shorter, Hancock, Carter e Tony Williams, após o que voltou para caminhos mais tradicionais e exclusivamente acústicos
Hubbard tanto tocou (a sua impressionante discografia deve ter umas centenas de títulos) que feriu o lábio superior. “Don’t overblow” dizia depois disso aos mais jovens.
Fazendo-se justiça aos títulos da sua própria discografia, e registando-se que em rigor nunca tenha sido um “vanguardista”, é ainda assim impressionante que tenha sido o músico que participou nos três fundamentais Free Jazz, Out to Lunch e Ascension.
Erich Gruenberg, Gervaise de Peyer, William Pleeth, Michel Béroff
EMI
Já agora, cabe assinalar o reaparecimento no mercado de umas das grandes interpretações do Quator pour la fin du Temps. Com efeito, na 20ª série de (re)edições dos “Great Recordings of the Century” da Emi, marcando aliás o 10º aniversário desse selo de prestígio, surge uma interpretação do Quator gravada em 1968, e “liderada” pelo então jovem Michel Béroff, à época recém-laureado do Concurso Messiaen, com um curioso e talvez algo extravagante “trio” de músicos britânicos, Erich Gruenberg, William Pleeth e Gervaise de Peyer – este o mais célebre dos clarinetistas incluídas na discografia da obra, e todavia talvez destes quatro intérpretes aquele cuja adequação é mais discutível.
Em qualquer caso, aí está nos escaparates, e é sem dúvida uma das três ou quatro grandes interpretações da obra, como haverá ocasião de analisar num sobrevoo dessa discografia. Em complemento, uma obra chave, Chronochromie, numa interpretação dirigida por Antal Dorati, com a Orquestra da BBC – e se bem que haja claramente uma interpretação superior desta obra, a de Boulez com a Orquestra de Cleveland, a aproximação de duas obras tão eminentemente fundadas também nas singularidades de cores, da “chromie”, não deixa de ser interessante.
La Transfiguration, Couleurs de la cite celeste, Oiseaux exotiques, Visions de l’Amen, Des Canyons aux étoiles…
Reinbert de Leeuw, Yvonne Loriod, Pierre Boulez…
6 cds Montaigne Naïve, dist. Andante
O centenário de Messiaen deu origem à publicação de algumas volumosas edições: a “Complete Edition” da Deutsche Grammophon (32 cds), a “Anniversary Box” da Emi (14 cds) ou duas caixas da Decca, “Orchestral and Chamber Works and Song Cycles” (6 cds) e “Piano and Organ Music” (7 cds). Nenhuma dessas se encontra no mercado português. Há ainda, inevitavelmente, uma edição da recordista das caixas super-económicas, a Brilliant Classics, muito parcial, com as integrais das obras de órgão e piano mais as melodias (17 cds) e uma caixa de “Orchestral Works” da Hanssler (8 cds), que essa ainda deve aparecer no mercado nacional. Mas diga-se, de resto, que a discografia de Messiaen, numerosa e com escolhas de qualidade para todas as suas obras de relevo, não o justifica como compositor a adquirir “de atacado”.
No mercado português encontra-se sim uma valiosa caixa de seis cds dos discos Montaigne, ou quatro cds dois dos quais duplo, de grande relevo – e em relação à qual, de qualquer modo, existem os discos separados.
Ausentes estão as duas obras mis célebres, o Quator pour la fin du Temps e a Turangalîla-Symphonie, e isso, que pode parecer uma falta, é indirectamente um valor acrescentado a esta caixa. Com efeito essas duas obras, a Turangalîla sobretudo, têm por si só discografias de relevo (que aliás a seu tempo se comentará), e como tal esta caixa não colide com essas nem com as mais significativas obras para piano, os Vingt regards sur l’Enfant Jésus, ou para órgão, o Livre d’orgue ou o Livre du Saint-Sacrement.
Os discos Montaigne são o repositório de registos de concertos no Théâtre des Camps Elysées em Paris (o local da famosa estreia da Sagração da Primavera) situados na avenida com o nome do filósofo, e dedicam-se à publicação de obras do século XX, e ora também XXI. Messiaen não podia estar ausente.
Quanto ao roteiro é o seguinte: 1) La Transfiguration de Notre Seigneur Jésus-Christ, a obra que a Gulbenkian encomendou a Messiaen, estreada a 7 de Junho de 1969 no Coliseu dos Recreios, pelo Coro e Orquestra da Rádio de Hilversum, direcção de Reinbert de Leeuw disco duplo; 2) Sept haikai, Couleurs de la cité celeste, Un Vitrail et des oiseaux e Oiseaux Exotiques por Yvonnne Loriod e o Ensemble Intercontemporain dirigido por Pierre Boulez; 3) Visions de L’Amen por Maarten Bon e Reinbert de Leeuw, e 4) Des Canyons aux étoiles… pelo Asko Ensemble e Schönberg Ensemble, direcção de De Leeuw, disco duplo.
