Um dos aspectos mais estimulantes do recente panorama musical português é o florescimento de grupos dedicados à interpretação historicamente informada de música antiga e barroca. Destes apenas um, a Orquestra Barroca da Casa da Música, teve uma origem institucional, os outros sendo consequência da iniciativa e interesse autónomos de músicos.
O movimento é, como se sabe, genérico, e talvez mesmo o mais marcante do panorama musical internacional nos últimos 20 ou 30 anos. Num livro que já se tornou uma referência não apenas para a sociologia da música, mas também para a agora justamente designada “sociologia das mediações” e mesmo para as ciências humanas em geral, Antoine Hennion dedicou-lhe largo espaço de análise em La Passion Musicale – Une sociologie de la médiation (Métailié, 1993). Mas o movimento começou a manifestar-se com um considerável atraso em Portugal, tendo vindo a vingar fruto do lastro deixado pelos saudosos Cursos de Mateus, pelo início de cursos específicos em escola de música e academias, por especializações no estrangeiro, ou pelo interesse de músicos que já alguns deles paralelamente aos seus instrumentos tradicionais se começaram também a dedicar aos antecedentes barrocos daqueles.
Um desses grupos foi o Ensemble Barroco do Chiado, com base no qual os cravistas Marcos Magalhães e Marta Araújo constituíram um outro, Os Músicos do Tejo, vocacionado para o reportório de autores portugueses mas também visando contextualizá-los, abordando pois autores e reportório que tenham influenciado esses compositores portugueses. È assim que deram um passo que faltava, pesem ainda algumas esporádicas realizações anteriores: a ópera. E é assim que depois do sucesso da apresentação de La Spinalba de Francisco António de Almeida no Centro Cultural de Belém em Fevereiro de 2008, sucesso que levou mesmo à sua reposição em Janeiro de 2009, abordam agora uma obra arquetípica da commedia musicale, Lo frate ‘nnamorato de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736).
Pergolesi deve a sua reputação antes do mais à tempestade provocada pela apresentação em Paris, em 1752, da sua ópera bufa La serva padrona, originalmente um intermezzo (apresentado entre os actos de uma ópera séria), desencadeando a famosa Querelle des Bouffons, dos partidários da ópera bufa contra os defensores da tradição francesa da tragédie lyrique, de Rousseau contra Rameau. Outra obra sua é célebre, é mesmo hoje a mais célebre das suas obras e uma das mais reputadas de todo o reportório barroco, o Stabat Mater. Acrescente-se a isso a sua muito curta vida e ficam estabelecidas as razões fundamentais da sua nomeada.
Mas como compositor na altura em que florescia a escola napolitana, Pergolesi também compôs óperas sérias, como uma versão do célebre texto de Metastasio L’olimpiade, ou commedie per musica, que tinham estatuto autónomo, diferente do intermezzo, constituindo um espectáculo. A mais célebre é justamente Lo frate ‘nnamorato, pela sua importância histórica e por ser a de maiores ecos modernos, por via da produção dirigida por Riccardo Muti, em 1989 no Scala, de que há registo em disco e em dvd. Abordar esta obra é pois um salto, e um salto ousado, para Os Músicos do Tejo.
Esclareça-se desde já que embora o programa indique apenas “espaço cénico”, não se trata de uma apresentação semi-staged, como hoje tanto se pratica, mas mesmo de uma encenação, só que com um espaço muito simples mas também muito funcional. Luca Aprea, que trabalhou nomeadamente com o mestre maior do teatro da tradição napolitana, Roberto de Simone, logrou uma encenação de grande vivacidade e por vezes de franca comicidade, o que é importante ao gesto de nos apresentar uma obra como Lo frate ‘nnamorato.
Mantendo sempre o interesse, a realização musical é no entanto desigual. Marcos Magalhães mostrou à saciedade as suas aptidões no baixo dos recitativos, mas como maestro falta-lhe um gesto mais preciso e falta à sua direcção uma maior vivacidade; mantém todavia a coesão do conjunto, com destaque para o esplêndido quinteto que conclui o Acto II. As cordas ressentem-se com uma articulação e um fraseado que nitidamente precisariam de ser muito mais trabalhados, enquanto os sopros são aptos, com inevitável destaque para esse músico de excelência que é António Carrilho em flauta de bisel.
