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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Dois concertos "austríacos" - I

“Os Novos Austríacos”
Obras de Olga Neuwirth, G. F. Haas e Bernhard Lang
Klangforum de Viena, dir. Sylvain Cambreling
Gulbenkian, 1 de Dezembro, às 19h
 
 
A Casa da Música, no que tem sido o seu sector de programação mais sustentado e dinâmico, o de música contemporânea, teve agora uma outra iniciativa de relevo, nos passados dias 29 e 30 de Novembro: sucessivamente, o Klangforum Wien e o Remix apresentaram duas mesmas obras, encomendas conjuntas, Tombeau de Marie Stuart de António Chagas Rosa e Remix deGeorg Friederic Haas. O Klangforum completou o programou com Die Sterne des Hunger de Bernhard Lang e o Remix com obras de dois autores de um outro momento vienense, o do princípio do século e entre as duas guerras, Alexander Zemlinsky e Franz Schreker, respectivamente dois dos Maeterlinck Lieder na orquestração de Erwin Stein e a Sinfonia de Câmara.
 
A ideia que de na música contemporânea o conceito de interpretação tende a dissipar-se é um daqueles contrassensos que à força de serem insinuados se tornam estereótipos. Na tradição erudita da música ocidental, uma tradição escrita, a “obra” enquanto tal é ao mesmo “a coisa em si” e um estado virtual, pois que apenas se realiza, e é ouvida, em interpretações concretas.
 
Só o facto de a nesse sentido propriamente chamada “música clássica” se ter tornado numa espécie de “museu” de obras do passado, e com repetições sistemáticas de repertório, tendo-se as diferenças de interpretação tornado no factor distintivo, inclusive nos discursos críticos, só esse facto, de um alheamento do presente, poderá explicar – ainda que não justificar – a subestimação de que as concretas realizações e interpretações são não menos importante na música contemporânea. Mais: o impacto da descoberta de uma obra nova depende sobremaneira da realização concreta ouvida.
 
Por isso a iniciativa desses dois concertos sucessivos e necessariamente contrastantes terá sido por certo tão interessante. E escrevo “terá”, já que lamento não poder ter estado presente (embora não deva deixar de assinalar o relevo da proposta), e tanto mais quanto no concerto do Remix havia também as obras de Zemlinsky e de um Schreker tão raramente em Portugal, o país onde ele se tentou refugiar. Assim, ouvi o Klangforum depois na Gulbenkian, num concerto designado “Os Novos Austríacos”, este com o “ganho” de incluir uma obra de uma autora destacada, Olga Neuwirth, Spazio Elastico.
 
Eis que nesse sábado, 1 de Dezembro, sucedeu uma coincidência espantosa: um outro concerto de motivo “austríaco”, “Um Concerto para Thomas Bernhard” da Orquestra Metropolitana de Lisboa, encerrando no CCB o ciclo dedicado àquele escritor, de minha muito particular predilecção – uma outra proposta fora do comum, tanto mais interessante quanto a música é importante na obra de Bernhard, e que incluía a 1ª encomenda de uma encomenda a António Pinho Vargas, Um Discurso de Thomas Bernhard.
 
Só por estas circunstâncias excepcionais, pelo relevo das duas obras concretamente ouvidas e pela impossibilidade de permanecer para a de Lang (compositor sobre o qual terei, de qualquer modo, ocasião de falar em breve) pois havia o outro concerto no CCB às 21h, e esse era circunstância irrepetível, só por isso me permito esta crítica apenas referente a Spazio Elastico de Neuwirth e Remix de Haas.
 
Em 2002 houve uma circunstância insólita num concerto do Quarteto Hagen nesta mesma Gulbenkian: no programa estava anunciado o Quarteto nº2 de Pavel Haas, compositor checo, um dos que tragicamente viria a morrer em Auschwitz, mas a obra que ouvimos era certamente outra – e era o Quarteto nº2 sim, mas de Haas, Georg Friedrich (como Haendel). Agora devidamente identificado, voltou-se então a ouvir este Haas na Gulbenkian.
 
Remix é de um fôlego admirável. E uma obra surpreendente, e se calhar tanto mais quanto os diversos elementos que a compõem não são em si mesmo, nenhum deles, em nada surpreendentes. Diz Haas: “Em Remix eu não queria experimentar nada de novo. Queria usar apenas os elementos já testados, com os quais tinha obtido alguma experiência, e colocá-los numa relação diferente” (e enumera esses elementos com a referência às obras em que eles estavam “já testados”). É em particular a sequência livre dos diferentes elementos, a “termodinâmica” do processo e a espantosa densidade do agregado que impressionam. E é ao mesmo tempo uma obra cintilante – como o sublinhou a direcção de Sylvain Cambreling, como de resto se compreende do perfil interpretativo do maestro.
 
Que num concerto de título “Os Novos Austríacos” houvesse uma obra de Olga Newirth era expectável – a ausência é que podia ser surpreendente. Mas diga-se que a escolha de Spazio Elastico foi especialmente interessante, na função acrescida da marcada diferença de características e eludicação recíproca dessa obra e de Remix: enquanto esta é uma obra de “processo”, do princípio ao fim, a primeira, como é distintivo de Neuwirth (outra autora de quem muito em breve aqui se voltará a falar), é marcadamente brutal nos seus contrastes de episódios, movimentos múltiplos e sonoridades inabituais, na escrita de concerto, entenda-se – por exemplo, nesta obra, a presença de dois instrumentos eléctricos, guitarra e piano.
 
Remix de Georg Friedrich Haas é uma obra a recordar e certamente a reencontrar – e tendo neste concerto sido ouvida na integração do Klangforum dirigido por Sylvain Cambreling, é também doravante uma peça emblemática no repertório do Remix da Casa da Música.