Embora o conjunto seja bastante apreciável, não deixa de ser desigual, pelo que, se a caixa tem um respeitável valor em si mesma, é curial ter presente que há a possibilidade de obter separadamente os discos.
Aquele que menos se impõe, face à proeminência dos registos dos próprios Messiaen e Loriod e de Martha Argerich e Alexandre Rabinovitch, é o das Visions de l’Amen. Creio também, no tocante a Des Canyons aux étoiles…, que não me canso em sublinhar ser uma das obras maiores do autor, que a prodigiosa sugestão da vastidão dos espaços é mais bem lograda na integração de Myung-Wha Chung (DG) que nesta de De Leeuw. Inversamente penso agora que a interpretação de De Leeuw da Transfiguration se impõe como aquela que põe em relevo os traços mais originais e caracteristicamente “messiaenescos”, mais que as de Dorati e Chung. Enfim, o disco com Yvonne Loriod, a mulher do compositor, e o Ensemble Intercontemporain dirigido por Boulez é certamente uma das grandes peças da discografia do autor, com interpretações antológicas das Couleurs de La Cité Celeste e de Oiseaux exotiques.
Já que no texto anterior evoquei as deslumbrantes Vésperas de Monteverdi que Sigiswald Kuijken dirigiu na Casa da Música em Novembro do ano passado, em que obteve surpreendentes efeitos de espacialização sonora tão só com pequenos movimentos em palco dos cantores e instrumentistas, e também porque tinha dito que ainda faria referência a Quem Chama?, obra de Karin Rehnqvist, “compositora associada” da Casa neste ano de “Focus Nórdico” (obra estreada no meio dos concertos comemorativos dos 100 anos do nascimento de Olivier Messiaen e Elliot Carter, no passado dia 13), vou retomar uma questão concreta das valias da Casa, no ponto das suas ainda não-concretizações.
Quem Chama? requer duas vozes femininas, dois trompetes e dois trombones, e um pequeno conjunto instrumental, fagote, contrafagote, violoncelo, contrabaixo, piano, harpa e percussão. O que é muito interessante, e mesmo insólito no campo da composição contemporânea, é que Rehnqvist se baseou 1) nos chamamentos populares do gado, o outro elemento sendo, 2) a própria acústica do auditório. Assim, enquanto o grupo instrumental está no palco, uma das vozes, com uma trompete de cada lado nos extremos, está sobre o palco, e a outra voz, ladeada do mesmo modo, mas pelos trombones, está no cimo do auditório, por trás dos espectadores. Confesso que não percebi muito bem a relação entre o grupo que chama e o que está em palco, mas esta obra merece ficar assinalada como a primeira concebida especificamente para a acústica da Sala Guilhermina Suggia da Casa da Música.
Dir-se-ia que as formas do “meteorito” de Rem Koolhaas sugerem em si mesmo, de modo particularmente agudo, uma construção no espaço. Sucede que há um facto bizarro no equipamento, tanto mais atendendo ao vultuoso investimento: há alguns problemas de acústica. Com uma orquestra ou um conjunto instrumental mais numeroso os médios tendem a ficar ofuscados e o equilíbrio a ser mitigado – questão de frequências portanto, além de outros pormenores que exigem atenção mas se resolvem (por exemplo a projecção é condicionada pelas cortinas do fundo da sala estarem ou não corridas). Mas acontece também que a Sala tem uma surpreendente acústica para música antiga e barroca e, pese ainda ter a disposição habitual de um auditório, também para a espacialização sonora – ao ouvir Quem Chama?, o que me ocorreu imediatamente é que afinal é acusticamente possível realizar na Sala Guilhermina Suggia obras da policoralidade veneziana, como as de Giovanni Gabrieli.
Antecipando os destaques da programação da Casa da Música para 2009 que em breve farei, digo desde já (e é de tomar nota, que a ocasião vai mesmo ser única e a deslocação justifica-se amplamente) que entre todos se salienta um facto: a estreia em Portugal, finalmente, de Gruppen (1956) de Stockhausen, para três orquestras, uma das mais extraordinárias obras da música da segunda metade do século XX:
Com isto quero também reforçar em concreto aquilo que escrevi em função do que tinha sido anunciado para o projecto da Casa da Música e o seu modelo proclamado, a Cité de la Musique em Paris: para além de todas as valias já consolidadas, é possível e mesmo desejável atendendo às próprias promessas, programar de modo mais integrado e interdisciplinar, nomeadamente em torno de concretas questões musicais, de que a espacialização é um dos exemplos mais salientes.
