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Letra de Forma

"A crítica deve ser parcial, política e apaixonada." Baudelaire

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Uma Tosca berrante - II

Foto de Alfredo Rocha
 
Ocorria pois que a Tosca fosse Elisabete Matos, cantora com características que serão tanto mais salientes para o papel quanto lhe ocorre ter já ela própria uma pose de diva. Mas mais: este é um papel para vedetas temperamentais como ela, quais Anna Magnani cantoras – e em 1946, a Magnani foi de resto a vedeta de Avanti a lui tremava tutta Roma, filme que era uma Tosca-anti-fascista (e não operática, mas com Titto Gobbi como herói), feito em jeito de se redimir por uns dos realizadores mais destacados do fascismo, o de Scipione l’Africano, Carmine Gallone.
 
É por demais absurdo protestar por princípio contra o “vedetismo” em ópera – afinal, não só foi neste género que historicamente se constituiu o star system, com os castrati e prima-donne, como ele supõe o artifício exacerbado de criaturas cantantes, expoentes de uma convenção artificiosa. E, na prática das concretas produções, é evidente que um dos pressupostos de base das escolhas artísticas é o de programar também em função dos atributos de peculiares específicos intérpretes.
 
As capacidades de Elisabete Matos, e o estatuto de notoriedade que atingiu, mais que justificam que houvesse enfim no São Carlos uma produção gizada em seu torno, que não apenas os Amor Brujo e Cavalleria Rusticana que interpretou nas últimas temporadas – e se se relembrar que em 2003 foi cancelado um Navio Fantasma em que ela devia participar, mais se compreende e justifica a opção.
 
Todavia, se tem as capacidades vocais e temperamentais, também lhe falta, pelo menos por ora, o canto appassionato e o slancio que o papel exige – e quanto a isso o “Vissi d’arte”, momento culminante da prima-donna, aliás redobrado nesta produção, com as luzes a acenderem-se na sala, foi afinal um anti-climax –, e a sua Tosca é arrebatada mas não isenta de tiques de vulgaridade. Sendo Elisabete Matos uma intérprete trabalhadora e com uma noção inteligente das suas capacidades e do aperfeiçoamento que ainda necessita, a Tosca, sendo já um seu papel de eleição, poderá ganhar mais consistentes contornos no futuro, que não apenas tão imediatamente vistosos. E, de qualquer modo, faltou para a guiar aqui uma mão inspirada, que manifestamente não houve.
 
Depois de tantos desastres que se foram sucedendo ao longo do presente temporada do São Carlos, poderemos ser tomados por uma sensação de alívio por esta Tosca ao menos ser uma produção aceitável, o que é inegável – mas isso não basta.
 
Por exemplo, se um dos traços mais tristemente marcantes foi a aflitiva mediocridade repetida de maestros, Lothar Koenigs é de uma outra bitola. Tenho tido a ocasião de o apreciar várias vezes, sobretudo em reportório das primeiras décadas do século XX, por exemplo quando da estreia na Ópera de Lyon da produção do Wozzeck que o São Carlos depois apresentou no CCB, na temporada passada – e tive também a ocasião de dizer que se muito mais apreciei em Lisboa foi fruto, nomeadamente, de uma superior direcção de Eliahu Inbal. Fico que de facto com dúvidas que a Tosca lhe seja obra indicada, porque no seu empenhamento dramático falta ainda assim o sentido claustrofóbico da extrema concisão do Acto II, o apuro do trabalho sobre a gradação das cores instrumentais, o sentido lânguido e da agógica tão particulares a Puccini.
 
Quanto aos restantes intérpretes, que em função das opções de produção não foram escolhas de fundo, há a notar o reluzente timbre do tenor Ewan Browers/Cavaradossi, que contudo (e na récita de dia 21, pelo menos, terminou o “E lucevan le stelle” com um escusado e terrível trilo), e o “erro de casting” que é o Scarpia de Vladimir Vaneev, excelente baixo mas noutro repertório (recorde-se o seu Boris Godounov) e sem as cores mais baritoniais que a tipologia do papel exige.
 
O facto de esta produção ter sido justificada por Elisabete Matos e não ser tão medíocre quanto as anteriores da temporada não deve pois obliterar que é uma Tosca berrante mas desinspirada.