A desigualdade é ainda mais notória nos intérpretes dramático-vocais, desde logo porque os homens são muito superiores às mulheres. João Fernandes é português mas é um cantor internacional, por via do seu trabalho sobretudo com Les Arts Florissants e William Christie. No papel de Dom Pietro, o mais cómico, papel de um pedante ridículo, Fernandes é impagável, e é em especial brilhante em “Si stordisce il Villanello”, ária de voz mista, de peito e de cabeça (falsete). Luís Rodrigues (Marcaniello) e Carlos Guilherme (Carlo) são dois intérpretes em plena maturidade, cada vez melhores, sendo que o primeiro tem também um apurado sentido cénico.
Do lado feminino, como disse, o panorama é mais problemático. Falta caracterização aos amantes, Eduarda Melo (Ascanio, um papel travestido) e Inês Madeira (Luggrezia) e o desequilíbrio acentua-se ainda mais nas duas duplas, Nina e Nena e Vanella e Cardella (os nomes dizem da proximidade), com Sara Amorim (Nina) e Sandra Medeiros (Vanella) mais desenvoltas enquanto Joana Seara (Cardella) é baça e Carla Caramujo (Cardella) estridente.
Há um grande lapso, em relação aos padrões já internacionalmente correntes, na apresentação de óperas barrocas em Portugal, e a mais recente, a Agrippina de Haendel no São Carlos foi mesmo um desastre incomensurável. Tanto mais se salienta o gesto de realização agora de Lo frate ‘nnamorato, que apesar dos desequilíbrios apontados, justifica uma viva recomendação.
P.S. - Uma nota para as modelarmente pedagógicos notas ao programa, contextualizando de modo muito pertinente a obra e o projecto da sua concretização.
Sylvie Rocha e Pedro Lacerda, foto de Jorge Gonçalves
ANA
De José Maria Vieira Mendes
Com Sylvie Rocha, Pedro Lacerda, António Simão e Rita Brütt
Encenação de Jorge Silva Melo
Artistas Unidos
Centro Cultural de Belém
José Maria Vieira Mendes revelou-se em 1998, com um notabilíssimo texto a partir de Kafka, Dois Homens. Se continuou e tem continuado a escrever textos a partir de outros autores (Dostoievski, Schnitzler ou o Padre António Vieira), o que mais importa é o seu segundo momento de revelação, com um texto original, T1, em 2003, espécie de manifesto geracional também, já que colocando em cena situações de actualidade, de uma geração jovem aqui, e texto de uma considerável claustrofobia.
É de reter o título T1, tanto mais quanto uma dos mais recentes obras de Vieira Mendes, de 2008, se intitula Onde Vamos Morar. O problema da habitação, ou os problemas na habitação, no choque das personagens encerradas num mesmo espaço, nas casas, afigura-se um dos topos essenciais da sua escrita. Mesmo em Outro Fim, libreto para a ópera – e notável libreto de uma ópera de câmara -, que a partir do texto viria a ser composta por António Pinho Vargas em 2008, havia um minucioso detalhe das divisórias e compartimentos.
Mas disse que T1, qual efectiva matriz, era também, um manifesto geracional, Vieira Mendes viria a escrever mesmo uma trilogia sobre pais e filhos constituída por A Minha Mulher, O Avarento e Onde Vamos Morar. Pais e filhos e casais são outro topos da sua escrita.
Agora há Ana. Há de novo uma delimitação espacial muito preciso, uma sala de estar, uma sala de uma casa, e as mesmas recorrências desse topos: “Vão deitar a casa abaixo” ou “Encontro pessoas, casas habitadas”.Mas há uma mãe e uma filha, Ana e Ana – caso para perguntar se neste tradutor de Brecht se tratará de uma reminiscência das Hanna 1 e Hanna 2 de Os Sete Pecados Capitais de Brech/ Weill. E já que falei dessa outra actividade é de assinalar o eco pinteriano – e Vieira Mendes traduziu Pinter – na personagem que instaura a estranheza, esse visitante Outro Homem, que talvez já tenha habitado naquela casa e tenha sido anterior marido de Ana1.