“Hossana!” – pouco mais de um ano depois das deslumbrantes Vésperas que Sigiswald Kuijken dirigiu na Casa da Música, tivemos de novo oportunidade de ouvir, a encerrar uma temporada de concertos do Instituto Superior Técnico (um exemplo para instituições congéneres), aquela que é uma das mais extraordinárias obras de toda a história da música europeia, e agora em Lisboa e de novo numa Igreja, a Sé, como nessa ocasião absolutamente memorável – e que de facto permanece nas nossas memórias – da célebre realização dirigida por Jordi Savall nos Jerónimos há 20 anos, a 26 de Outubro de 1988, sendo mesmo que dois dos “oficiantes” de então o foram também agora, o tenor Gian Paolo Fagotto e Marco Mencoboni, que então estava ao cravo e agora dirigiu.
“Hossana nas alturas!”, pode mesmo dizer-se, já que, prosseguindo a sua prática dos princípios do “cantar lontano”, técnica de espacialização dos sons usada na música sacra italiana da época de Monteverdi, Mencoboni estudou detalhadamente a acústica e a arquitectura da Sé e não só colocou cantores e instrumentistas também no coro alto como igualmente nas galerias superiores sobre a nave central, o trifório, e inclusive na cúpula
A experiência foi emocionante, mas ainda assim impõem-se questões quer sobre a concepção de Mencoboni, quer sobre algumas desigualdades da realização, algumas mesmo desagradáveis.
Se as Vespro della Beato Vergine são das obras mais extraordinárias da história da história da música europeia são também enigmáticas. Em 1610, depois de muitos anos, nada menos que 27!, sem compor música religiosa, ou pelo menos sem a fazer imprimir, Cláudio Monteverdi publica conjuntamente a Missa in illo Tempore, no “stilo antico”, da polifonia renascentista, e as Vespro, de “stilo concertato”. O objectivo era claro: obter uma posição em Roma, para isso demonstrando a sua completa mestria nas diversas modalidades de escrita. Se ainda assim não oferece dúvidas que a Missa e as Vésperas são duas entidades distintas, resta que no tocante à segunda subsiste uma dúvida: é um ofício ou uma colectânea?
Não só há dois Magnificat, o que nos termos estritos do ofício não tem sentido, como uma das maiores singularidades da “obra”, os “concertos sacros”, Nigra Sum, Pulchra es, Laetatus sum, Duo Seraphim e Audi Coelum e a maravilhosa Sonata sopra Sancta Maria não têm cabimento na liturgia.
Mencoboni resolveu uma única questão, a dos Magnificat, optando apenas pelo primeiro, como se a existência de dois fosse um qualquer acidente de edição. Assim encarou a obra como um ofício, opção que pelos motivos expostos tem tanto de discutível quanto de aceitável – qualquer realização das Vésperas é isso mesmo, uma opção ou um conjunto delas. Já eminentemente mais discutível me pareceu a sua insistência na experiência espiritual em contraponto à teatralidade, como se nesta estética barroca fosse possível separar o sacro e o profano, ou vice-versa – afinal Monteverdi também transmutou o Lamento d’Arianna em Pianto della Madonna.
Dentro da concepção de Mencoboni, e para além dos dados da espacialização, gostaria de salientar um momento, a justeza com se veio juntar a terceira voz, quando no Duo Seraphim se invoca “Pater, Verbum et Spiritus Santum: et hi unum sunt”, a Santíssima Trindade, justificando plenamente, pelo menos no tocante a esse concerto, que, embora não de tema mariano, seja parte do ofício.
Mencoboni colocou o coro de cantochão atrás do altar-mor, neste o órgão e solistas, e no coro alto o propriamente coro vocal (uma reunião de solistas, não um “coro” em sentido usual) e os restantes instrumentos. A disposição tinha resultados de audição desiguais, mas isso era inevitável. O crescendo foi-se criando à medida que os solistas se foram movendo no espaço, sobretudo, e foram momentos de verdadeiro extâse, no eco do Audi coelum, ou na dispersão, no coro alto, trifório, e mesmo na cúpula (!), no esplendoroso Magnificat.
Mas também é preciso dizer que houve notórias desigualdades entre os solistas, alguns bastantes bons, o barítono Marco Scavazza, o contratenor Andrea Arrivabene, um dos tenores que não sei precisar, como que há a notar que dois dos concertos, o Nigra Sum e o Pulchra es, foram fraquíssimos, mesmo desagradáveis.
Foi pois uma realização desigual, discutível nos princípios e nalguns dos meios e ainda assim empolgante.
