Idomeneo e a Europa remixed - II
Mozart
Idomeneo
Ian Bostridge, Jurgyta Adamonyte, Kate Royal, Emma Bell, Benjamin Hulett
Europa Galante, Fabio Biondi
Gulbenkian, 12 de Maio
Há uns anos, em Outubro de 2003, assistia eu a um concerto no Théâtre des Champs-Elysées em Paris, com Fabio Biondi dirigindo a oratória La Santissima Trinitá de Alessandro Scarlatti, e, perante as disparidades no conjunto interpretativo, surgiu-me a clara noção de era um “Virgin cast”, isto é, um elenco reunido por imperatives daquele catálogo discográfico do grupo EMI: Fabio Biondi dirigia, com o seu agrupamento Europa Galante, um conjunto de solistas com Vivica Geneuaux, Véronique Gens, Roberta Invernizzi e Paul Agnew, entre os quais eram evidentes as tais disparidades interpretativas. De facto o concerto antecedia a gravação discográfica, publicada meses depois.
Se a expansão da ópera no século XVIII contribuíu, e com tanta importância, para a constituição do conjunto cultural europeu, isso ocorreu também com um sistema de produção. É curial relembrar o facto porque hoje há discursos contra o “mercantilismo” e a indústria discográfica em concreto que têm também uma fundamentação ideológica perniciosa, como se anteriormente os concertos e espectáculos musicais tivessem um carácter “puro”, hoje “degenerado” por tal “mercantilismo”. Feita a prevenção, não menos há de facto a reconhecer que, como no tal exemplo da oratária de Scarlatti pai dirigida por Biondi, se tornam recorrentes certas propostas “de prestígio” sustentadas por conexões nos interesses discográficos. E foi isso mesmo que ontem nos foi dado ouvir na Gulnenkian.
Bostridge sendo o mais recente intérprete discográfico do papel titular, numa gravação EMI dirigida por Charles Mackerras, é duvidoso que a digressão em que o concerto se incluíu seja já prólogo para novo registo, mas em todo o caso é inegável que o conjunto reunido é característicamente EMI, Bostridge sendo um dos valores da marca, Biondi e a Europa Galante sendo outro, do catálogo subsidiário Virgin. A questão é que não só que esse conjunto foi desconexo, como, com a parcial excepção de Kate Royal (Ilia), a quem, ainda assim, os tempi de Biondi retiram respiração, todos os envolvidos estiveram a leste das características próprias da obra-prima mozartiana.
O título do agrupamento de Biondi é colhido no da “opéra-ballet” de Campra, que sucede ter sido também o compositor do Idomenée original; todavia, como bem sabemos, o campo próprio desse agrupamento é sim o barroco italiano. Desde a abertura foram audíveis descoordenações, as quais, nomeadamente descoordenações rítmicas, foram recorrentes ao longo do concerto; mas o mais grave foi ainda a falta de carácter dos “recitatives acompanhados” tão importantes na obra e das particularidades solistas instrumentais na configuração do “carácter” de árias e situações dramáticas de personagens, por exemplo, do quarteto de sopros no “Se il padre perdei” de Ilia, esse momento supremo que prefigura A Flauta Mágica e o Così Fan Tutte, e os tais tempi “speedados”.
Em abstracto, poderia esperar-se que ao menos Biondi trabalhasse com Bostridge o idioma, mas qual quê! É hoje o segundo o proeminente representante de uma linhagem de tenores líricos ingleses, mas ao contrário de um Richard Lewis – o intérprete maior de Idomeneo – ou mesmo de um Philipe Landrige (discografia crítica aqui), não só o seu italiano é de todo aproximativo, branco nas vogais e com algumas consoantes carregadas, como a interpretação é de uma insuportável teatralidade afectada. Com uma Emma Bell que “carregou” Elletra dos trejeitos de uma “witche”, com a superficialidade, apesar de um inegável potencial, de Jurgyta Adamonte no papel de Idamante, o mais notório foi a incapacidade do elenco em de facto “sentir” – e assim se passou ao lado da sensibilidade trágica da ópera. Mas ainda o pior foi um tal de Opera Seria Chorus, que é óbvio ter sido constituído "ad hoc", indignos mesmo os "naipes" masculinos em "Pietá! Numi, Pietá", como roufenhos os dois solistas que cantaram as partes de Sumo Sacerdote e de Voz dos deuses. Misturas como esta ítalo-inglesa, tão marcadas pelos imperativos de produção, são chamadas de "euro pudding" no cinema e nos audiovisuais. No caso foi uma "Europa (mal) remixed" para uma obra-prima do espírito europeu.
Em Maio de 1990, John Eliot Gardiner, no início do seu ciclo mozartiano, dirigiu no São Carlos em versões de concerto (ou “semi-staged”) as duas grandes “operas sérias” de Mozart, Idomeneo e La Clemenza de Tito. Dezoito anos depois houve nova conjunção, com a Clemenza apresentada em Fevereiro no São Carlos (que ainda relembrarei um pouco) e agora este Idomeneo, afinal uma e outra atabalhoadas. É azar…
Nota – A edição apresentada foi a da estreia com a inclusão contudo da ária de Elletra “D’Oreste, d’Aiace”. Porém no programa estava impresso o libreto completo, incluíndo os outros números cortados quando da estreia. Também houve caso de descoordenação.