Mas atente-se bem ao título, Ana – é um nome corrente mas também um palindroma, que pode ser lido de trás para a frente, como que instaurando um vaivém no texto. E há Ana e Ana, que tem o mesmo nome mas são uma e outra, repetição e diferença.
Ana, retomando ainda os topos mais reconhecíveis do autor é a sua peça estruralmente mais original e formalmente abstractizante. Não há linearidade na sucessão de cenas ou quadros – uns, que vêm depois, podem ser cronologicamente anteriores ao precedente. A atenção dos espectadores, os modos de recepção, são assim problematizados e ao mesmo tempo mais abertos de leituras. E como se pode deduzir é um texto de grande complexidade.
Entre a objectivação e a abstracção, o encenador Jorge Silva Melo optou por, tanto quanto possível, deixar o texto fluir. Acontece que a opção não faz jus à singularidade do texto. Há um reconhecível estilo Artistas Unidos, por exemplo na frieza da cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves e das luzes de Pedro Domingos, que aqui se torna quase asséptico. Mas Ana, o texto sobrevive, e na sua particular singularidade é uma confirmação acrescida do estatuto ímpar de José Maria Vieira Mendes na dramaturgia portuguesa contemporânea.
CCB até domingo, Teatro Municipal de Almada de 26 de Novembro a 13 de Dezembro
È provável que para muitos espectadores o interesse maior desta programa da Orquestra Gulbenkian se radicasse na presença como solista de Radu Lupu – os mais atentos teriam mesmo presente o ineditismo de o ouvir num reportório inesperado, com o Concerto nº 3 de Bartók. Sem prejuízo desse ponto importante dever-se-ia sublinhar outro ponto que aliás engloba o anterior: a coerência do programa.
Lawrence Foster, maestro titular e director musical da Orquestra Gulbenkian, tem entre outras uma qualidade: engendra por vezes programas imaginativos e coerentes que se afastam da rotina. Foi o caso de modo destacado deste que reunia obras só de autores húngaros com a particularidade de ter dois solistas romenos e um maestro americano de ascendência romena (e aliás pode presumir-se que essa proximidade é uma das razões da parceria privilegiada Lupu – Foster), que aliás é o mais reputado intérprete do mais notório compositor romeno, George Enescu.. Como que estabelecendo a passagem o programa abria com o Concerto Romeno do húngaro Ligeti, autor aliás nascido na Transilvânia romena onde há uma minoria húngara; já agora acrescente-se que as Danças de Galanta de Kodály aludem a uma localidade situada na Eslováquia, onde também existe uma minoria húngara.
As “escolas nacionais” floresceram na segunda metade do século XIX como afirmação de particularismos face à hegemonia do romantismo austro-alemão, embora colhessem no húmus desse romantismo, pelo menos na sua afirmação inicial, a ideia de inscrição na “comunidade”. Se formalmente algumas dessas escolas ou compositores permaneceram todavia do ponto de vista formal dependentes do centro austro-alemão, como no caso dos checos Smetana e Dvorák, já a escola russa teria a prazo fundas consequências na música europeia, com a singularidade genial de Mussorgski, que influenciaria Debussy, e sobretudo, numa geração seguinte, com Igor Stravinsky, ícone do modernismo com A Sagração da Primavera – Cenas da Rússia Pagã. No século XX, a afirmação nacional seria mais funda do ponto de vista estrutural, com o checo Janácek e o surgimento húngaro (anteriormente o carácter “nacional” do húngaro Ferenc Liszt era de facto de origem cigana) com Kodály e Bartók, com as suas recolhas de música popular que se tornariam num paradigma (por exemplo para Fernando Lopes-Graça em Portugal), sendo que o génio do segundo, marcado por esses fundamentos populares, se evidenciaria como um dos mais salientes do século XX, de funda influência pelo seu uso de modos, pelos aspectos rítmicos e timbrícos e pelas suas atmosferas. Já cortando com esta fundamentação nacional, na segunda metade do século XX surgiriam outros dois autores do maior relevo, György Ligeti e o ainda vivo György Kurtág.