Foi o maior autor teatral depois de Beckett, do qual aliás era devedor (e ele, que começara sendo actor, voltou mesmo a pisar o palco, o do Royal Court, em 2006, para interpretar Krapp’s Last Tape do outro), e era o maior dramaturgo vivo. Uma situação “pinteriana” era imediatamente reconhecível – e note-se que se muitos grandes autores cinematográficos deram origem a caracterizações, “hitchcockiano”, “godardiano”, “felliniano” ou “antonioniano”, no teatro das últimas décadas isso apenas sucedeu com Beckettt e Pinter justamente – “beckettiano” e “pinteriano”.
Situação arquetípica pinteriana: duas personagens e a possibilidade de um terceiro intuída (The Dumb Waiter/O Serviço, eventualmente a mais “beckettiana” das suas peças) ou sobretudo três personagens e um jogo de duplicidades (O Amante, Traições). Mestre da língua, e dos silêncios também (as famosas “pausas” que pontuam incessantemente os seus textos), Pinter elaborou situações de ameaça (O Encarregado, o citado O Serviço, O Aniversário) e de memória (Old Times, No Man’s Land). Há uma peça de Beckett que se chama tão só Play; em Pinter não são só os intérpretes que são players, são-o as próprias personagens, players de jogos, intrigas e situações que se desdobram.
O grau de reconhecimento das situações “pinterianas”, do arquitexto por assim dizer, e pese ainda a mestria das palavras e dos silêncios, também gerou as muito particulares convenções, por assim dizer a sua específica “carpintaria” teatral. Nesse aspecto, contudo, foi no capítulo dos argumentos cinematográficos que Pinter mais se repetiu. Depois do magistral O Criado de Joseph Losey (dois homens, uma relação de poder e a sua inversão), um esquema semelhante (mas com um homem e uma mulher de diferentes classes) seguiu-se com O Mensageiro do mesmo Losey, o jogo de duplo (a actriz e o actor, a relação deles mesmos e das personagens que interpretam) em A Amante do Tenente Francês de Karel Reisz, até a recente remake de Sleuth, sobre a peça de Anthony Shaffer, ainda uma troca de posições entre dois homens – e pelo meio ficou associado a coisa tão lamentáveis, ainda que muito apesar dele, como The Handmaid’s Tale de Volker Schlöndorff ou The Confort of Strangers de Paul Schrader – sendo que todavia aquele que foi o seu grande projecto cinematográfico, e de que existe o argumento, ficou por concretizar, a adaptação de Em Busca do Tempo Perdido de Proust.
E claro que sobretudo nos últimos anos houve também, e notoriamente, o Pinter activista, panfletário mesmo. Se desde a Guerra do Golfo foram constantes nele as tomadas de posição anti-americanas, também há que reconhecer que muito desse activismo, desde logo na Grã-Bretanha dos anos 80, dos anos Tatcher, foi feito ainda em nome das palavras, contra a erosão da liberdade das palavras, e que múltiplas vezes defendeu, por vezes nas circunstâncias “menos diplomáticas” (na Turquia, por exemplo), os direitos humanos.
Sim, era um mestre das palavras e dos silêncios, das situações tão rigorosamente prescritas nos seus textos, um dramaturgo da estatura de poucos.
Mobilidade, sobreposições, as chamadas “modulações métricas”, tempo e tempos, jogo de grupos instrumentais e/ou de solista/s e grupos instrumentais – eis características da obra de Elliot Carter, da sua personalidade musical.
É importante notar, de resto, que o próprio Carter refere numerosos exemplos precedentes da sua metodologia e princípios composicionais na história da música, os madrigalistas e virginalistas inglesas, os cravistas franceses, as cenas de óperas de Mozart, Verdi ou Mussorgsky em que ocorrem acções paralelas com diferentes tempos e métricas, etc. Compreende-se assim que tenha retomado à sua própria maneira a noção de concerto, “concerto grosso” ou concerto solista, de obras para diferentes grupos instrumentais ou mesmo de episódios musicais separados. Como se compreende que o tempo e as temporalidades, uma concepção não-teleológica do tempo e da obra musical lhe sejam axiais – não há em Carter um princípio para chegar a um fim, o que o distingue não apenas dos princípios da tonalidade funcional como das concepções ontogenéticas do material nas correntes seriais e post-seriais.
Esta recusa do “pensamento teleológico”, com constantes acontecimentos e transformações, nada tem a ver com a concepção recorrente, simbólica e teológica do tempo musical que há em Messiaen - como em T.S. Elliot, ou pelo próximo, há em Messiaen não o "eterno retorno" de Nietzsche mas um retorno incessante, "O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos talvez presentes no temo futuro/ E o tempo futuro contido no temppo passaado". Isso é o que radicalmente diferencia os dois compositores e no entanto também os aproxima enquanto singulares conceptualizadores do Tempo.
