A ópera de Cherubini é, como nenhuma outra, discograficamente uma história com uma intérprete única: Maria Callas. Mais: estando a Callas já retirada, o filme sem canto de Piero Paolo Pasolini ainda mais reforçou esta associação, como se apesar de tantos outros papéis de relevo – Tosca. Norma, Lucia, Traviata – fosse cm Medea que ela tivesse plenamente atingido o seu estatuto mitológico. Callas foi a amante despeitada e furiosa, a mãe, a feiticeira, a grande trágica, ou antes, a antiquíssima personagem trágica.
Daí que todos os seus seis registos sejam credores de atenção. Mas o de 1953 com Bernstein é um dos momentos máximos da arte da Callas e a sua extraordinária composição de 1958 em Dallas, e o encontro aí com Jon Vickers e a jovem Tereza Berganza, é outro momento de antologia.
Extractos de um texto sobre a discografia daMedeiano sítio do Serviço de Música da Fundação Gulbenkian
A fama de Maria Callas como intérprete da Traviata ou da Tosca poderá ofuscar que o seu papel de eleição, se atendermos ao número de vezes que o cantou, 92, foi antes do mais o de Norma.
Foi também um dos raros papéis que gravou duas vezes em estúdio, acrescendo um registo radiofónico. Por motivo disso, muito se tem distinguido entre os dois registos de estúdio, o de 1954 e o de 1960, ambos dirigidos por Tullio Serafin. Dir-se-á, não sem razão, que na primeira data Maria Callas estava no auge das suas capacidades vocais, e que na segunda havia já sinais de declínio. Mas então importa também dizer que salvo raríssimos casos nunca foi em estúdio que ela deu o pleno das suas capacidades e que por isso é escamotear os dados reduzi-los à discussão dessas dois únicos registos.
Foi aliás num dos momentos captados em palco, a 7 de Dezembro de 1955, na abertura da temporada do Scala que ocorreu o “milagre”, um momento prodigioso de dramatismo e do génio ímpar da Callas, face a um viril Mario del Monaco muito mais sóbrio que o habitual, uma Giuletta Simionato que dá sentido aos duetos Norma-Adalgisa e ao Oroveso de Nicola Zaccaria, ainda sob a direcção de Tullio Serafin. É por certo um dos grandes momentos da história da ópera registada em disco.
Estilista incomparável, senhora de um domínio técnico ímpar, Joan Sutherland ostentou uma Norma quase glacial (a “Casta Diva”), que no entanto se inflama com a sua portentosa Adalgisa, a incomparável Marilyn Horne, sob a direcção, é claro, do marido de Sutherland, Richard Bonynge (Decca).
Essa gravação data de 1965. Quase 20 anos depois, em 1984, Sutherland e Bonynge, em escrupulosos filólogos, decidiram fazer uma nova gravação com uma Adalgisa soprano, facto de todo coerente com a linha vocal da parte e as características da primeira intérprete, Giulia Grisi. E para isso fizeram apelo à outra importante Norma entretanto estabelecida, Montserrat Caballé.
Pese ainda a extraordinária beleza da sua voz, Caballé não foi bem sucedida na sua gravação de estúdio. Mas em 1974, no Festival de Orange, os seus indescritíveis pianissimi e a incomparável beleza da sua matéria vocal são deslumbrantes.
Extractos de um texto sobre a discografia da Normano sítio do Serviço de Música da Fundação Gulbenkian.
Uma das maiores estrelas do cinema americano, com uma proeminente posição no Box Office, é um homem pouco dado a vedetismo, muitas vezes mantendo-se escondido da ribalta pública
Pouco dado a discursos, responde às questões com o laconismo da maioria das suas personagens. As vezes hesita, repete que não sabe, evita o que possa ser considerado como questão mais pessoal.
Mas John Wilson, papel que interpreta em White Hunter, Black Heart, não é uma personagem qualquer: é um realizador de cinema, directamente inspirado em John Huston, e há questões que não se podem deixar de colocar.