Foi no entanto na condição já de refugiado no Ocidente depois do esmagamento da sublevação de 1956, e inicialmente nas sequelas da vanguarda de Darmstad – cuja rigidez e dogmatismo dos princípios todavia ultrapassaria – que Ligeti se impôs, desde Apparitions (1959) e Atmosphères (1961), tendo renegado as obras mais caracteristicamente “nacionais” da sua produção anterior, na Hungria. Só depois do fim das ditaduras comunistas, em 1989, é que Ligeti voltaria ao seu país de origem, tendo mesmo vindo a reintegrar no seu catálogo as obras do seu “período húngaro”, caso do Concerto Romeno de 1951, o qual, diga-se, é a menos interessante dessas obras “reintegradas no catálogo”, sem as qualidades por assim dizer já proto-ligetianas (“ligetiano” aqui no sentido em que se afirmou internacionalmente) de Música Ricercata ou do Quarteto de Cordas nº 1, “Metamorfoses Nocturnas”.
A leitura de Foster do Concerto Romeno foi festiva e precisa, com destaque particular com o ataque do Allegro Vivace. Se as cordas foram pouco idiomáticas e sobretudo, num paradoxo, nas passagens de violino solo a cargo da concertino romena Mihaela Costea, houve algumas excelentes passagens dos sopros, flauta, oboé, clarinete, trompa e trompetes.
Escrito no difícil exílio americano, o derradeiro Concerto para Piano nº 3 de Bartók é como que um anti-climax. É de todos os três concertos o menos percutivo e nesse sentido o mais adequado às características do pianismo de Radu Lupu. Todavia atenção: é o “menos percutivo” mas não deixa de ser também percutivo. E à excepção dos finais dos segundos e terceiro andamentos essa característica foi muito, demasiado atenuada, pela ipianista, magistral de controle das sonoridades como sempre, mas numa interpretação retida, dir-se-ia que pudica. Essa concepção conjugou-se com a direcção de Foster no segundo andamento Adágio religioso (Bartók é um mestre das caracterização “nocturnas” e “religiosas”), aí sim pertinente, enquanto na introdução do primeiro andamento faltou o carácter “misterioso”. Globalmente esta interpretação Concerto para Piano nº 3 foi interessante mas pouco convincente.
Na Rapsódia nº1, Mihaela Costea trocou a estante de concertino pela de solista com direito próprio. Foi uma leitura virtuosística, como a partitura solicita, todavia sem o virtuosismo exibicionista da tendência de Paganini a Sarasate que a violinista cultiva, mas também pouco agreste. O ponto alto do concerto foram todavia as duas obras de Kodály, mesmo que as Danças de Galanta tenham sido um pouco opaco. Foster puxou pela virtuosidade do conjunto orquestral, de novo com notáveis intervenções solistas do clarinete e da trompa nas Danças de Galanta, e do saxofone na Suite “Háry Janos”, nesta, como na Rapsódia de Bartók com uma participação destacada de um instrumentista convidado, Cyril Dupuy em cimbalão, o instrumento nacional húngaro. Háry Janos foi objecto de uma interpretação tão entusiástica que, pelo menos no concerto de dia 14, o público irrompeu em aplausos ao penúltimo andamento, Intermezzo.
Eis assim que foi um concerto em que se destacava a presença de um pianista da craveira de Radu Lupu, mas em que o protagonista, sob a direcção de Foster, foi afinal a Orquestra Gulbenkian. E um concerto de que irá haver memória pois que foi gravada para posterior edição, justificada pelas características singulares do programa – e é por isso que escrevi abaixo que se Lupu abondonou há anos os estúdios de gravação está todavia a reconverter-se aos registos live.
Uma nota final: há reportório(s) com os quais Lawrence Foster patenteia uma tal afinidade que só se pode lamentar que, na sua habitual prática de apresentação de uma ópera em versão de concerto em cada temporada (e na anterior foi mesmo um ciclo de três óperas), não se tenha ainda programado essa raridade, que ele aliás gravou, o Oedipe de Enescu.