Por outro lado, pesem ainda algumas suas inusitadas combinações e/ou oposições instrumentais, Carter não é um colorista e pensadores dos timbres como Messiaen (é de notar por exemplo que escreveu cinco quartetos de cordas e o outro obviamente nenhum, pois não se imagina Messiaen trabalhando com um conglomerado tímbrico tão próximo), e pesem ainda a mobilidade e sobreposições não é, ao contrário do outro, um polirritmista.
Elliot Carter é antes do mais um construtivista, altamente complexo, mas em cuja música todavia se percepciona o movimento, o trajecto, a direcção das linhas musicais – e pois que evoquei tê-los vistos juntos em Varsóvia, em 1985, a ele e a Lutoslawski, ocorreu-me durante estes concertos na Casa da Música pensar que são dois diferentes mestres da direccionalidade, questão que hoje, contra a expansão magmática característica do pensamento ontogenético, é de novo de tanta actualidade.
Expostas estas características, foi representativo o conjunto de quatro obras, Tempo e Tempi, Réflexions, Asko Concerto e Three Occasions for Orchestra, apresentadas nesta celebração do duplo centenário na Casa da Música? Seguramente muitíssimo menos que as três obras apresentadas de Messiaen, sendo também certo que em termos estritos de execução Carter é um autor mais difícil.
Faltou uma obra indiscutivelmente maior, como por exemplo a Sinfonia de Três Orquestras, faltou um grande concerto solista, como, entre vários outros, o Concerto para Piano. Réflexions e Three Occasions for Orchestra são obras relativamente “ocasionais”, ainda que, pelo seu carácter festivo, houvesse algum sentido na presença da última na celebração deste compositor ora centenário. Particularmente representativas são sim Tempo e Tempi e Asko Concerto.
Desde que em 1975 compôs A Mirror on Which to Dwell sobre poemas de Elizabeth Bishop e Three Poems of Robert Frost, que Carter tem escrito algumas obras vocais. De facto, de modo explicito ou mais subterrâneo, a sua obra é marcada por poetas como William Carlos Williams, Hart Crane ou Wallace Stevens – e mais genericamente haveria todo um longo capítulo a escrever sobre influências literárias, de Joyce (o tempo, claro, a “epifania”) a Calvino, este objecto de uma obra, mas um trio instrumental, Com leggereza pensosa – Omaggio a Ítalo Calvino.
Tempo e Tempi é uma obra de grande importância, porque no poema de Eugénio Montale em que a obra colhe o título está inscrito uma concepção paralela à do próprio Carter: “Não há um tempo único: há muitas fitas / que paralelas deslizam”.Infelizmente, a soprano Claire Booth não teve o sabor da língua, do italiano dos versos de Montale, Quasímodo e Ungaretti.
Só no Asko Concerto, com Franck Ollu dirigindo o experimentado Remix, houve um momento à altura da clareza e da concisão da complexidade de Carter, ao nível mais representativo do compositor, com os 16 instrumentistas em solo ou indo participando de diferentes intra-formações, duos, trios ou um quintetos E reconheça-se, de qualquer modo, que as Three Occasions for Orchestra pela ONP dirigida por Stefan Asbury foram brilhantes.
Mesmo que no modo concreto como se realizaram as intencionalidades desta celebração dos 100 anos de Olivier Messiaen e Elliot Carter, o americano estivesse longe do nível de representatividade do outro, a ocasião de ouvir quatro obras suas foi suficientemente importante para ser devido assinalá-la.
Oiseaux Exotiques, Chronochromie, Et expecto ressurrectionem mortuorum
Elliot Carter
Tempo e Tempi, Réflexions, Asko Concerto, Three Occasions for Orchestra
Remix Ensemble, Orquestra Nacional do Porto
Stefan Asbury, Franck Ollu
Casa da Música, 12 e 13 de Dezembro
Olivier Messiaen nasceu a 10 de Dezembro de 1908, Elliot Carter um dia depois. Ao longo do ano, os respectivos centenários têm sido assinalados, compreensivelmente com maior incidência o do compositor francês. Não obsta a que este dia único de intervalo entre o nascimento de um e de outro sugeria também a possibilidade de uma celebração conjunta.
É um outro activo a assinalar à Casa da Música ter organizado um programa de concertos comemorativo deste “duplo centenário”, sendo que no caso o facto é assinalável mesmo no panorama internacional. Celebrar conjuntamente os dois compositores implica também as suas diferenças, muitas, e eventuais aproximações. Esse é um primeiro ponto. Um segundo diz concretamente respeito a estes concertos.
