4- Face ficcional da retrospectiva de “Diários filmados e Auto-Retratos”, este ciclo de Autobiografias/Autoficções apresenta quatro realizadores que de modo persistente e recorrente, filme após filme, foram evocando e reconstruindo as memórias da sua vivência pessoal, os britânicos Bill Douglas e Terence Davies, a húngara Marta Mészàros e ainda a belga Chantal Akerman, autora em que aflora também, de modo mais espaçado mas recorrente, a directa enunciação da experiência pessoal – de resto, não será por acaso que o seu foi o único caso, além de Godard no já citado JLG par JLG: Autoportrait de Décembre, de um autor que para a célebre emissão “Cinéastes de notre temps” foi abordado pelo próprio, Chantal Akerman par Chantal Akerman.
Portait d’une jeune fille de la fin des années soixante à Bruxelles foi parte de uma série para a Arte, “Tous les garçons et les filles de leur âge” (e é de lamentar que um tal importante conjunto nunca tenha sido exibido em Portugal), uma “colecção” de telefilmes a partir de um conceito comum, a cada autor cabendo fazer uma crónica da adolescência. Dessa “colecção” o exemplo mais conhecido é Os Juncos Silvestres, o filme explicitamente de inspiração autobiográfica de André Téchiné (um caso mesmo de coming out filmico, evocando a descoberta da sexualidade homo), de resto aquele em que estava previsto de início uma versão televisiva, que tem título próprio, Le Chêne et le rouseau, e uma versão mais longa para cinema – ainda que outros filmes, os de Olivier Assayas e de Cédric Kahn, acabassem por ter também versões mais longas, Eau froide e Trop de bonheur respectivamente.
O quadro é pois Bruxelas, a época,” la fin des années soixante”, é mais concretizada, “Avril 1968”, esse mesmo momento em que, em país vizinho, um editorialista do “Le Monde” constatava que “la France s’ennuie”. È uma coincidência feliz que agora esta apresentação em Portugal ocorra no momento em que o 40º aniversário traz de novo para o debate a “herança de Maio de 68”. Não que Portait d’une jeune fille… seja uma directa evocação, propósito que aliás nunca teria cabimento na obra da cineasta belga. Mas a inscrição da data não é por certo acidental.
Portait d’une jeune fille… é um filme de descoberta, do sexo e do cinema, num quadro de súbita aceleração, mas também surpreendente no modo como joga com as referências de épocas, com “anacronismos” de um relato não linear, passagens de um tempo a referências de outro, qual “corrente de consciência” como tantas vezes são – desse modo, e não lineares – as evocações da própria vida, como as ficcionalizações de vidas semelhantes.
“My Aint Folk” de Bill Douglas e “Madonna and Child” de Terence Davies
5- A “Trilogia de Bill Douglas”, a por assim dizer “dupla trilogia” de Terence Davies (a propriamente designada “Trilogia”, Children, Madonna and Child e Death and Transfiguration constituindo-se como um “tomo um”, com depois Distant Voices/Still Lives e The Long Day Closes), a trilogia dos “Diários” de Marta Mészàros.
Não será propriamente uma mera coincidência estas “trilogias” (de resto só não foi sim possível incluir neste ciclo os filmes de Jacques Nolot, agora, depois de Avant que j’oublie, designados também como “trilogia”, os anteriores sendo L’Arrière pays e La Chatte à deux têtes, caso tanto mais particular de autoficção quanto o próprio Nolot é o protagonista). Para além das muitas diferenças, esta coincidência assinala os casos distintivos em que a evocação pessoal de factores biográficos foi trabalhada de modo prosseguido – como se o “tempo”, a crono/logia do trabalho de memória, não se compadecesse com afloramentos ditados por critérios estandardizados de produção. O “tempo”, os modos do “tempo”, como afinal também na “média metragem” de Akerman.
As estruturas temporais e as consequentes figurações são aliás um importante vector para atender às características de cada um dos projectos. Ou também, no que será uma outra perspectiva, o modo como se inscrevem os directos sinais da experiência biográfico, os modos declaradamente pessoais de inscrição do real.
Há nos filmes do escocês Bill Douglas e do inglês e Terence Davis (ambos católicos, note-se, o que é importante) uma aproximação reconhecível aos quadros do “realismo britânico”.O que fazem é todavia investir pela subjectividade radical da experiência pessoal o pressuposto de “objectividade” desse realismo.
My Childhood, My Aint Folk, My Way Home – não há outro caso assim, como a da trilogia de Bill Douglas, em que um cineasta tenha assim tão claramente enunciado que estava a narrar algo que lhe é específico, o que há de mais irredutivelmente pessoal na sua experiência, a própria vida.
Será caso de dizer que é a trilogia de Douglas, o autor, de Jamie, a personagem, e de Stephen Archibald, que ao longo dos anos lhe foi dando corpo, caso prodigioso de total coerência entre os propósitos da evocação e o modo de figuração. A âncora da evocação é de facto o corpo de Jamie/Stephen Archibald, o qual crescendo vai voltando (“my way home”) ao seu território singular, a infância das memórias – e poucas evocações da infância existem com esta intensidade na arte cinematográfica.