P – Porquê esta obsessão por personagens obcecadas?
Clint Eastwood – Não sei, não tenho a mínima ideia. Penso que as acho interessantes. Concordo com elas nalgumas coisas, noutras não.
P.- Por exemplo?
R. - No caso de White Hunter, Black Heart, concordo em muito com a filosofia do realizador de cinema, acho que o modo como ele se coloca ao lado dos que são tratados "abaixo de cão" é admirável, mas também que ele é muito cruel com as pessoas que o rodeiam. Mas é a maneira de ser dele, é o que o torna uma personagem interessante. O que o determina? A sua inconstância, o seu brilhantismo, a sua força? Não sei. Num filme tem que se pôr tudo isso, tanto quanto possível, e dá-las a ver ao público- eu acho isto, e você? No último plano, o realizador começa o seu filme, grita "action"; o que lhe vai acontecer, para onde vai? Vai transformar-se por causa do incidente trágico que provocou? Não sei, cada um interpretará como quiser.
P. – Mas para si foi essencial que ele fosse um realizador? Ter-se-ia interessado por um homem que constantemente se desafia no seu trabalho, movido pela obsessão de matar um elefante, se fosse outra coisa que não um realizador?
R. - Se a história fosse outra coisa qualquer, e igualmente interessante, podia não ser essencial, mas nesta é.
P. - A certa altura, o argumentista no filme diz que as pessoas não vão ao cinema para ouvirem uma conferência. Não acha que, sendo você um actor/realizador, o discurso de John Wilson sobre o cinema pode ser confundido com uma declaração sua?
R.- Não, é apenas a personagem. É apenas a personagem. Ele fala muito da sua relação com as histórias, da simplicidade na arte, mas é o modo de ser dele.
P. - E não se confunde com o seu?
R. - Bem. Deve haver qualquer coisa em comum que me atraíu.
P. - Por exemplo?
R. - Concordo com o que ele diz sobre a importância da simplicidade na arte.
P. - Precisamente, ele fala muito. Estamos acostumados a vê-lo a si interpretar personagens muito lacónicas. Nunca como esta.
R. Ele explana muito, é uma parte muito importante da sua personalidade, como também era para John Huston.
P. - Voltemos então a Huston / Wilson. Para si, ele é um clássico realizador de Hollywood?
R. - Huston era uma figura internacional; viveu na Irlanda e no México, noutros sítios. Segundo as normas de Hollywood, ele era um bocado rebelde; acho que também sou e esse aspecto é comum. Hoje Hollywood é diferente, toda a produção está internacionalizada, de qualquer modo, não participo muito na vida de Hollywood e talvez também haja aí um paralelo. Estou de acordo com o que Wilson diz no filme quanto à necessidade de não estar sujeito ao contrato de uma companhia.
P.- Mas Huston é um realizador particularmente importante para si?
R. – Bem, cresci vendo filmes de cineastas como Howard Hawks, John Ford, John Huston ou Preston Sturges.
P. - Sente-se herdeiro deles?
R. - Espero que sim.
P. - Qual o seu filme de Huston preferido?
R. – O Tesouro da Serra Madre.
P. - Nunca encontrou Huston e para preparar este filme viu documentárioscom ele. Tem pena de não o ter encontrado?
R. -Tenho pena, mas era capaz de não ter sido bom, era capaz de me ter disperso em pormenores. Assim, pude ver o filme de maneira objectiva. O que interessa é a ideia que se faz da personagem. E só isso que conta, torna-se parre de nós.
P. - Acha que se, como actor, tivesse feito um filme com Huston, se sentiria intimidado?
R. - Bem, isso acontece, às vezes acontece mesmo em filmes meus. Às vezes há actores novos de quem se sente que cresceram a ver os filmes daquele realizador e se sentem intimidados. Isso também me aconteceu quando fiz Breezy, o primeiro filme que realizei em que não entrava como actor. William Holden era o protagonista, um actor que eu tinha visto no cinema desde que era criança, e fiquei impresstonado. Tinha visto tantos filmes com ele que quando ia começar a rodar pensei de repente: não pode ser ele, será mesmo que o vou dirigir?