Uma das valias da Casa da Música, como amiúde tenho assinalado, é contar com a Orquestra Nacional do Porto e o Remix Ensemble como agrupamentos residentes. Já no programa “Música e Revolução” deste ano (o ciclo especial da Casa em torno da data do 25 de Abril, embora abordando latamente o conceito de “revolução), a que infelizmente não pude assistir, foram programados concertos tendo o Remix na 1ª parte e a ONP na 2ª, com “troca” de maestros, nesse caso mesmo os directores titulares de uma e outra formação, respectivamente Peter Rundel e Christopher König (em rigor na altura ainda maestro titular indigitado), ou seja Rundel, maestro do Remix, também dirigiu a ONP, e König, maestro da ONP, também dirigiu o Remix. Um mesmo procedimento, mas com maestros convidados, ainda que presenças regulares, foi seguido agora.
No concerto de dia 12, Asbury, que foi o primeiro director do Remix, dirigiu essa formação na 1ª parte com Oiseaux Exotiques de Messiaen e Tempo e Tempi e Réflexions de Carter e na 2ª parte Ollu dirigiu a ONP em Chronochromie, uma das mais importantes obras de Messiaen, finalmente em 1ª audição em Portugal. No concerto de dia 13, Ollu dirigiu o Remix em Asko Concerto de Carter* e na 2ª parte Asbury dirigiu a ONP em Three Occasions for Orchestra de Carter e Et expecto ressurrectionem mortuorum** de Messiaen.
Assim, além da eventual aproximação (e divergência) dos dois compositores, primeiro ponto, implicando também saber se o conjunto das obras de cada um apresentadas era representativo das respectivas personalidades musicais, isto é, a intencionalidade geral da proposta, o segundo ponto colocava questões de intencionalidades particulares no modo como, para realizar a proposta geral, se organizaram os quatro pares, dois compositores, dois concertos, dois maestros e duas formações. É preciso ter todos estes dados em conta para atender às particularidades do discurso crítico sobre este evento, sendo que não tem o menor sentido, num projecto tão carregado de intencionalidades, falar apenas de um ou de outro dos concertos, ou falar deles como eventos separados.
Parece-me indiscutível em primeiro lugar, que Messiaen teve uma presença muito mais representativa, pois que Oiseaux Exotiques, Chronochromie e Et expecto ressurrectionem mortuorum são três obras seguramente maiores, e pelo menos Chronochromie (senão Et expecto… também) uma das mais extraordinárias, e até de toda a música do século XX. Todavia também foi patente uma diferença de afinidades no tocante aos maestros.
Compara-se muitas vezes a Turangalîla-Symponie com a Sagração da Primavera de Stravinsky; o paralelo é no entanto erróneo. Se há obra de Messiaen que na sua extraordinária densidade se pode aproximar da de Stravinsky, essa é sim Chronochromie – e de resto também não lhe faltou o “escândalo” na estreia, que na tradição da narrativa da modernidade inaugurada justamente pela Sagração é parte integrante da “aura” de tão decisivas obras. Deduzir-se-á pelo exposto que esta obra portentosa não é nada fácil para uma orquestra e portanto também para quem dirige. Ollu optou pela segurança possível, mas ouvindo antes Oiseaux Exotiques como no dia seguinte Et expecto… ficou confirmado que Asbury é um maestro de muito maiores afinidades com Messiaen, deixando portanto a sensação que há a lamentar não ter sido ele a dirigir também Chronochromie – serão, compreensivelmente, dados inerentes a uma programação exigente, em que havia de repartir as tarefas, mas o certo é também que a audição se ressentiu.
Extraordinária, apoteose desta dupla jornada, e um dos grandes momentos*** das celebrações de Messiaen em Portugal foi a interpretação de Et expecto ressurrectionem mortuorum. A obra exige meios de uma orquestra mas não é para orquestra, é sim para um alargado conjunto de quarenta instrumentistas de sopros e percussões metálicas. Asbury fez verdadeiramente a obra soar como vinda das profundezas (“Des profondeurs de l’abîme…”, 1º andamento) até à resplandecente glória – simplesmente inolvidável!
* Nessa 1º parte do 2º concerto foi também apresentada, em estreia, Quem chama?, obra da sueca Karin Rehnqvist, que neste ano do “Focus Nórdico” foi na Casa da Música “compositora associada” – obra a que ainda farei uma referência.
** Et expecto… tinha sido estreado em Portugal no passado dia 19 de Março pela Orquestra Metropolitana de Lisboa dirigida por Michael Zilm. Não tendo escrito na altura, ainda retomarei esse concerto, bem como a Turangalîla-Symphonie pela Orquestra de Baden-Baden dirigida por Sylvain Cambreling, a 29 de Janeiro, no Ciclo das Grandes Orquestras da Gulbenkian, numa rememoração deste “ano Messiaen”
*** O programa na Casa da Música incluiu também, além do Quator pour la fin du Temps, antes destes concertos, as Visions de L’Amen para dois pianos e L’Ascension, na versão para órgão, que não ouvi.
