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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Autobiografias/Autofições - II

 

Jean-Pierre Léaud/Antoine Doinel em “Os Quatrocentos Golpes”
 
 
 
Subjectividades e modos de narração
 
 
1 - É recorrente que filmes sejam comentados e classificados como “autobiográficos” ou mesmo “confessionais”. Esse estatuto aparece muitas vezes como “evidente” (no sentido literal de se apresentar como matéria de evidência) mas, na falta de categorização precisa, é também escorregadio ou equívoco.
 
A consolidação de particulares modos de produção de “cinema de autor” arrastou mesmo consigo critérios que podem ser simultaneamente de “validação” e exigência. Em concreto, sucede com frequência, nomeadamente no caso de primeiros filmes, esperar-se, “solicitar-lhes” mesmo, que façam prova de singularidade exibindo as marcas de uma experiência pessoal sustentada na biografia do seu “autor”.
 
Considerar essa marca pessoal, que aos filmes confere uma “marca autoral”, como fundamentada na experiência biográfica, é um equívoco. Mas ainda assim poderemos de facto perguntar se não há casos, eventualmente mesmo uma corrente de afinidades e paralelismos, em que tal sucede – e, assim sendo, como?
 
Sendo a “autobiografia” um conceito literário, também a literatura, ou antes, de modo mais genérico e raso, o campo da produção de livros, demonstra à saciedade que o “critério vivencial”, que se inscreve antes do mais na esfera mediática e sociológica, não é de ordem estética. Mais: os regimes mediáticos vigentes centram-se cada vez mais na produção e apresentação de “factos de vida”, solicitando o voyeurismo e a intensificação sensacionalista. São essas razões suficientes para a prudência na definição de obras, e em concreto de obras cinematográficas, como “autobiográficas”.
 
Assim definida uma precaução genérica, é todavia inegável que, de diversos modos, um cinema enunciado na primeira pessoa vai-se tornando cada vez mais frequente, tal como o registo em material fílmico ou videográfico dos passos de uma vida -  quantas vezes, e com quanto maior frequência, desde o próprio acto de nascimento -, como é também inegável o já longo lastro material de diários e auto-retratos filmados, objecto aliás da secção retrospectiva do Doclisboa do ano passado.
 
A questão existe pois – porque de “questão” teórica e de percepção se trata também. É igualmente uma questão que se prende historicamente com movimentos e percursos cinematográficos.
 
 
 
2 -Desde a nouvelle vague, desde Truffaut e o seu “alter-ego” Antoine Doinel, a experiência autobiográfica foi de facto parte inerente às singularidades de cineastas como Eustache, Garrel e mesmo Pialat.
 
Por outro lado, também a figura do “autor cinematográfico” foi de tal modo reconhecida ou colocada no estatuto de legitimação, que certos autores se “confundiram” com os suas obras, enquanto sujeitos de uma imagem e de uma aura particulares, com implicações em concretos filmes seus Foi o caso sobretudo, embora por vias de todo diferentes, de Fellini e de Godard, que de modo directo ou indirecto se projectaram enquanto autores, eles próprios, em filmes.
 
 
 
 
Fellini em “Entrevista”
 
 
 
 
8 ½ foi a esse título exemplo inaugural, que implicou toda a posterior obra de Fellini, mas em especial Roma,  Amarcord e Entrevista – o primeiro desses três tendo mesmo tido o título de difusão internacional de Roma de Fellini, caso em que o nome está não above the title, mas nele mesmo inscrito No caso de Godard, às figuras de “alter-ego” a partir de Sauve qui peut (la vie), Paul Godard / Jacques Dutronc nesse filme, o realizador Jerzy / Jerzy Radziwilowicz em Passion (figuras eminentemente metonímicas, diferentes das hipérboles metafóricas e demiúrgicas fellinianas), acresceu uma auto-exposição recorrente desde Scénario du film ‘Passion’, até ao explícito  JLG par JLG: Autoportrait de Décembre, este com uma precaução, “autoportrait, pas autobiographie”, que não deixa contudo de ser reveladora da consciência de um campo escorregadio.
Falar em “autobiografia cinematográfica” em sentido estrito coloca outros problemas, que não os da matéria do visível (e eventualmente reconhecível) como “retrato” e “auto-retrato”.
 