P. -Dirige-se a si próprio no papel de realizador que todo o tempo parece uma personagem dele próprio. Não foi complicado?
R - Foi, a personagem é muito complicada, há tantos aspectos nele que é preciso compreender.
P.- Portanto, correu o risco.
R. - Há que correr os riscos. Se se começa a pensar neles, não fazemos nada. Wilson diz uma coisa com que concordo: não se pode fazer um filme a pensar como vai reagir o público na sala em relação a isto ou aquilo. Não há que ter medo, há apenas que fazer o primeiro plano, contar a história e esperar que alguém goste dela.
PÚBLICO, 13-05-90
White Hunter, Black Heart é de novo exibido na Cinemateca Portuguesa, na próxima quarta-feira, às 19h30.
"O melhor disco" do ano são afinal dois, ou antes três, dado que o segundo é duplo. São os primeiros volumes de antologia que esse admirável intérprete que é Mathias Goerne dedicará ao "lied" de Schubert, em volumes cada um deles com pianista diferente (excepto os ciclos que serão os três com Christoph Eschenbach), para já com Elisabeth Leonskaja, Helmut Deutsch e Erik Schneider. Absolutamente superlativo.
E os outros por ordem cronológica, com um recital no fim:
Dufay - Supemum est mortalibus bonum - Cantica Symphonia
Heavenly Harmonies - Obras de Tallis e Byrd - Stilo Antico
Harmonia Mundi
Bach - Obras de Juventude - Andreas Staier
Harmonia Mundi
Bach - Partitas 2, 3 & 4 - Murray Perrahia
Sony
Vivaldi - As Quatro Estações - Amandine Beyer e Gli Incogniti
Zig-Zag Territoires
Geminiani - Sonatas para Violoncelo - Bruno Cocset, Luca Pianca & Les Basses Réunies
Alpha
Bethoven - Sinfonias e Aberturas - Anima Eterna, Jos van Immerseel
6 cds Zig-Zag Territoires
Chopin -OPP.33-36, 38- Maurizio Pollini
DG - dist. Universal
Janácek - As Excursões do Senhor Broucek - Jan Vacík, BBC Singers, Orquestra Sinfónica da BBC, Jiri Belohlávek
2 cds DG - distr. Universal
Schoenberg, Sibelius - Concertos de Violino - Hillary Hahn, Orquesta Sinfónica da Rádio Sueca, Esa-Pekka Salonen
DG - dist. Universal
Michael Levinas (n. 1949) - Les Nègres - Solistas, Grand Théatre de Genève, Orquestra da Suissa Romanda, Bernhard Kontarsky
(Sysiphe) - não distribuído em Portugal
Bruno Mantovani (n. 1974) - Le Sette Chiese - Streets - Éclair de Lune - Ensemble Intercontemporain - Susana Mälkki
Measha Brueggergosman - Surprise, obras de Satie, Schoenberg e William Bolcon
DG
A ordem usual das coisas teria sido a de já ter escrito sobre estes e outros discos e proceder agora à escolha. Assim, será o contrário, e os objectos de escolha terão prioridade nas abordagens críticas. As escolhas de dvds surgirão também.
A discografia da Elektra tem uma característica singular: seria de supor, pelas espantosas texturas da partitura de Richard Strauss, que só uma adequada captação sonora e o detalhe possível no trabalho de estúdio fizessem justiça à obra; ora sucede exactamente o contrário, nenhuma das gravações de estúdio se aproxima da tensão da obra, que ao invés pode ser claramente apreciada numa pletora de registos “live”.
È no registo directo do palco que se sente a tensão extrema da obra, e é em cena que melhor se podem ouvir as intérpretes lendárias, Astrid Varnay, Christel Goltz, Inge Borkh e Birgit Nilsson (Elektra), Leonie Rysanek (Chrysotemis) ou Martha Mödl e Regina Resnik (Klytemnestra)..