Quando do lançamento de Solo, o duplo disco que marcou o regresso de António Pinho Vargas aos territórios improvisacionais jazzísticos após uma longa ausência de 12 anos, reservei a audição directa para mais tarde – ou, se quiserem, por outras palavras, por variadas razões não me apeteceu ir ao concerto de apresentação na sala onde o disco foi gravado, o Pequeno Auditório do CCB.
A oportunidade surgiu agora, cinco meses volvidos. Resultou ela também de uma circunstância infeliz: na programação da Casa da Música estava previsto para o passado dia 14, e integrado no “Focus Nórdico” desde ano de 2008, a apresentação do Esbjörn Svensson Trio, e, como se sabe, Svensson morreu acidentalmente; a data vaga foi assim ocupada por um concerto de Pinho Vargas.
Acontece que não é facto dispiciendo ouvir o pianista na sua cidade de origem, aquela em que começou os seus estudos musicais e a sua vida de músico profissional, justamente de jazz. E não é dispiciendo não propriamente por essa circunstância biográfica em si, mas porque, como era previsível, e se confirmou, António Pinho Vargas colhe no Porto um capital de afectos que é um factor importante no “feed-back” do público a um músico – e o jazz é, por assim dizer, o mais interactivo dos géneros musicais, de interacção entre os membros de um grupo, mas também de interacção entre os músicos, ou um músico a solo, e a resposta do público. E a resposta da sala, a manifestação dos afectos, foi a razão porque fez Pinho Vargas escolher tocar ainda, extra programa , “Cantiga para Amigos”.
No momento em que está prestes a estrear uma sua nova ópera, Outro Fim, já amanhã na Culturgest, e glosando o tópico que ele tem insistido da sua “heteronímia”, da sua dupla existência enquanto pianista-compositor de jazz e compositor erudito contemporâneo, encontra-se ele assim em pleno apogeu dessa heteronímia. E embora “a influência da angústia”, invertendo os termos de Harold Bloom, seja umas das suas características composicionais mais marcantes como já assinalei, não parece que este presente “apogeu da heteronímia” lhe seja particularmente angustiante, a julgar pelo que se lhe ouviu na Casa da Música, seis dias antes da estreia da ópera.
Como também já disse, Pinho Vargas tem uma aguda noção da relação física, sensorial, com a matéria musical, uma noção dos dispositivos pulsionais e do sentir. Essa relação estabelece-se imediatamente no jazz pelo jogo e mãos – e de pés, também, bastante activos. Ouvindo-o agora, não creio que os dois campos sejam afinal tão absolutamente impermeáveis: a sua linha de improvisação em “Quedas d’água (com lágrimas)” derivou para “clusters” no extremo agudo que se diriam provindas da sua aprendizagem junto de Ligeti e da sua admiração por esse compositor – esse facto, mais que uma remota memória da herança do “free jazz” dos seus primórdios musicais (Cecil Taylor, nomeadamente), já que entretanto, e sobretudo, as suas linhas aproximaram-se no “toucher” de um Chick Corea, ou, mais recentemente, na assumpção descomplexada de uma base de melodismo tipo “song”, de um Mehldau.
Curioso foi que tivesse incluído no programa um tema que não consta do disco Solo, “Da Alma”. E justificou-se ele, dizendo ter sido um “lapso”, porque esse tema, como outros já gravados, consta do disco resultante das mesmas sessões mas que só será lançado para o ano. Diria que “lapso” foi essa sua explicação. É óbvio que foi o lançamento do disco que o recolocou “on the road” fazendo concertos a solo, mas esses não têm que ser meros concertos promocionais, estritamente limitados ao repertório constante do disco. Neste momento, afinal, António Pinho Vargas é, mais do que nunca, um músico conscientemente livre, e se essa é uma razão pela qual não deu sinais deste “apogeu da heteronímia” estar a ser um momento de particular “influência da angústia”, também supõe que ele será tanto mais livre quanto compuser os seus concertos de acordo com os temas que o sentir ditar, e não segundo a estrita razão de haver um disco que é de novo a razão imediata, mas não única, para o reencontro das mãos e dos afectos.
No dia do derradeiro concerto de Alfred Brendel, em Viena
A capa desta caixa, aliás as capas, exterior e interior, bem como as fotos do livrete, induzem em erro: são fotos recentes de Alfred Brendel, quando as gravações registadas nestes cinco dvds datam de há 30 anos, isto é de meados dos anos 70.
Devidamente estabelecidos os factos, estes, longe de diminuírem o valor do testemunho, pelo contrário tornam-no mesmo mais precioso – ouso mesmo dizer, pelas razões que explicarei, como um dos intrinsecamente mais valiosos testemunhos de arte pianística publicados em dvd, e que só em dvd podiam ser publicados, malgrado a mediocridade da realização televisiva.