“Assim tocamos sem dúvida no paradoxo mais misterioso de obra cinematográfica (e histórica) de Bill Douglas: partir em busca do tempo perdido como de uma terra rigorosamente desconhecida, repor em cena o seu próprio passado como se ele (e o seu espectador) não soubessem se não o mesmo que a criança que ele era, reencontrar, neste puro presente, , de uma memória vertical e instantânea, sem passado nem futuro, esses ‘blocos de infância’ inassimiláveis – para tomar de Deleuze e Guattari uma expressão que eles retomavam de Kakfa a propósito de Dickens (precisamente dois autores que o adolescente Jamie descobre em My Way Home) – que farão ‘gaguejar” o miúdo escocês no adulto inglês em que de facto Bill Douglas nunca se quis tornar. È uma História que nos permite assumir enfim plenamente, sem jogos de palavras, a reivindicação demasiada vezes leviana, de umcinema menor” – escreveu Patrice Rollet (“La Lumière fossile de l’enfance” em Passages à vide, eclipses, exils du cinéma), aproximação particularmente pertinente a Kakfa, para uma literatura menor de Deleuze e Guattari – e que aliás, sem prejuízo do que é tão particular a Bill Douglas, nos abre as portas de uma elucidação a outros propósitos de base autobiográfica, e desde logo também os de Akerman e Terence Davis, nessa reivindicação de uma “menoridade” que é a da experiência pessoal, como Kafka se obstinou em anotar no Diário os traços da sua singularidade.
Bill Douglas (1934-1991) fez apenas mais um filme, Comrades, esse pelo contrário bem longo de 180 minutos, todavia na mesma convicção que o tempo de duração se prende não com “formatos” estandardizados mas com a matéria narrativa. É uma evocação de um grupo de trabalhadores que formaram um dos primeiros sindicatos rurais e que foram desterrados para a Austrália – e simultaneamente uma evocação do tempo perdido das lanternas mágicas. É um filme da memória comunal, como a Trilogia o é da memória pessoal
Ocorre, de facto, que se possa mesmo considerar uma “dupla trilogia” de Terence Davies, a propriamente designada “Trilogia”, Children, Madonna and Child e Death and Transfiguration, com depois Distant Voices/Still Lives e The Long Day Closes O âmago, o núcleo ficcional, do desejo e da memória, é sempre o mesmo: a infância e adolescência, a família e o pai prepotente, a sexualidade interdita, tanto mais “pecaminosa” quanto o quadro é fortemente marcado pela religião
Não há uma linearidade cronológica, ora se voltando repetidamente à infância e puberdade, ora o autor projectando-se no seu futuro, o estatuto paradoxal do tempo sendo matéria primordial do propósito cinematográfico. É questão de “blocos” também, de blocos e de fragmentos de pontos de vista, um espelho obsessivo, mesmo se um espelho quebrado.
Será então outro aspecto a considerar como estas re-articulações temporais são comuns a Douglas, Davies e Akerman.
“Distant Voices”
6 -Nisso é de todo diferente a trilogia de Marta Mészáros, Diário para os meus filhos, Diário para os meus amores, Diário para o meu pai e a minha mãe, títulos sintomáticos de um desejo de transmissão e testemunho – aos próximos (é aliás também, apesar do seu aparato produtivo, um projecto em “família”, com o filho de Mészáros, Miklos Jancsó Jr., como director de fotografia, e o seu segundo marido, o actor polaco Jan Nowicki, como protagonista) e à generalidade.
Tempo houve em que o cinema húngaro, o mais (relativamente) aberto do “bloco de leste” nos era (relativamente) conhecido, tempo que foi o dos anos 70, após o 25 de Abril.
Para além das circunstâncias de distribuição que se alteraram, esse momento histórico correspondeu também à maior intensidade da “Escola de Budapeste”, enfrentando a história recente da Hungria ou com esse olhar designado “micro-realista”, de que foram notáveis exemplos Nove Meses e Adopção, dois dos filmes de Mészáros estreados em Portugal.
Desse olhar há ainda resquícios nos “Diários”, no que se tecem também em gestos quotidianos, tanto quanto na busca do pai e na narrativa da História da Hungria, do estalinismo e do comunismo real.
Sendo a narrativa de Julie, tão evidentemente, em tantos pormenores, a projecção pessoal de Marta Mészáros, os “Diários” são também a reivindicação de narrar uma História dolorosamente “Maior”.
O seu fundamento autobiográfico aproxima-se das “Memórias”, nisso mesmo também mais sendo mais condicionados pela evidente preocupação da acessibilidade do relato transmitido, respeitando a sequência da cronologia – já que, como se notará, se todas as propostas deste ciclo são também relatos da descoberta do cinema por parte dos seus autores e correspondentes personagens ficcionais, no caso de Mészáros isso corresponde também a uma determinação obstinada de deixar a História impressa na película, para que outros também a conheçam
E não é pequeno propósito narrar, com uma amplitude sem paralelo, a História real da tragédia do comunismo burocrático,