Em termos de elenco, e de uma concepção majestática, a gravação que sobressai é aquela dirigida por Karl Böhm a 16 de Dezembro de 1965 na Ópera de Viena (Standing Room Only): Birgit Nilsson (Elektra), Leonie Rysanek (Chrysostemis), Regina Resnik (Klitemnestra), Eberhard Wächter (Oreste) e Wolfgang Windgassen (Egisto). Nilsson é uma Elektra marmórea com uma prodigiosa emissão nos agudos, Rysanek, incomparável Chrysotemis no seu ideal de feminilidade, tem porventura aqui o melhor dos seus registos, Resnik é grandiosa e de uma violência perturbada mas que sem nunca perder o porte de rainha.
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Numa outra linha há as concepções mais neuróticas ou mesmo histéricas. Dir-se-ia que nenhuma outra Elektra ecoa tanto as profundezas do inconsciente como a que Fritz Reiner dirigiu no Metropolitan em 1952 (Archipel), com Astrid Varnay.
Mas para nesta linha de concepção da obra são necessárias intérpretes de características muito particulares. Duas deixaram marca duradoura, Christel Goltz e Inge Borkh.
Goltz era a fera, como o testemunha a representação captada a 26 de Agosto de 1955 na ópera da Baviera e dirigida por Karl Böhm (Golden Melodram), mas a “gata selvagem” de que falam as seguidoras, essa foi sobretudo, incomparavelmente, Inge Borkh.
Com ela, a gravação de 1957 no Festival de Salzburgo dirigida por Dimitri Mitropoulos (Orfeo), é um prodígio. È uma direcção fulgurante, cortante, que nos deixa sôfregos de respiração. Borkh, mais que febril, é demencial e determinada,
Enfim cabe referir uma outra grande intérprete, a mais vitalista, e de saúde vocal insolente, Ursula Schröder-Feinen, captada a 17 de Junho de 1977 na Ópera da Baviera ainda sob a direcção de Böhm (BellaVoce)
Extractos de um texto sobre a discografia da Elektra no sítio do Serviço de Música da Fundação Gulbenkian.
Já que a Casa da Música fez a opção – algo contraditória para as normas de uma instituição deste género, mas não vou de novo insistir nesse ponto – de organizar a sua programação musical de acordo com calendário e não com a organização em temporada, iniciam-se pois agora as diversas séries e ciclos.
Uma prova de que esses podem ser cruzados e pensados em conjunto ocorre logo este fim-de-semana, com a apresentação sucessiva de duas obras de um dos máximos compositores contemporâneos, Gyorgy Ligeti (1923-2006) em dois concertos que se apresentam entre si desconexos.
Assim, hoje, às 21h, San Francisco Poliphony será executada num programa de título genérico “Novo Mundo” – este toque, ou tique não sei bem, de os concertos terem título é algo que me escapa, mas no caso este justifica-se plenamente, com um programa composto por uma raridade de Edgar Varèse, Tuning Up, Um Americano em Paris de Gershwin, a citada peça de Ligeti, New York Skyline de Villa-Lobos (pois que o Brasil é o “país tema” do ano) e a Sinfonia nº 9, “Do Novo Mundo” de Dvorak, com o maestro titular, Christopher König, dirigindo a Orquestra Nacional do Porto.
Amanhã, também às 21h, é a vez de começar a série do Remix, introduzindo o compositor residente deste ano, o britânico Jonathan Harvey. Mas com várias obras desse autor, e em concerto dirigido pelo maestro titular do agrupamento, Peter Rundel, será também executada uma das derradeiras obras de Ligeti, o Concerto de Hamburgo, obra destinada a uma formação bastante inusitada, trompa solista, quatro trompas naturais e conjunto.
