Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

Pina vista por Fernando

 

 

 

 

 

 

Há uma forte tendência portuguesa, e sobretudo lisboeta, a reagir a qualquer imagem de "nós" devolvida pelo exterior. Como escrevia Eduardo Prado Coelho na sua crónica a propósito de Masurca Fogo, "algum público sentiu-se visado no seu estatuto de sublime alfacinha, porque havia homens marialvas, pedaços de fruta pelo chão, a estupidez televisiva, tudo coisas que de um modo ou de outro já aparecem noutros espectáculos de Pina Bausch, mas que ganhariam uma conotação negativamente portuguesa". No desejo (e felizmente que ele existe) de cosmopolitismo e na recusa do very typical, há por vezes tendência a negar as marcas de uma diferença.
 
 
 
Mas há aqui um outro equívoco: Pina Bausch não faz "retratos" de cidade. Com inconfundível génio, ela inspira-se no seu sentir de um lugar, torna-o numa coisa mental que transfigura em transbordante energia dos corpos.
 
"Quando é que saberemos encontrar no olhar dos outros o que há de puro e expansivo no nosso olhar?", perguntava Prado Coelho. Retirando o "quando", é caso para dizer que houve alguém que soube: Fernando Lopes ao realizar Lissabon, Wuppertal, Lisboa, um documentário que acompanha o trabalho de criação de Masurca Fogo desde o workshop inicial em Lisboa até à estreia em Wuppertal.
 
Coisa curiosa: Fernando Lopes é o cineasta que melhor sabe filmar Lisboa; e, no entanto, compreendendo o que no trabalho de Pina Bausch há de coisa mental e gesto físico, concentrou-se completamente nos interiores, no trabalho concreto (com a única excepção, o único plano que me suscita reserva no filme, de uma tertúlia taurina). Claro que os bailarinos estão presentes, mas não como, por exemplo, em Un jour Pina a demandé de Chantal Akerman. Eles não explicitam o trabalho com ela, que domina calma e soberana, maga, deusa, feiticeira - e é óbvio que Lopes se deixou enfeitiçar.
 
E, no entanto, é interessante notar que o olhar dele está lá. Desde Belarmino que há na sua obra uma musicalidade que em momentos de Nós por cá Todos Bem e Crónica dos Bons Malandros aponta explicitamente num sentido coreográfico. O domínio da montagem, magistralmente patente em Uma Abelha na Chuva,revela-se de novo em Lissabon, Wuppertal, Lisboa - e que incrível terá sido montar num espaço de tempo curtíssimo 45 minutos de muitas horas de registo.
 
Se calhar é mesmo o seu filme mais belo desde Uma Abelha na Chuva. Pelo menos foi o que mais me tocou, talvez porque ele tenha sido tocado pela graça de Pina Bausch. E como Masurca Fogo é uma obra esfuziante e eufórica, assim o filme nos deixa felizes, ao poder, pela sua visão, compartilhar da experiência transfiguradora de uma arte sublime.
 
 
 
“Público” 16-05-98
 
Lissabon, Wuppertal; Lisboa foi agora de novo editado em dvd pela Midas, com depoimentos de Maria João Seixas e Augusto M. Seabra