Radu Lupu é um pianista imenso. Possui uma sonoridade de uma amplitude enorme (na minha memória, ou na reconstrução da minha memória, aproxima-se apenas dos incomparáveis Gilels e Arrau), uma paleta assombrosa pela variedade de cores e pelo superlativo domínio das dinâmicas e um saber e um domínio técnico do instrumento magistrais. Tendo todos os requisitos para tal é no entanto verdadeiramente a antítese do virtuose brilhante, antes é um intérprete de assinalável sobriedade, idiossincraticamente mesmo – aliás não é pormenor anedótico, e se conjuga com essas características, que apareça sempre de camisola escura e não de casaca. Ele é verdadeiramente um pianista do gesto interpretativo e singular, rigorosamente pensado mesmo quando opções radicais se afiguram discutíveis face à letra da obra interpretada.
Lupu é um schubertiano exponencial (agora que Brendel se retirou não vejo outro intérprete de Schubert desta grandeza), notável também em Mozart, Beethoven, Schumann e sobretudo Brahms. Mas atenção: este perfil interpretativo é o que decorre dos registos fonográficos, e ainda que seja globalmente pertinente, esse tal primado do gesto singular supõe também o concerto público, estando o pianista há anos retirado dos estúdios de gravação por os achar demasiado secos, sem o calor da sala de concertos (embora, como veremos, Lupu esteja entretanto reconvertido à gravação live), espécie de anti-Glenn Gould, sendo que esse tal perfil interpretativo tem agora um espectro mais largo que o que resulta do retrato discográfico: na Gulbenkian onde, para nosso prazer, vem sendo desde há anos presença recorrente, já o ouvimos tocar Debussy, e tocar admiravelmente, como agora o ouvimos em Janácek, no recital, e em Bartók no sucessivo concerto com orquestra.
Em Nas Brumasa leitura de Radu Lupu foi justamente “brumosa”, próxima da paleta do impressionismo francês, embora com algumas rugusidades – sendo que todavia não senti as curvas melódicas que mesmo nesta obra instrumental são tão características de Janácek. Mas nas Sonatas de Beethoven e Schubert as interpretações de Lupu foram colossais! Importa aliás reconsiderá-las em par, Beethoven/ Schubert, e não como somatório, Beethoven+Schubert, de tal modo Lupu sublinhou a filiação do segundo no primeiro.
Na Appassionata a sua opção no andamento inicial pareceu controversa imediata – Lupu não fez um Allegro assai como prescrito (e sabe-se da obsessão de Beethoven pelo rigor dos tempos) mas sim “allegro ma non troppo” quando não mesmo “andantino”. Acontece contudo que o pianista romeno concebeu e concretizou a construção como um crescendo, indo acumulando as tensões até a um arrebatador Presto final. Ora, a Sonata D. 859, obra de que aliás é um intérprete único (desta sonata em particular), surgiu então como obra na descendência de Beethoven, mas de uma grandiosidade e sensibilidade todavia peculiarmente schubertianas – e é bem sabido que só depois da morte de Beethoven em 1828 Schubert, em vez de permanecer na sombra do outro, verdadeiramente se emancipou com as três últimas grandes sonatas, sem deixar de vir na descendência do outro, e sonatas “grandes” também na duração.
Há nessas sonatas “as divinas extensões” de que Schumann falava a propósito de Schubert, um horizonte de infinito que Lupu interpretou com um domínio magistral das macroformas, mas com um lirismo e um refinamento poético de quem domina também as microformas, os Impromptus ou os lieder. O Allegro inicial, extensíssimo, abrindo esse tal horizonte de infinito, de incessantemente recomeçado, e todavia refinadamente poético, foi esmagador, o melodismo tão caracteristicamente schubertiano do Andantino foi sublime, o Scherzo pleno de contrastes (lá está, a memória das microformas!) e enfim o Rondo foi o momento da resolução das tensões. Em suma foi uma interpretação arrebatadora e magistral a que Lupu acrescentou em extra, e numa escolha em nada ocasional, uma Fantasiestück de Schumann de uma delicadeza e de um “fantasismo” verdadeiramente admiráveis.