San Francisco Poliphony (1973-74) estende a concepção polifónica de Ligeti da escala “micro”, que caracterizava as suas obras dos anos 60, a uma escala “macro”, com uma fascinante heterogenia das linhas melódicas combinando-se no entanto na grande forma. Se é ainda assim pertinente falar a propósito dessa obra de “campo harmónico”, no Concerto de Hamburgo (1998-99, 2003) há sim, de modo bastante mais lato, um espectro sonoro, com inusitadas sonoridades, consequência não só do peculiar conjunto como também da gama particular de cada instrumento ou conjunto de instrumentos. Mas uma e outra obras têm uma inconfundível sonoridade “ligetiana”.
A sucessão das duas obras é pois um “evento” de facto, embora não referenciado como tal na programação.
Já agora, um pequeno pormenor de ordem prática: sem necessidade de repetição exaustiva, ganhava-se ainda assim inteligibilidade se na parte final da brochura da programação da Casa da Música o calendário de todos os eventos não fosse tão sumário – é que, por exemplo num caso como este, é necessária alguma atenta observação para não escapar ao potencial interessado que entre um concerto da ONP e um outro do Remix, em dias sucessivos, sucede haver não certamente por acaso duas obras de um dos maiores compositores contemporâneos.
Estranha e madrasta fortuna esta: se na programação das instituições musicais e culturais portuguesas são escassos, para já pelo menos, os eventos respeitantes ao Ano Haendel, dois merecem destaque, acontece é que são ambos em Lisboa, no mesmo dia, e chegam a sobrepor-se!
É no próximo domingo, 11: às 19h, uma das melhores intérpretes actuais de Haendel, mas mesmo das mais notáveis, a contralto Marijana Mijanovic, apresenta-se na Gulbenkian com a excelente Orquestra de Câmara de Basileia; estará esse concerto a terminar e já começa no CCB, às 21h, o de Il Giardino Armonico, que será desnecessário frisar ser uma das mais prestigiadas formações barrocas.
Em rigor, o grupo dirigido por Giovanni Antonini dedica-se ao barroco italiano, mas não há qualquer contradição, porque para além da origem alemã e da consagração inglesa, Haendel foi também, estilisticamente, um compositor “italiano”. Para não falar agora das esplêndidas obras do seu período romano, essa matriz é clara nos Concerti Grossi, segundo o modelo de Corelli. No momento em que é editada uma sua gravação dos Concerti Grossi op. 6 (com data prevista de lançamento em Portugal no próximo dia 19), Il Giardino Armonico toca no CCB quatro dos concertos dessa colectânea, intercalados por dois outros de compositores contemporâneos (e por vezes rivais) de Haendel: o esplêndido Concerto Grosso op. 5, nº 12 “La Follia” de Geminiani (este explicitamente devedor de Corelli) e um concerto para flauta de Sammartini. Um programa de imenso interesse, pois.
Mas se esse concerto justifica as atenções, o programa de Mijanovic deve figurar entre os destaques da temporada da Gulbenkian. Em 2007, a contralto (porque é de facto contralto e não meio-soprano como é anunciada na brochura geral da temporada) publicou um disco, “Affetti barrochi” com árias escritas por Haendel para o mais famoso dos seus intérpretes, o castrato Francesco Bernardi, dito Senesino por ter nascido em Siena, árias de Rodelinda, Radamisto, Siroe, Giulio Cesare e Orlando. Em princípio era pois isso que se anunciava.
Sucede que o programa é ligeiramente diferente, e de algum modo ainda mais fascinante: Mijanovic cantará de facto árias de Orlando, Rodelinda e Giulio Cesare, mas também obras de Vivaldi, árias de Andromeda liberata e Orlando furioso e a magnífica cantata Cessate, omai cesssate. Trata-se de um programa excepcional.
A redescoberta da produção operática de Vivaldi é bem mais recente que a de Haendel – e, aliás, Mijanovic participou em três importantes gravações, Bajazet dirigido por Fábio Biondi, Motezuma com Alan Curtis e Tito Manlio com Ottavio Dantone. O que já não se pode desconhecer é que António Vivaldi foi também um mestre da escrita vocal e operática.