Recordo que Brendel iniciou a sua carreira em 1948. Desde cedo, é certo, dedicou-se a Beethoven e Mozart (e continuo a ter – como tive aliás ocasião de lhe dizer – uma intensa relação afectiva com os seus primeiros registos de concertos do segundo, os discos que na adolescência me fizeram verdadeiramente descobrir Mozart, e no tocante a este compositor ainda, continuo a pensar que o seu disco em duo com outro pianista, hoje pouco lembrado, Walter Klien, é uma peça a considerar na discografia geral do autor), afinal os dois compositores entre outros canónicos, mas é curial também lembrar factos que hoje muitos nos podem espantar, como que a sua 1ª gravação foi do Concerto nº 5 de Prokofiev, que se dedicou aos Quadros de uma Exposição de Mussorgsky ou a Islamey de Balakirev, em suma a um repertório virtuosístico, ainda que o inevitável Liszt fosse já então por ele abordado numa perspectiva mais abrangente e menos puramente de fogos de artificio – para se ter a concreta noção pode-se ouvir a recente colectânea completa das gravações, a preço muito acessível, “Young Brendel”.
Mas nos anos 70, Alfred Brendel “reinventou-se” ou consagrou-se como o Brendel que tanto viríamos a admirar, e a este respeito é pertinente abrir um horizonte mais geral.
De facto não foi assim há tanto tempo, 30 anos, mas hoje é de tal modo uma evidência que tendemos a obliturar a contextualização de um facto da maior importância para a arte pianística e para a arte da interpretação musical: nos anos 70, dois pianistas, Alfred Brendel e Maurizio Pollini operaram por assim dizer um “corte epistemológico”, com interpretações muito mais “pensadas” analiticamente e, quando caso, fundadas em pesquisas musicológicas. A contextualização e identificação deste “corte” de tão vastas consequências suscita aliás duas questões colaterais: 1) dificilmente é apenas coincidência que tenha ocorrido no momento de eclosão da “nova música antiga”, filológica e historicamente fundada, e 2) ambos os pianistas se interessaram também por música mais recente no tempo, sendo mesmo que os dois, Brendel e Pollini, foram quais “apóstolos” do Concerto de Schönberg, Pollini tendo-se também dedicado mesmo à música contemporânea (Stockhausen, Nono) que se Brendel não praticou seguiu curioso nalguns casos, como o dos Estudos de Ligeti.
Haverá sempre quem toque ainda como se esta mutação não tivesse existido mas, directa ou indirectamente, a maioria dos pianistas posteriores, dos actuais pianistas portanto, é devedor deste decisivo “corte epistemológico” operado há 30 anos por Brendel e Pollini – por isso parece uma evidência quando afinal esta radical alteração foi ainda há relativamente pouco tempo.
O repertório em que os dois pianistas eminentemente assinalaram um tal “corte” foi o ciclo beethoveniano e as obras de Schubert.
Claro que no tocante a Schubert havia o exemplo precursor de Arthur Schnabel, desde os anos 30, tinha havido Wilhelm Kempf e sobretudo o maravilhoso Rudolf Serkin, mas é importante frisar que Brendel e Pollini iriam, facto inaudito, colocar as tão contestadas ao longo do tempo três últimas Sonatas de Schubert ao nível das suas homólogas de Beethoven – Brendel afirma aliás essa sua convicção nesta série, no dvd 4, na apresentação da Sonata D. 958, a 1º das três últimas.
Vamos então aos factos: estes cinco dvds recolhem um conjunto de 13 programas feitos para a Rádio de Bremen em associação com uma produtora televisiva, em meados dos anos 70, como se disse, e para além da qualidade das interpretações, por vezes excepcional, como as da Sonata D784, da op. 42 D 845, da op. 53 D 850 “Gastein”, da D. 894, da D. 959 ou dos Impromptus, é uma lição analítica absolutamente magistral
Iimporta aliás notar que no momento porventura mais elucidativa do projecto, a introdução à penúltima Sonata D. 959, Brendel explica com assinalável clarividência as razões da “démarche” : “sempre me preocupei em saber o que distingue uma obra-prima das obrras de um compositor menor”. Como se “racionaliza” essa diferença (e uma tal “racionalização” foi crucial ao tal “corte” por isso mesmo “epistemológico”)? Daí surgem a explicação e os detalhes.
Diria mesmo mais: a disciplina de “análise musical” é muitas vezes árida, mais, o seu uso na música contemporânea tornou-se muitas vezes um exercício de legitimação que quase se diria dispensar o real acto de concretização da obra, de a tornar pública através de uma real interpretação. Ao longo das introduções, mas em particular neste momento no último dvd introduzindo a Sonata D. 959 dir-se-ia que a lição de Brendel é tal modo elucidativa que mesmo os alunos de “análise musical” lhe deviam atender.