Foi um recital que confirmou o estatuto do músico e perante nós, para nós, renovou a grandeza de Radu Lupu, imenso pianista e intérprete.
Desde a sua fundação por Christopher Hogwood em 1973, que a Academy of Ancient Music se tem dedicado à música de Purcell e à de Haendel, autores a que se tem também votado Richard Egarr, que sucedeu a Hogwood como director musical – dedicações particulares e a níveis de excelência que se podem aliás constatar nestasdiscografias.
Essas dedicações e excelência eram motivos amplamente justificativos do interesse pelo programa que a Academy e Egarr, com a soprano Carolyn Samposon, vieram apresentar à Casa da Música e à Gulbenkian: de Purcell três ayres incluindo Music for a While, extractos de The Fairy Queen e de Dido & Aeneas, e de Haendel o Concerto Grossso op. 3 nº 2 e quatro árias, três de ópera, “Desterò dall’empia” de Amadigi di Gaula, “Lassa! Ch’io t’ho perduta” de Atalanta e “Ma quando tornerai” de Alcina, mais outra de oratória, “Let the bright Seraphim” de Samson. Foi pois um programa que, de modo condensado, se apresentava contudo como suficientemente representativo das características de um e outro compositor.
A familiaridade da Academy com este reportório foi da ordem das evidências, tal como a vivacidade da direcção de Egarr, com uma grande energia ritmíca e um sentido notável das cores – é pena que não constasse do programa a composição do agrupamento para ficar devidamente registado o destaque do oboeísta e do trompetista.
O problema foi Carolyn Sampson, intérprete de pouca personalidade vocal e ademais pouco idiomática em italiano, de agudos delicados – o que nalguns momentos até foi um atributo - , médios embaciados e graves pouco encorpados. Eis o caso de uma cantora de todo despossuída do que Roland Barthes designou por grão da voz, esse “qual coisa que é directamente do corpo do cantor”, irredutivelmente singular. Para mais o programa era para ela temerário, com o Lamento de Dido, mais duas árias de furor de feiticeiras, as de Melissa no Amadigi e de Alcina, e um outro lamento, de Atalanta.
Correcção estilística não lhe faltou, designadamente na ornamentação das árias italianas, mas o carácter, os caracteres, foram um débito considerável. Com um excepção, no entanto, e de relevo: a delicadeza inefável, de “The Plaint – Let Me Weep”, momento em que aliás a sequência de extractos de The Fairy Queen foi justamente interrompida por aplausos.
Se a Academy brilhou, as debilidades da cantora tornaram este programa representativo de Purcell e Haendel em algo escolástico, académico.
A colocação em linha agora destes textos sobre Purcell e Haendel prende-se com os derradeiros concertos celebrativos das efemérides.
Hoje às 21h, na Casa da Música, em concerto integrado no Festival À Volta do Barroco e amanhã às 19h na Gulbenkian, apresentam-se intérpretes credenciados (como aliás se pode constatar nas discografias abaixo), a Academy of Ancient Music e Richard Egarr, mais a soprano Carolyn Sampson, num programa com peças instrumentais e vocais de Haendel e Purcell, incluindo deste último três trechos dos mais maravilhosos, “Music for a While”, “The Plaint” de The Fairy Queen e o Lamento de Dido.
Ainda na Casa da Música, no domingo, às 18h, apresenta-se outro reputado agrupamento, a Akademie für Alte Musik Berlin, com obras de Matthew Locke, mentor de Purcell, deste mesmo e de Haendel.
São concertos que justificam uma chamada de atenção
Haendel morreu célebre há 250 anos, e celebrado continuou a ser, historicamente o primeiro compositor de posterioridade ininterrupta, isto é o primeiro de quem as obras nunca deixaram de continuar a ser interpretadas e festejadas. E, no entanto, situação paradoxal, talvez nenhum outro compositor, à excepção de Mahler, “deva” tanto ao registo fonográfico. Contrariando a imagem do autor de uma solitária obra-prima, O Messias, contrariando a ideia de pompa que em Inglaterra se perpetuou em realização massivas com coros que por vezes chegavam às centenas de pessoas, não apenas de O Messias como de Judas Macabeu, Israel no Egipto, Joshua, Saulou Solomon, agora podemos reapreciar Haendel porque num período recente de cerca de 25 anos foram sistematicamente sendo disponibilizadas gravações que fazem com que hoje estejam editadas as suas 38 óperas e 26 oratórias – e, acrescente-se, um dos mais apelativos projectos editoriais em curso, na Glossa, é uma integral das cantatas italianas.