Mas mais: há um ponto importante de frisar, e que se prende com um continuado equívoco em torno da expressão “bel canto”. Em termos estritos é erróneo designar de “bel canto”, como é habitual, as óperas de Bellini ou Donizetti, que são sim melodramas românticos ainda de reminiscências belcantistas. O “bel canto” foi sim o canto ornamentado, surgido no barroco e com derradeira expressão em Rossini. Justamente Haendel e Vivaldi (e no tocante ao segundo também não há razão para sobrarem dúvidas) foram dos maiores mestres, mesmo “os” mestres maiores desse canto ornamentado. Um programa inteligentíssimo como o que Mijanovic propõe (inclusive com uma “personagem” abordada por um e outro compositor, a do Orlando Furioso de Ludovico Ariosto) será pois uma ocasião excepcional de aproximação e confronto entre os dois grandes compositores e grandes mestres da vocalità.
Estranha e madrasta fortuna esta que quase forçosamente obriga a, Haendel por Haendel, optar entre Marijana Mijanovic e Il Giardino Armonico, em Lisboa, a 11 de Janeiro.
Um insólito pensamento ocorreu-me esta noite enquanto assistia no São Carlos à estreia de uma muito medíocre produção – mais outra – do Fausto de Gounod: não teria ainda assim sido preferível que houvessem contratado antes Madame Bianca Castafiore?
A senhora que nas aventuras de Tintim atemorizava com o seu canto – e os sobreagudos – o Capitão Haddock era a caricatura de um estereótipo: o das cantoras de óperas como sopranos ligeiros ou “coloratura”, “sopranos rouxinóis”, numa imagem fixada no século XIX com Jenny Lind e Adelina Patti. E que cantava de modo obsessivo, monomaníaco, a Castafiore? “Ah je ris de me voir si belle en ce miroir”, a “ária das jóias” de Marguerite, do Fausto de Gounod.
A senhora que agora canta, Patrizia Biccirè, também é uma soprano “leggero”. Faz a sua estreia no papel e anda obviamente perdida. Não deve ter tido grande apoio do maestro Enriço Delamboye, apresentado como “director musical da orquestra da Ópera de Colónia” (de que o director era Christoph Dammann, agora para nossa desgraça no São Carlos), o que não quer dizer “director musical da Ópera de Colónia” (atenção a esta nuance) mas sim kapellmeister, e que de facto esteve todo o tempo mais preocupado com a orquestra do que em ser efectivamente maestro-director do espectáculo – e logo por azar, mais outro, na Canção do Rei de Tule da mesma Marguerite, o solo de violino foi um horror de desafinação.
A senhora também não teve com certeza apoio por aí além do encarregado da reposição, já que o encenador Christof Loy terá muito mais que fazer que deslocar-se ao São Carlos. A ironia da história é que Loy, pesem ainda alguns distinções que tem obtido no “meio” (no “meio germânico” entenda-se) andou nas bocas do mundo precisamente porque recusou uma cantora para a reposição de uma encenação sua, de Ariana em Naxos de Strauss em Covent Garden – sim, foi ele que disse que a volumosa Deborah Voigt não se prestava ao figurino que ele fazia questão de manter. Ora, mais a julgar por um texto seu inserido no programa, “A cruz de Gretchen”, do que propriamente pelo que é visível em palco, a dita personagem, Gretchen /Marguerite, será central ao seu entendimento. Como é isso possível com tão inepta intérprete? Talvez então que Bianca Castafiore tivesse um outro brilho – pelo menos, não se deixaria passar tão despercebida.
Café Müller de e com Pina Bausch - Lisboa, Teatro Municipal de São Luiz, 4, 5, 8 e 9 de Maio, "2008, Um Festival Festival Bausch", co-produção com o CCB
Don Carlos, Infante de Espanha de Schiller, encenação de Luís Miguel Cintra, pela Cornucópia - Abril/Maio, Teatro do Bairro Alto
Peer Gynt de Ibsen, encenação de Peter Zadek, pelo Berliner Ensemble - 12 e 13 de Julho no Festival de Almada
Impressing The Czar de William Forsythe, pelo Ballet Real da Flandres - 21 e 22 de Fevereiro no Centro Cultural de Belém
Trisha Brown Dance Company - 29 e 30 de Março, Auditório de Serralves
England, Uma Peça para Galerias de e com Tim Crouch (e Hannah Ringham) - 26 de Feverreiro a 1 de Março, Culturgest
NB - 1) Helás pour moi, não vi No Dice pelos Nature Theatre of Oklahoma no Alkantara.