 
 
3-Se o conceito de “autobiografia” é de ordem literária, como se pode concretizar em termos cinematográfico, como poderiam ser passíveis de transposição, dois enunciados fundadores como “Ainsi, lecteur, je suis moi-même la matière de ce livre”, como Montaigne apresenta os Ensaios, ou “Vou empreender uma coisa sem exemplo. Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza, e esse homem serei eu”, como Rousseau abre as Confissões?
 
Enunciados como esses (e de que esses foram historicamente paradigmas) estabelecem um protocolo: “A autobiografia, em sentido estrito supõe um compromisso explícito do autor, um ‘pacto’ de veracidade proposto aos leitores”, esclarece Philippe Lejeune, o grande teórico actual do género, cuja obra fundamental se intitula justamente O Pacto Autobiográfico. E sendo esse o protocolo pelo qual alguém se narra, como poderá ele ser susceptível de concretização cinematográfica, como poderia um tal tipo de narrativa ser visível, isto é, ser matéria de “verificação” factual e objectual de uma vida também vista por outros?
Ocorre, dir-se-á, uma questão de linguagem e de referente. Ou, para citar ainda, Philippe Lejeune, analisando Cinema et autobiographie – problèmes de vocabulaire (“Revue Belge du Cinema”, nº 19, “L´Écriture du Je au cinema”) : “O problema principal parece-me ser o do valor de verdade. O cinema autobiográfico parece destinado à ficção. Não posso pedir ao cinema que mostre o que foi o meu passado, a minha infância ou, a minha juventude, não posso senão evocá-las ou reconstituí-las. Esse problema não existe na escrita, porque o significante (a linguagem) não tem qualquer relação com o referente”.
 
Em epígrafe de Roland Barthes por Roland Barthes escreveu o autor: “Tout ceci doit être considéré comme dit par un personnage de roman” - “escreveu” ele e até concretamente “inscreveu”, essa epígrafe sendo à mão e reproduzida por imagem, como que acrescentando um suplemento de “veracidade” ao protocolo, sendo que o mesmo todavia instaura um “Roland Barthes – personagem” não estritamente homólogo com o “Roland Barthes – autor” – como já Stendhal na Vie de Henry Brulard. Assim, mesmo em textos reconhecíveis como “autobiográficos” se entreabre a possibilidade do romanesco e da ficção.
 
Sucedeu ser uma observação de Lejeune em Le pacte autobiographique que foi detonadora de uma outra categoria. Pôs ele a hipótese: “O herói de um romance pode ter o mesmo nome do autor? Nada impede que isso ocorra e poderá ser uma contradição interna de efeitos interessantes, mas de que não há exemplos…”; não interessa agora tanto se tal inexistência de exemplos é improcedente, mas sim que foi na sequência da observação que Serge Doubrovsky, ensaísta e também romancista, escreveu Fils, em que “o herói” se chama…Serge Doubrovsky, a obra sendo apresentada pelo próprio, como “Ficção de acontecimentos e factos estritamente reais, se assim se quiser, autoficção”, é esse, digamos, o seu protocolo,
 
Para lá das circunstâncias concretas, e da coincidência de nomes nesse caso, “autoficção” é um termo que tem cabimento para considerar exemplos de auto-exposição cinematográfica (alguns quase no “estado bruto” de documento, mas ainda assim reelaborados para o filme – Fassbinder no seu episódio de A Alemanha no Outono, Nanni Moretti em Caro Diárioe Abril, outros por via de um “alter-ego”, num jogo tanto mais ambíguo quanto é o próprio autor que o interpreta, como os filmes de João de Deus/João César Monteiro), como obras que acumulam sinais de se sustentarem autobiograficamente na experiência dos autores – Autobiografias/Autoficções pois.