Atente-se aos números, 38 óperas e 26 oratórias. São a demonstração eloquente do género de predilecção do compositor. O alemão Händel desembarcou em Inglaterra em 1710, como compositor de ópera italiana, ópera séria evidentemente, já com a aureola dos sucessos de Rodrigo eAgrippina, e triunfou no ano seguinte com Rinaldo, primeira das seis “óperas mágicas” (Teseo, Amadigi, Orlando, Ariodante e Alcina são as outras), da ópera e da maquinaria e dos encantamentos e prodígios, que constituem a apoteose de toda a estética barroca da ilusão. E prodigioso compositor que num ano, em 1724/25, apresenta de seguida três grandes obras-primas, Giulio Cesare, Tamerlano e Rodelinda.
E compositor que escreveu para algumas das maiores vozes de então, o Senesino, a Cuzzoni, a o Bordoni ou a Durastanti, Mantagnana ou Anna Maria del Prado – donde desde logo se infere que para interpretar Haendel são precisas grandes vozes, grandes intérpretes, é preciso ter a noção clara da vocalidade; e assim também hoje, em tanto graças ao disco,podemos ter a percepção rigorosa de que ele foi um mestre do que é de facto o “bel canto”, o canto ornamentado e virtuosístico na expressão dos “affetti”. Na verdade a oratória, mais concretamente a oratória inglesa (já que no período romano compusera Il trionfo del Tempo e del Disingano e La Resurezione), surgiu a Haendel quase por acaso, com a Esther de 1732, escrita para o domínio privado de um protector, o Duque de Chandos, apenas ganhou relevo depois de apresentações públicas do Saul de 1739, e apenas se consagrou no entendimento do próprio autor com o triunfo do Messias em 1742, sucedendo-se à derradeira das óperas, a Deidama do ano anterior. Há certamente belíssimos “heróis” e “heroínas” em oratórias como Saul, Semele, Hercules, Belshazzar, Theodora ou Jephta, mas, pelos óbvios motivos expostos, é fundamentalmente nas óperas que se encontram os exemplos maiores.
Comecemos pois a discografia por aí, por Dido & Aeneas, obra muitas vezes gravada e em que várias grandes intérpretes se distinguiram. Mas, pesem ainda Tatiana Troyanos, Anne Sophie von Otter, Della Jones, Lorraine Hunt, Susan Graham e outras, houve uma intérprete de excepção na dimensão trágica do papel: Janet Baker, na sua primeira gravação, de 1962, dirigida por Henry Lewis (Decca).. Como concepção global são marcantes duas outras gravações, em tudo opostas, a aproximação à ópera para meninas de Andrew Parrott com Emma Kirkby e a mais terrificante das feiticeiras, Jantina Noorman (Chandos), e o fausto e dramaticidade de Christopher Hogwood com a Academy of Ancient Music e outra protagonista de excepção, Catherine Bott (Oiseau-Lyre).
Mas o teatro musical de Purcell está longe de se resumir à singularidade de Dido & Aeneas.
Henry Purcell (1659-1695) de quem ora celebramos os 350 anos do nascimento, constitui um daqueles casos da história da música a propósito do qual ocorre o intento de Norbert Elias sobre Mozat, “sociologia de um génio”. Génio precoce e de vida breve, 36 anos, e caso único de génio na música britânica entre o maneirismo da “idade de ouro” elisabetiana e jacobita e o século XX. Só esses três factos, a genialidade do designado “Orpheus Britannicus”, a brevidade da vida e o seu estatuto de caso isolado, são suficientes para o reconhecer mesmo entre os mais singulares autores da história da música europeia.