NB - 2) Este é um sumário de escolhas ds espectáculos e das obras (algumas delas - Pina,Trisha - revistas, mas sempre marcantes), momento de recapitulação e gratidão, mas não é meu propósito limitar-me a listas, e por isso a estes espectáculos voltarei agora que as memórias críticas se organizam em "balanço do ano". Os três espectáculos coreográficos suscitarão mesmo um texto específico sobre as coordenadas das programações de dança que vêm vigorando.
Comecemos o dilúvio de edições discográficas dedicadas aos dois compositores mais celebrados deste ano com a Edição Haendel da Harmonia Mundi. A concepção é atraente e pertinente com duas caixas de árias, uma das óperas, outra de oratórias e ainda uma outra de concertos. O design é imaginativo e prático, as notas dos livretes são mantidas, bem como os textos, exceptuados os libretos de óperas – remetidos para a internet, como vai sendo cada vez mais hábito. E, claro, o preço é económico.
A mais valia decisiva é no entanto que a Harmonia Mundi possuía em catálogo algumas excelentes gravações haendelianas, e uma mesmo, o Giulio Cesare dirigido por René Jacobs, que em 1991 teve um efeito deflagrador, e abriu decisivo caminho à nova consagração das óperas de Haendel.
Duas caixas se impõem de imediato pela coerência: a das óperas, o citado Giulio Cesare, Rinaldo e Flavio (obra menos conhecida, grandíssima interpretação), dirigidas por René Jacobs, mais um bónus, algumas árias cantadas pelo próprio Jacobs, numa caixa de 9 cds, e a dos Concertos, Concerti Grossi op. 3 & op. 6 e Concertos para Órgão op. 4, com a Academy of Ancient Music, formação haendeliana emérita, dirigida do cravo (op. 3) e do órgão (op.4) por Richard Egarr, e pelo concertino Andrew Manze (op.6), numa caixa de 4 cds – e se iremos ao longo do ano fazendo aproximações à hoje riquíssima discografia de Haendel, quer-me parecer que esta caixa dos concertos virá a ter papel cativo nas escolhas, donde se deduz que é a de maior relevo nesta edição da HM.
Jacobs ainda dirige as oratórias, Saul e o inevitável O Messias (4 cds), que essa não se impõe, o que poderá surpreender, mas é razão de um Messias decepcionante.
Finalmente as duas caixas de árias, uma um projecto coerente mas de resultado desequilibrado, outra uma reunião de discos díspares, mas de grande qualidade. A primeira repropõe o projecto das “Arias for…” concebido por Nicholas McGegan, que teve a importância histórica de, a partir de 1987, abrir todo um capítulo, até muito para lá de Haendel, de retomar o perfil de determinado intérprete histórico (digamos que recitais como a homenagem de Cecília Bartoli a Maria Malibran e de Juan Diego Florez a Rubini se vieram inscrever nessa tendência). Acontece que musicalmente se impõem apenas as árias para a Durastanti com a grande Lorraine Hunt, e para Montagnana, com David Thomas, sendo pálido o disco de Lisa Saffer consagrado à Cuzzoni e – preço do pioneirismo, até porque foi justamente o primeiro – é francamente insatisfatório o de Drew Minter com as árias para o célebre castrato Senesino.
Em contrapartida é dispare mas francamente notável nas realizações individuais o volume (de 4 cds, como o anterior) de “Famous Árias”, com recitais de Dorothea Röschman (o disco indispensável para as árias alemãs), Lorraine Hunt, Andreas Scholl (o célebre recital “Ombra Mai Fu”) e Mark Padmore.