Mas Purcell foi também fruto de um quadro histórico e de circunstâncias várias. Quando nasceu vigorava ainda a “commonwealth” do puritano Cromwell, de um rigor e severidade tais que mantinha fechados os teatros. Mas logo no ano seguinte o pretendente Stuart regressa e é coroado como Carlos II – era a “Restauração”, época de faustos e prazeres. A Chapel Royal é restabelecida e para ela Henry Purcell entra muito jovem como menino do coro. As mortes sucessivas dos mestres de capela Henry Cooke e Pelham Humphrey levaram ao cargo o mentor de Purcell, John Blow. A voz tendo mudado, Purcell permaneceu no entanto ao serviço da capela como copista e organista, em contacto por certo com o compositor mais célebre da altura, Matthew Locke. Quanto este por sua vez morre, em 1677, Purcell torna-se “composer-in-ordinary” dos violinos da capela real, os “Four and Twenty Fiddlers” instituídos por Carlos II à imagem dos “24 Violons du Roy” do seu protector de exílio, Luís XIV. Eis então Henry oficiando em compositor escrevendo “anthems” (hinos religiosos), acolhendo o influxo italiano mas também estabelecendo um laço com a tradição perdida do maneirismo com as “arcaìzantes” e extraordinárias Fantasias for the Viols.
Em breve se dedica também a escrever música para o teatro, a arte mais celebrada da Restauração. A sua reputação estava consagrada quando compõe para a coroação do novo rei, Jaime II, em 1685. O catolicismo deste e a perspectiva de nascimento de um herdeiro estarão na origem da revolução de 1688 que leva ao poder Maria e o seu marido Guilherme de Orange. A Queen Mary virá a ser a grande protectora de Purcell e se o autor se destacará como compositor de Odes estas tanto serão dedicadas à padroeira da música, Santo Cecília, como à Rainha, nos seus aniversários.
Na corte de Luis XIV tinham os Stuarts exilados conhecido o novo género da “tragédie lyrique”, contraponto francês à recusada ópera italiana. Mas por sua vez o género francês não teve acolhimento em terras britânicas. Em vez disso, e na sequência da tradição da “masque”, floresceu um teatro musical, ou antes meio falado e meio musicado, de que Purcell será o mestre esplendoroso. Mas este génio tão peculiar ainda fará uma obra de todo singular, uma ópera mesmo, uma ópera de câmara, Dido & Aeneas, provavelmente para um colégio de meninas, a escola de Josias Priest, que a posteridade consagrará como a sua obra mais celebrada, e se tornará mesmo – paradoxo para com as suas origens num terreno sem ópera – na mais representada de todas as óperas barrocas.
A nomeação agora de Gabriela Canavilhas surgiu como totalmente inesperada, como figura pouco conhecida no meio, excepto na sua área da música, surpresa que se traduziu mesmo em considerações públicas mesquinhas.
Já tive oportunidade de escrever que um ministro da Cultura é um responsável político e não necessariamente alguém com provas dadas como programador cultural. Sem me desdizer agora, devida justiça tem que ser feita ao trabalho excepcional que Canavilhas realizou em 2003-2008 como presidente da direcção da Orquestra Metropolitana de Lisboa, demonstrando uma energia e combatividades que, essas, são condições necessárias a quem nesta situação chega ao ministério. Ela aliás demarcou-se imediatamente da extraordinária e catastrófica frase original do seu antecessor; “é possível fazer mais com menos dinheiro”, dizendo antes que é “impossível fazer mais com menos”.
Estou assim seguro de que Gabriela Canavilhas, sendo ainda “à priori” uma escolha sem peso político, aceitou o desafio com garantias do primeiro-ministro de reforço orçamental. Mas não menos devo dizer que a sua primeira escolha foi desastrosa: Elísio Summavielle, nomeado secretário de Estado, é um burocrata do aparelho cultural do PS
Há razões para uma expectativa ainda que reservada da política cultural de Gabriela Canavilhas, lembrando também que há declarações e escritos que obrigam o governo, o primeiro-ministro e a ministra, sem deixar aliás de fazer notar que, tanto mais no quadro de um governo minoritário, compete também às oposições, a todas as oposições, que em geral tão alheadas têm andado destas matérias, estarem atentas e avaliando o desempenho concreto.